Landescherie – Ballée

Não choveu. Mas foi das noites mais frias que temos memória. Rivalizou com a noite do gelo, também em França, mas no final do ano passado. Não chegou a tanto, mas de vez em quando lá se acordava com o frio e de manhã, ninguém queria sair da tenda para enfrentar o orvalho que cobria tudo, incluindo a nossa casa amarela. Mas teve que ser...

Regressámos por onde viemos, para reencontrar a estrada agitada. Mas antes de lá chegar, cinco minutos para apanhar amoras selvagens. Um complemento à bucha da manhã.


Em menos nada, afugentámos o frio matinal com umas pedaladas valentes numa estrada chata. Recta perfeita que subia e descia os montes. O sino tocava o meio dia quando entrámos em Laval.
Parámos no banco de jardim, no centro da cidade. Comemos as amoras, mas sem supermercado à vista, precisávamos de mais combustível!
Por todo o lado estudantes. Mas mesmos muitos. Bastava olhar para uma paragem e algumas centenas se podiam ver, a conversar ou a fazer coisas de estudantes.

A  cidade acabou por ser maior do que o esperado e connosco mesmo no centro, lá usámos o sol para nos orientarmos dali para fora. A certa altura, parámos para tirar o nosso "mapa", com os nomes das cidades que deveríamos passar. Um ciclista pára junto a nós. Uma bicicleta mais pequena e atrelada à dele transportava o seu filho. Perguntou se precisávamos de ajuda. Dissemos-lhe o nome da terreola a passar, e ele ofereceu-se para nos mostrar o mapa. A casa dele era a cinco minutos dali. Achámos bem, por isso seguimo-lo para fora da confusão do centro.


Entrámos no pátio da casa dele, e numa mesa o mapa foi aberto. Conversa para aqui, conselhos de melhor rota para ali e lá fomos desvendando este senhor. Descobriu o cicloturismo  há dois anos e juntamente com a mulher e o filho de quatro anos, andavam a passear por França sempre que tinham tempo. Não apanhámos as profissões dos dois. Talvez o tivéssemos descoberto quando ele nos perguntou uma e outra vez se queríamos almoçar com eles! Perguntou uma vez, e foi tirar fotocópias do mapa. Voltou e perguntou outra vez. Nós encavados com timidez dissemos ser melhor voltar à estrada. Trocámos contactos, ele ainda foi connosco de bicicleta para nos mostrar a estrada certa e dissemos adeus. Cinco minutos depois estávamos abismados com a nossa reacção. Porque raio é que dissemos que não?!? Porque é que recusámos um convite para um almoço generosamente oferecido por uma família francesa? De ciclistas! Nunca o saberemos. Fomos comprar os ingredientes para o almoço ao Lidil, tipicamente alemão.. Toma lá que já levaste!

De novo na estrada, mas munidos com um mapa detalhado até Tours e com um plano de evitar a recta chata que nos levaria até lá. Virámos para as estradas secundárias do campo Francês. Foi o melhor que podíamos ter feito.
Nada de grandes colinas. Apenas pequeninas. Nada de camiões a voar ao nosso lado. Tínhamos as estradas por nossa conta e as vilas que atravessámos eram mesmo ao nosso gosto. Pequenas, meio desertas mas cheias de pinta e recantos.


E numa das vilas descobrimos um desses recantos. A vila parecia abandonada, mas não sem vida. O sol brilhava com força suficiente para ameaçar o suor e junto ao salão de festas (que deve ser coisa do tipo Casa do Povo, versão francesa), um enorme espaço, com umas casas de banho públicas e lavatório. Até tinham canteiros de flores a enfeitar o espaço. Eram quatro da tarde. Despejámos as tralhas húmidas da noite anterior no pátio, estendemos a tenda ao sol, lavámos roupa e até tomámos banho! Estivemos por ali uma hora e meia. Nunca apareceu ninguém, as roupas que lavámos estavam secas e com o corpo mais cheiroso e os cantis cheios, fomos cheios de boa disposição para o campestre em busca de um recanto quentinho onde montar a tenda.

Passámos uma terreola e virámos para um campo lavrado. Já a empurrar as biclas em busca de terreno plano para a tenda, um carro pára à entrada do campo e um homem sai de lá e dirige-se a nós. Antes de ele falar, perguntámos logo se haveria problema em passar ali uma noite e abalar de manhã. Ele respondeu que ali, não. Havia um sítio melhor lá atrás na vila, com acesso à água se quiséssemos. Tinha-nos visto entrar por ali, percebeu as nossas intenções e veio ajudar-nos!

Guiou-nos até ao local, mas uma vez lá indicou-nos outro ainda, um pouco mais à frente, caso este não fosse do nosso agrado. Fomos tentar o segundo, porque este era mesmo no centro da vila.

E assim foi. Tínhamos uma mesa e uns bancos. O rio estava ao nosso lado e na outra margem umas casas. Já de tenda montada e de fogão acesso, eis que o mesmo carro regressa. O homem sai do carro e entrega-nos uma garrafa de licor de pêssego caseiro e paté de coelho, também caseiro. Ao nosso ar incrédulo responde, bem vindos a Ballée!

Nesta noite, não tão fria como a anterior, os nossos espíritos foram aquecidos com as generosidades de estranhos, com a beleza e paz da França campestre e com a pinga caseira que serviu de comprimido para dormir!


...há um ano atrás: Quirima

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