Ostuni - Brindisi

O vento uivou durante toda a noite. Esperneou e gritou por tudo o que era canto e frestas da casa. Mas cansou-se com o amanhecer. Com a luz a promessa de um novo , calmo e belo dia de pedaleio, depois de tantos dias de folga.

Pequeno-almoçámos ovos e torradas. Geleias e doces misteriosos criados pela Cathy e com receitas secretas. Foi muito bom.

De novo os alforges carregados do quarto para as bicicletas. De novo os animais a rondarem-nos em busca de brincadeira. O auspicio de uma despedida fazia-se sentir. E assim foi, depois da foto de família.


Não sei o que se passa, mas depois de duas semanas num mesmo local, a viver com as mesmas pessoas, algumas raízes começam a fixar-se. Aquele bichinho de ficar em casa. Aquele mesmo que faz força para  não voltar para o frio, vento e desconhecido e ficar a boiar em águas calmas e conhecidas. É muito difícil contrariá-lo. Depois de tanto tempo a alimentá-lo com boa comida e um lugar quentinho todas as noites, é necessário a ajuda do sol e do céu azul, para o voltar a enjaular.

Foi muito difícil dizer adeus ao Keith e à Cathy e ao cantinho que eles criaram no Vale d”Itria. E mais ainda o é, conseguir explicá-lo.

Valeu-nos a fácil estrada que nos levou até Brindisi. Rectas que ligavam as cidades que separam Ostuni de Brindisi será uma forma de as descrever. Plácidas descidas, vento a refrescar o calor da Primavera que chega e oliveiras até perder de vista.

Sabiam que as oliveiras não são uma árvore? Aprendemos com o Keith, que anos após anos de corte e poda, estes arbustos são esculpidos até ganharem a forma que nos é familiar. Mas não deixam de ser bonitos arbustos.


É verdade. Hoje é o dia em que a união Italiana celebra os 150 anos. É feriado e por isso alguma incerteza sobre o que vamos encontrar em Brindisi. Festas? Panificios abertos? Será que hoje há barcos sobre o Adriático?

A Decatlhon estava fechada. Fica para a próxima o reabastecimento de algumas peças de equipamento. Juntámos umas peças de fruta e umas fatias de pão com azeite e criámos uma bucha com ares de almoço.

O plano é conseguir bilhetes para a Albânia. Mas na bilheteira explicam-nos que hoje só há um barco e por isso o preço do bilhete será elevado. Se formos amanhã, é metade do preço. Decidimos esperar pelo dia seguinte, para o comprar. Ao sair da bilheteira, reparamos num enorme mapa de Grécia que se encontra no hall de entrada. Olhamos para ele e para o troço albanês que nos espera e que também é visível no mapa. Quatro dias para pedalar até à fronteira da Grécia. Ponderamos a hipótese de saltar directamente para ali. Se não vamos passar mais do que quatro dias na Albânia, valerá o esforço/dinheiro de por lá pedalar? Ficaríamos a conhecer o sitio em quatro dias?
Talvez não. Nunca o saberemos, pois depois de passear pelas bilheteiras da cidade e fazer contas à vida, não só é mais barato viajar directamente para a Grécia, como é mais rápido.

Depois de decidido o destino e de saber que só amanhã teríamos barco, prosseguimos para a próxima tarefa diária. Encontrar sítio para pernoitar. Atrás de uns enormes celeiros sobre o porto e com vista para a baía da cidade. Pareceu-nos bem. Como ainda era cedo, fomos dar uma volta até à baixa.
O que à apenas poucas horas era uma cidade fantasma, revelava-se agora uma confusão de pessoas e tráfico que decidiram todos ir passear ao fim da tarde e depois da digestão para a marginal enquanto comiam um gelado. Todas as pessoas seguravam ora um copo ora um cone e as duas gelatarias pareciam duas colmeias em plena actividade. Nós fizemos o mesmo. Não fosse hoje o dia das despedidas, esta foi a nossa forma de celebrar os 150 anos e o nosso adeus à esta bela nação. A comer um gelado junto ao mar, num final de dia com ares de Primavera.

Voltamos para o spot escolhido onde montar a tenda. Fizemos o jantar, risotto de cogumelos, lavámos a loiça, vestimos o pijama e enfiámo-nos na nossa casa amarela e nos nossos sacos-camas azuis.

Ostuni - last days

A nossa partida foi adiada de segunda para terça e de terça para quarta.

Primeiro porque a Ana queria que a Cathy lhe cortasse o cabelo e queríamos terminar as tarefas que tínhamos começado na segunda feira.

Na terça, apesar de todos prevermos vento e chuva, ficou agendada nova partida, quando às primeiras horas da manhã ventos ciclónicos e chuvas erráticas se apresentaram. Já com tudo montado nas bicicletas, voltámos atrás e ficámos mais um dia.


Fomos às compras de manhã, à tarde arrumámos mais um pouco o espaço exterior e cozinhámos almoço e jantar para eles. Mais relaxados, já tendo as coisas prontas, pudemos passar algumas horas na Internet a actualizar, e a mandar pedidos de couchsurfing. O novo router chegou no domingo ao final da tarde e estávamos todos a precisar de saber do mundo.

As bancadas de mármore chegaram segunda feira ao final da tarde, mas em negócios de família quando um vem tirar as medidas e outro vem montar é esperado algo não bater certo. Passados poucos minutos uma bancada já estava partida e mais outros tantos minutos depois olhávamos com ar incrédulo para o fogão que não cabia no seu buraco. Vamos sair daqui sem ver a cozinha pronta. Mas a máquina de fazer o pão deve ter gostado da bancada, pois estreou-se com um pão grande que todos acreditamos ter crescido assim tanto porque estava contente de ter sido feito no único pedaço de bancada que estava bem medido.

O vento continuou a uivar que nem um lobo ao adormecermos. Mas a não ser que o granizo caia pela manhã, voltamos para a estrada amanhã, 150 anos depois da união de Itália.

Ostuni - second week

Segunda-feira foi o nosso dia de folga.

O plano de ir até à loja de bicicletas já estava nas nossas cabeças desde que a Internet pifou com a trovoada da semana passada. Impedidos de comunicar com o mecânico que poderia montar as rodas que desejamos, optámos pelo mecânico de Ostuni arranjar-nos umas medianas provisórias. Vendeu-nos um par de rodas, já sem o travão de disco, pois avisado no dia que fomos à feira, esperava-nos preparado neste dia. O número de varetas ser menor, e o facto de ser uma roda de travões de disco são mais que razões suficientes para deixar-nos preocupados, e duvidosos, mas era isto ou ficarmos apeados no meio da estrada. Assim que tirámos a roda antiga e cortámos as varetas para ficar com o antigo cubo da Shimano, o aro partiu-se. Os nossos corações estavam apertados e custou-nos destruir a roda que nos trouxe até aqui, mas quando olhámos e vimos o buraco que se abriu no aro sentimos que estávamos a fazer o correcto.
Os travões que nos vendeu o mecânico Fábio têm a patilha mais pequena que o habitual e também isso é mais uma item da lista de coisas que não estão como deviam na bicicleta. Vamos esperar para ver.
Fomos muito bem recebidos na loja e já conseguimos confiar mais as nossa meninas nas mãos de um mecânico que não seja o nosso Julinho, de Lavos.
Sem admirações, descobrimos que depois de meio dia a cirandar pela cidade, a passear e a fazer compras, à espera da hora de abertura da loja, já meia cidade nos tinha visto. Quando à hora marcada a loja ainda não tinha aberto, já meia dúzia de pessoas telefonavam ou planeavam contactar o Fábio a dizer-lhe que estavam uns ingleses à porta. Ingleses, espanhóis, italianos,.. chamam-nos de tudo!

Além desta casa, a Cathy e o Keith possuem uma outra propriedade que exploram com fins turístico-lucrativos. Um trulo. São típicos desta região e há-os aos pontapés por todo o lado. São poucos os italianos que queiram restaurar ou manter um. Depois da pergunta: "São ingleses?" segue-se logo a questão:"Querem comprar o meu trulo?".
Um telhado cónico de pedra é a característica mais evidente e a razão pela qual são tão conhecidos.
O trulo da Cathy e do Keith tem uma piscina enorme diante a casa com vista para os verdes da relva e das oliveiras. Baloiços e canteiros com flores e plantas. É um sítio lindo.
Cerca de 85% das oliveiras que possuem encontram-se aqui, junto ao trulo, na localidade de Ceglie Messapica, a uns 10km do sítio onde moram.


Apresentaram-nos uma lista à chegada com trabalhos/tarefas que podíamos fazer no trulo ou na casa deles. Nada que requeresse muitas habilidades específicas e que uma demonstração não tirasse as dúvidas iniciais.

Entre os dois conseguimos cumprir quase 90% das listas. Com tarefas divididas ou partilhadas trabalhámos no duro mas com gosto. Dizemos duro só porque não estamos habituados a esta vida de campo, mas nada demais para quem sempre fez disto a sua vida.

Recolhemos ramos que podaram e triturámo-los numa máquina para os tornar mais pequenos, e serem utilizados para fertilizar e manterem árvores e jardins livres de ervas daninhas; passámos a ferro; limpámos todo o trulo - casas de banho, janelas, lavámos o chão todo, da única maneira que podia se lavado: de joelhos; recolhemos e dobrámos as redes da apanha da azeitona; limpámos os muros ao redor da casa de ervas daninhas; arrumámos a garagem e o espaço exterior à volta da casa; lixámos e preparámos as cadeiras de descanso para um tratamento de verniz que suportasse melhor os UVs; transportámos e espalhámos os fardos de palha pelo espaço das galinhas; lavámos a loiça... Resultado à noite, assim que caímos na cama dormíamos que nem uns anijnhos.


Gostámos de todos os trabalhos de uma maneira geral, e é óptimo no final ver a diferença entre o que estava antes e o depois. Sabemos que eles os dois têm sempre montes de trabalho para fazer e soube bem poder ajudá-los um bocadinho.

Têm montes de ideias e projectos e estão sempre a pesquisar, a ler, sobre o que querem fazer e como o conseguir. Todos os dias as conversas giravam em torno de formas de energia alternativa, ecologia, sustentabilidade, permacultura, compostagem, biodiesel, águas cinzentas e pretas, orgânico, biológico. Aprendemos imenso. O que ainda não aprendemos, ficou como uma semente a germinar dentro de nós.
Todos os detergentes são ecológicos, os painéis solares, a lareira, a compostagem, as cascas de ovo que vieram das galinhas e que vão para a compostagem, que vai fertilizar o que se come. É um ciclo de transferência de energia, onde muito pouco se desperdiça.


Tivemos oportunidade de provar a omeleta indiana que o Keith fez e que a Cathy aprendeu nas suas viagens pela Índia e depois de atravessar todo o sul de Itália, provar ou ficar a conhecer a maior parte dos seus diversos pratos, finalmente outro ponto alto gastronómico teve lugar. A ironia fica-se por ter sido em casa de nacionalidade britânica. Finalmente aprendemos e fizemos a massa de pizza, amassámo-la e disposémos os ingredientes, para que todos pudessem passar por 94 segundos dentro de um forno a lenha!

Mais um sonho concretizado. Pizza caseira, em forno de lenha, em terras de itália.

A massa que sobrou, aproveitou-se para fazer um pão. Nada se desperdiça nesta casa. Citando o senhor Chuck Phalaniuk: "Permacultura não é a palavra certa, mas é a primeira que me ocorre". Obrigado Keith.

Numa janela da cozinha há sempre um iPod a cantar as músicas do Keith e da Cathy. Todos os dias e todas as nossas recordações são acompanhadas de banda sonora.

Ostuni - first week

A primeira semana foi de adaptação. A todas as novas rotinas, à maneira de comer (e beber), aos horários, aos espaços...


O nosso quarto é pequeno, mas muito bonito e mais que suficiente! A nossa tenda é bem menor! Uma cama de casal e uma mesinha de cabeceira. O tecto abobadado é atravessado por vigas de madeira. A parede e o tecto são todos de pedra. Das mesmas pedras antigas com que se construiu a casa. Duas portas: uma para a casa de banho e outra de entrada/saída, compartilhada por uma sala de estar onde estão a televisão, dvd's, alguns livros e as bebidas espirituosas cá da casa.

Na segunda noite da nossa estadia, sucessivos ribombares de trovões e relâmpagos encheram os nossos sentidos. No nosso quarto, sem janelas, era possível sentir a luz dos relâmpagos, apenas pelo pequeno arco no topo da porta que não tinha pedra. Continuaram assim pela noite fora. Um espectáculo de luz e de som só possível pela mãe Natureza que deixou-nos sem router/internet no dia seguinte.

O vinho, como vem sendo habitual nesta viagem, nunca falta. Rega todas as refeições e mesmo antes de jantar partilhamos um jarro, para ambientar... para abrir o apetite. Acabamos a noite todos sonolentos, a sorrir, com os dentes meio lilases... Se há vinho no jarro os copos estão sempre cheios. Assim que há um copo vazio, segundos depois já está cheio outra vez.

A comida é, além de completamente deliciosa, na maioria, é vegetariana. O que no final das contas, é igual a uma alimentação mediterrânea. Carne e peixe sim senhor, mas com moderação. Comemos um curry de vegetais da horta, sopa, risotto de funcho e um puré de favas que sabem a verdadeira Itália, nesta casa de gentes inglesas.

Atrás da casa moram as 7 galinhas, dois galos, 2 fêmeas e um macho de uma espécie de ave que não descobrimos o nome, mas que fazem barulho à brava e por isso são bons animais de guarda, dizem eles e os italianos. A toda à volta há árvores, a maioria oliveiras, algumas amendoeiras, figueiras e nogueiras. O azeite é proveniente das suas quase 200 oliveiras, assim como as nozes, amêndoas e os figos. Ao lado têm o que se chama raised beds, uma espécie de canteiros elevados onde plantam e semeiam ervas aromáticas, e vegetais. Rúcula, brócolos, alface, couve lombarda, salva, salsa, coentros, alecrim, hortelã e morangos são alguns exemplos do que aqui consta e do que podemos encontrar no nosso prato. No mesmo espaço das galinhas está a compostagem. Papel, restos de comida, pequenos pedaços de tecidos, folhas secas, erva, ramos, de quase tudo se pode fazer composto. Só depende do tamanho com que para lá é posto.

No telhado estão os painéis solares que aquecem toda a casa e produzem mais energia do que a consumida. A diferença vende-se à companhia da electricidade. A lareira que aquece toda a casa é acesa ao entardecer e liga-se também ao aquecimento do chão.


Há um cão, o Muttie (palavra carinhosa para Rafeiro). Adora o jogo do atira e busca. Enquanto trabalhamos no exterior temo-lo sempre por perto a correr com a bola na boca, para nós atirarmos. Quando não acha a bola, vai buscar outra, quando perde todas as bolas, vai uma pedra, quando não acha uma pedra, vai um pedregulho. Depois é vê-lo a ganir sozinho porque é grande demais para pôr na boca ou porque se magoa a tentar fazê-lo. É assim o Muttie... só quer que a gente goste dele.
O Zenzero (palavra italiana para Gengibre) é malhado da cor do gengibre. Um jovem gato fascinado com TUDO o que o rodeia. Se o Muttie é incansável, o Zen não lhe fica atrás. Corre atrás de folhas levadas pelo vento, esconde-se e prepara ataques ao cão, a nós, às ervas e folhas. Tudo serve para brincar. Posiciona-se num sítio estratégico, escondido, e de repente é vê-lo correr veloz em direcção a.... nada. Sobe às àrvores, trepa pela rede mosquiteira da porta, empoleira-se nas grades das janelas, provoca o cão, até as galinhas tem direito a vê-lo de barriga para o ar quando passam, como que a dizer-lhes: Venham brincar comigo! Zen é um aventureiro destemido.
A Coco (como de Coco Channel) é uma princesa siamesa. Uma trela de pérolas combinaria na perfeição com a sua personalidade. Tolera a presença do Zen apenas quando lhe convém e é frequente entrarem em desacordo. Deleita-se em frente à lareira e por ali fica, horas a apanhar banhos de calor e festas que os humanos lhe oferecem. Um colo confortável também a faz pensar duas vezes.
Antes da hora de deitar todos os animais são convidados a sair e dirigir-se para as respectivas camas no exterior. Tempos houve em que os dois (Cathy e Keith), empurravam entre si a tarefa de expulsar a Coco para a rua. Tal era a bichana. Parece que está melhor, mais social, mais tolerante.

Com a manhã de sábado livre, fomos visitar o mercado semanal, cheio de legumes e fruta locais e da época, mais bancas e banquinhas de ovos frescos que são bons para beber, ou quatro dezenas de sacas cheias de leguminosas e frutos secos que fazem crescer água na boa. A chuva miúda não impediu a passeata pela zona mais antiga da cidade. Descobrimos ruas e ruelas. Portadas todas trabalhadas, recantos pitorescos, arcos e escadarias, varandas e entradas cheias de pormenores. O lixo num de saco plástico à porta, os vasos e vasinhos à porta a enfeitar. Meio por sorte até encontrámos o mestre artesão que trabalha com madeira das oliveiras e faz verdadeiras obras de arte que custam deixar na loja. Descobrimos porque é que Ostuni é chamada a cidade branca (Città Bianca) quando nesta no centro histórico todas as casa eram brancas.


No domingo fomos convidados a juntar-nos à "excursão" e ir até ao famoso Carnivale de uma povoação vizinha. Seguimos uns atrás dos outros. A fila para entrar na cidade começava cedo e tivemos de ficar algum tempo no trânsito, pagar um balúrdio para estacionar, receber um saco cheio de publicidade, com sal e açucar sob diferentes formas, andar uns três quilómetros, e depois sim, juntar-nos à festa!
As varandas dos prédios, que ladeavam as ruas por onde passava o desfile, cheias de gente. Papelinhos a voar, um senhor atrás de nós, com um versão maior de um martelo de apitar, insistiu todo o dia em apitar-nos ao ouvido. Gente mascarada, crianças vestidas de ursinho, a dormir no bercinho, grupos de amigo a dançar e a cantar no meio da rua, gente a percorrer a rua nos dois sentidos a querer ver o desfile sem ter que esperar que ele passe num sítio, toda a gente bem disposta.
O vento fez-se sentir todo o dia, a chuva míuda ía e vinha e toda a gente tinha casacões apertados até cima, gorros e carapuços na cabeça, como vem sendo hábito ver por toda a Itália em dias de frio.

Mottola – Ostuni

Vito madrugava para ir trabalhar e nós com ele despertámos.
Como iríamos ficar a apenas 50km uns dos outros, se tudo corresse bem, as despedidas foram mais um até logo que até sempre. Vito foi com as suas árvores e nós com as nossas biclas e roda torta.


Seguimos as direcções que nos ensinaram para apanhar a estrada até Martina Franca. E que estrada!
Como num passe de magia, tudo mudou. O asfalto ficou mais estreito e esburacado. Os carro desapareceram e tornaram-se uma visão rara. Curvas longas, rectas a subir a descer, mas tudo num ambiente de silêncio, rodeados por muros de pedra até perder de vista, Masserias aqui e ali, bosques densos ou campos abertos. Havia de tudo nesta Natureza domada pelo Homem. Porcos e leitões à procura de trufas atrás de sebes e junto à estrada. Cavalos e póneis misturados nos arvoredos, como se de um conto de fadas se tratasse. Muito fixe!


Chegámos a Martina Franca, abastecemos as barrigas para os próximos 25km, e lá fomos nós. As nuvens escureciam, por isso até convinha despachar, assim como a sempre torta roda traseira que não parava de assombrar a passeata.

Em Cisternino, recebemos uma chamada. Era o Keith a perguntar onde estávamos nós pois tinha feito toda a estrada, desde a sua casa até Cisternino, e não nos tinha encontrado. Sem problemas. Nós continuámos o caminho e quando uma pick-up cinzenta buzinasse atrás de nós, seria ele. Assim é complicado perdermo-nos, quando toda a gente vêm ao nosso encontro.
Um buzinadela mais tarde e o senhor de cabelos brancos, cheio de energia e calças de gangas a acusarem trabalho de pedreiro. Lá nos apresentámos, e depois de uns avisos de chuva a promessa de um almoço quando chegássemos a casa.

Ao chegar, o alívio de um repouso entre aspas. O alívio de tempo para remendar a bicla ferida.
Keith fez-nos as apresentações à casa ainda em construção e pouco depois a Cathy entra com as compras da mercearia do dia. Nada como uma bela pasta e uns copos de vinho para destravar a língua e iniciar conversações. Mas aqui não se perde muito tempo a molengar...

Enquanto houver luz, nesta casa trabalha-se. E nós como novos membros, começámos a fazer parte desta rotina. Nada como passar a tarde a preencher uns canteiros com compostagem, para ganhar apetite para o jantar.

Keith e Cathy decidiram um dia largar a rotina diária de escritório, juntar os seus tostões amealhados e vir morar para o sul de Itália. Duas propriedades. Uma com trulli a arrendar e outra para os seus projectos ecológicos de permacultura. Há cinco anos que por aqui andam no Vale de Itria e há 5 anos que não param de fazer tudo o que está relacionado com a construção, agricultura e manutenção das suas casinhas.
Pouco a pouco, o chão da sala vai ganhando forma. As arrumações mudam-se para os seus devidos lugares e a comida cultivada por eles vai entrando na panela.

Se tudo correr bem, por aqui vamos ficar as próximas duas semanas, a ajudar com as tarefas da casa e a aprender uns truques do ofício...
Se tudo correr bem, entrámos aqui com rodas velhas e cansadas e sairemos com umas rodas prontas para a porrada da Ásia...
Se tudo correr bem...

Mottola

Vito Gentile, o homem que plantava árvores.

Depois de acordar, pequeno-almoçar e limpar as ramelas, fomos com este energético naturalista e amigo da malta, plantar árvores.
Plantámos árvores, na exportadora/importadora de frutas e legumes de Mottola. Tinha mais cimento que verde, mas lá se encontraram uns pedaços de solo com espaço para as raízes.
Plantámos árvores na Masseria do amigo de Vito. Nos tempos de antigamente, uma Masseria, pertenceria a uma família suficientemente abastada para não ter que andar mais de dez metros até à igreja mais próxima. Muitas Masserias tinham a sua própria igreja. Hoje em dia as que não são povoadas por humildes famílias, são usadas para agriturismo e negócios casamenteiros de Verão.

Como o Vito não aguenta muito tempo parado no mesmo sítio, depois de acabar de manjar o delicioso almoço confeccionado pela mãe, arrancámos para uma viagem de hora e meia, em direcção ao sul de Puglia. O tacão de Itália.


Desde que chegámos que o nosso anfitrião nos falava do amigo "xamã" estrangeiro que vivia no meio do mato com a sua família. Mato este, cultivado por si, durante mais de 30 anos e com flora de toda a parte do mundo. Sementes dos confins da selva tribal amazónica, prosperavam em harmonia com a flora local do mediterrâneo.

Peter vivia com a sua esposa italiana e as suas filhas. Sim, vivia no meio do mato. Era lusco fusco e não deu para determinar a exocticidade da flora no seu quintal, tirando uma quantidade enorme de diferentes cactos. Sim, Peter demonstrou-nos uns sons bem audíveis de medicina sonora harmónica que curava tumores e te faziam entrar em transe. Para um homem de mais de 60 anos, tinha cordas vocais mais poderosas do que muitos cantores de ópera. Mas tirando esta peculiar primeira abordagem, mais não era que uma pessoa normal. Amiga da natureza, pai de família que acreditava na sua filosofia de vida e a perseguia desde tenra idade. É de notar, que tinha tanta tecnologia em sua casa (assim como um telemóvel ao pescoço), como ervas, chás e mezinhas espalhadas na sua cozinha.

O anoitecer, foi o sinal de voltar a casa. Se o sul mais a sul de Itália é parcamente povoado fora do calor do Verão, numa noite de Inverno nem vivalma se sente ao conduzir por ruas negras como o breu.
Depois de andar às voltas nas terreolas ao redor de Brindisi, a perguntar direcções a toda a gente e a confirmar mais uma vez que os italianos confundem a "sinistra" (esquerda) com a "destra" (direita), acabámos por dar boleia a uma rapaz que serviu de guia até ao posto de abastecimento de metano mais próximo, para o automóvel ecológico do Vito.

Umas foccaccias mais tarde, regressámos a casa, para um adormecer à lareira.

Marina di Ginosa – Mottola

Nem só de pão vive o Homem... Mas os Nomadiclas poderiam viver só de focaccias...

Por volta das 7 horas estávamos prontos para partir,  mas assim que espreitámos fora das lonas vimos um carro, mesmo ali a 10 metros de nós, estacionado dentro dos limites do "restaurante". Imediatamente, entrámos em estado de alerta e a comunicação passou a ser apenas gestual e sussurrada. Lentamente, dirigimo-nos ao portão de entrada, nervosos com a possibilidade do dono saltar de lá de dentro zangado com esta invasão de propriedade privada! Mas nada. Assim que voltámos a pôr o cadeado saiu-nos um peso de cima.


Seguimos o cimento até à praia, arrastámos um banco e por ali ficámos junto aos chuveiros a pequeno-almoçar. A família de cães andava por ali perto a correr e a brincar. Mais uma vez, o cão mais corajoso, do dia anterior, chegou-se à frente, e isso fez com que ele, e não os outros, ganhasse uns pedaços do que comíamos. Um olho azul e outro castanho. Era giro.

O sol aqueceu-nos, mas não o suficiente. O vento continuou a fazer-se sentir e voltámos ao selim de luvas, casacos apertados até cima e gorros enfiados até às orelhas. Ciclámos até Pugliano sem paragens e apenas por curiosidade resolvemos parar e cheirar o que havia pela padaria mais vizinha. Acabámos a comer duas fatias de focaccia, quatro pães de azeitona e salsichas e uma mini pizza. Nada mal. Como era tudo tão bom, voltámos a entrar e reabastecemos.

Não há nada que se compare a isto. Eu que gosto de pão, e do pão português em especial, rendo-me a estas iguarias que eles por aqui vendem a sessenta cêntimos à fatia, melhor que todas as pizzas e focaccias juntas até agora, a pensar que não poderei jamais voltar a comer uma pizza, focaccia, pão ou massa que não seja cozinhada com tais apetites culinários. Antigamente, se não houvesse uma padaria, lá ia um pão de super mercado qualquer, sempre é mais barato. Mas depois em sabor, textura, apresentação e composição química, é como comer plástico.


Daqui até Mottola foi um instante. Num cruzamento, estávamos nós no meio um subida bastante inclinada à meia hora, quando um ciclista se dirige a nós a perguntar se procurávamos o Gentile. Já nem estranhamos que as pessoas assim do nada saibam quem nós somos e para onde vamos. O mundo é pequeno, e aqui toda a gente sabe da vida de toda a gente, por isso...

Era um amigo do pai do nosso anfitrião. Deu-nos as indicações exactas de como chegar à casa do Vito Gentile, depois de nos debater-nos com qual estrada seguir, e do que haveríamos de fazer para encontrar a sua casa. Não é sorte, é mesmo assim... Acontece-nos com alguma frequência e já começamos a despreocupar-nos com este tipo de coisas, porque parece que aparece sempre alguém ou algum sítio que era exactamente o que precisávamos. Resta-nos sorrir e aceitar!

As indicações exactas levaram-nos um par de casas mais à frente. O Vito veio buscar-nos, e depois de largarmos tudo na garagem fomos de carro almoçar com a sua família. Um delicioso prato típico desta região, depois da barriga ainda a transbordar da padaria. Comemos os abençoados e saudosos grelos que já não comíamos desde...

Durante a tarde andámos a conhecer os arredores. Ravinas, castelos, grutas antigas com pinturas religiosas a cair aos bocados. Sítios perfeitos para acampar, para passar um fim de semana com amigos ou sozinhos, para percorrer, escalar e saltar. Um cenário brutal que nos deixou água na boca para outras aventuras.


O jantar foi na focacciaria dos amigos, que no fim não nos deixam pagar. Com uma mãe que se intitula cozinheira aprendiz de focaccias, e que mal tem oportunidade fala do seu filho que está longe de lágrimas a bailar nos olhos. Falamos das  nossas mães, claro. Em qualquer sítio do mundo que se esteja as mães são todas iguais.

Os amigos encontrados por toda a cidade, e seguem-se convites atrás e convites, para jantar, café, passeios, e mais momentos felizes. Acabamos a noite a regressar de uma ida a um antigo matadouro, que tornaram num espaço cultural e onde assistimos a meia dúzia de canções de um grupo italiano famoso no Japão, que não tivemos de pagar porque entrámos com a atitude certa para ninguém nos pedir bilhete.

Foi assim, mais um dia de Nomadiclas.

Borgata Marina – Marina di Ginosa

Que temporal! Toda a noite com o vento a uivar, as ondas a rebentar e as árvores a dançar! Que festarola! E nós no meio dela, encolhidos num canto apenas com um ténue tecido a a separar-nos das intempéries.
Claro que nenhum de nós tinha muita vontade de sair do conforto do saco-cama e do ambiente quente que demorámos toda a noite a criar. Ainda ponderámos a hipótese de não pedalar neste dia, mas engolimos em seco, abrimos a tenda e enfrentámos o frio!


Foi um dia de tão interessante como de cinzento. Sempre contra o vento e sempre com frio se parávamos por mais de cinco minutos. Pelo menos nunca choveu.

Quando chegámos a uma vilazita depois de 30 km non stop, lá procurámos outro canto onde comer as pizzas de Civita. Junto à igreja e de pé. Se nos sentávamos, congelávamos. Um nativo da raça canídea, decidiu tentar a sua sorte atrás das grades do portão da igreja. Com um pedaço de pizza aqui e outro de bolacha ali, safou-se melhor que nós. Ele pelo menos tinha um tufo de pêlo a protege-lo do frio.
Não se via ninguém nas ruas. Será isto o Sul de Itália no Inverno? Povoações ao abandono, frio, chuva e vento? Foi a primeira vez que de facto me pareceu ser uma região pobre, como todos a pintavam. Pelo menos pobre em pessoas.

Depois de um pomeriggio a pedalar, virámos para a costa à procura de outro poiso para a noite. Ao entrar na cidade, aparece um carro da policia, junto a nós, com duas caras de mau, a avisarem/refilarem que devíamos ir para a ciclovia. Que era perigoso andar na estrada. Perigoso andar na estrada? Contrariados, lá virámos para a zona esburacada e cheia de lombas a que chamam ciclovia. Desculpa rodinha torta.

Depois de 200m de buracos, acabou-se a via pedaleira e virámos até à praia e às suas estações balneares às moscas e em estado pós-apocalíptico. Procurámos ali, procurámos acolá. Espreitávamos pelas ruas e atrás das casas. Um sítio promissor parecia, quando nos decidimos por ele. Mas como ainda era cedo, esperámos até às 17h para ir ao supermercado e só depois montar o estaminé.

Pelo menos era abrigado do vento a da potencial chuva. Mas o frio estava por todo o lado.

Tiritávamos a ver o Seinfeld e ao adormecer.

Castrovillari – Borgata Marina

Sim. O cappuccino estava delicioso e provavelmente sempre que o beber vai ser de Castrovillari e da Teresa que me vou lembrar.
Ela trabalhava em casa, e nós com dias cinzentos e campismo pela frente, não andámos com pressas. Calmamente, comemos e conversamos ao som dos talheres da manhã. Dissemos os adeuses à Teresa e fizemos-nos à estrada. Desta vez, com um destino. Destino esse que originou comentários de Facebook, entre amigas de amigas, entre uma rapariga de Calábria e outra de Almodôvar que partilham a mesma casa algures na Irlanda. É assim que se faz a nossa rota.

Com a neve à porta, uma muralha de montanhas a Norte, vento gelado de todos os lados e a promessa de chuva futura, rumámos a Civita e à apropriada chamada Ponte di Diavolo.
De uma normal cidade, passámos para um pedaleio de montanha, em estradas secundárias esburacadas. Do abrigo dos prédios, para o vento gelado das pequenas aldeias, que nos atiravam com fortes rajadas para o meio da estrada.


Algures numa destas vilas, um carro pára junto a nós, enquanto tirávamos fotos, e o condutor, rapidamente, sai e em Italiano/Dialecto, começa a perguntar se pode tirar um fotografia enquanto de facto a tirava, antes da resposta. Deram-nos as indicações para a Civita, ficaram contentes, mostraram as fotos do seu cão a brincar na neve, que mais parecia uma foto nórdica e seguiram caminho de sorriso na cara, assim como nós. Belos estes momentos da viagem!

Ao chegar a Civita, perdida entre montanhas e desfiladeiros, sombreada pelos picos e construída à beira do precipício, demos com a Piazza principal, com o panificio e a carrinha de distribuição à porta, a descarregar pizzas e pão quentinho. Nham nham. Com preços irrisórios para o seu gigantesco tamanho, abastecemos para os próximos dias, enquanto os nativos, olhavam intrigados, questionavam, inquiriam e interrogavam. As nossas respostas por esta altura já entram em modo automático e rapidamente despachamos os "uhs" e os "ahs" e passamos para conversas diferentes. Uns metros mais à frente, com o frio e vento no seu auge, inclinamo-nos sobre a ravina, tirámos a foto à maldita ponte, recusámos descer até ela e deixar as meninas sozinhas e seguimos ao nosso dia, que teimava em ficar ainda mais cinzento.


Mas Civita, antiga e típica, tinha um piso de pedra irregular que não fez maravilhas à já dubia roda traseira. Se torta ameaçava, com a descida de 20km até à costa aos altos e baixos, torta ficou de vez! Vá lá! São só mais uns dias e nós tratamos de ti! Aguenta mais um pouco!

Almoçamos pizza, encolhidos a uma canto de uma casa, na fútil tentativa de escapar ao vento. Mas o melhor ainda estava por vir. Quando o dia teimava em não melhorar, com o vento a vir de frente e a estrada a encher-se de tráfico, procuramos e rebuscamos tudo o que era sítio para montarmos a tenda. Foi num minúsculo alpendre de uma discoteca/bar de Verão, numa terreola abandonada ao Inverno, que encontrámos abrigo. Abrigo do frio e do vento. Mas não abrigo do barulho que este último fazia. Não abrigo do barulho que a chuva fazia ao bater no tecto.

Tentámos alegrar o serão, imaginando que apenas era uma brisa fresquinha, enquanto sorriamos com o Seinfeld na tenda, e esperávamos por uma noite não de sono, mas ao menos de descanso. Para o dia seguinte as previsões eram para pior.