Rhede - Adorp

Talvez por estar a ser mais fácil pedalar com tanta ciclovia e sinalização. Talvez pelo tempo que já andamos na estrada e a nossa à vontade com ela. Talvez estejamos a ficar mais exigentes com os sítios onde escolhemos dormir. Mas se algumas nuvens ameaçam um acordar de tenda molhada, um tecto para a nossa casa é sempre encontrado. um spot que à nove meses seria impensável é agora bastante aceitável. Mesmo que para isso, a montemos no seio de uma cidade. O bom disto, é que de facto acordámos cedo. O mau, é que para não assustarmos a rotina normal das pessoas que por aqui passam para ir trabalhar, temos que acordar e arrumar as tralhas bastante mais cedo do que costume. Nada de molengar no despertar, como quando estamos sozinhos na floresta. Eram 5:30 quando o despertador tocou e uma hora depois, já a tenda estava empacotada.


Foi a primeira vez que atravessámos uma fronteira, numa ciclovia. Notou-se bem a mudança de piso. Estamos na Holanda. Se na Alemanha, a bicicleta faz parte do dia a dia das pessoas, aqui, está-lhes no sangue de tal forma que já nem dão por isso. São tão normais as bicicletas aqui como calçar sapatos para sair à rua. As ciclovias são mais largas e em muito melhor estado. Nada de entrelaçar a via da bicicleta com os passeios altos. Rampas aqui não existem. Andamos todos ao mesmo nível. Que deve ser perto do nível do mar, pela quantidade de canais e rios que correm e seguem ao nosso lado.

A ironia do destino. Toda a Alemanha foi pedalada a pensar se devíamos fazer um upgrade aos suportes dianteiros ou não. São de alumínio, ao invés de aço como os traseiros. E o suporte da Ana, já anda torto pela vida, desde que entrou numa oficina em Pamplona e desde que se desmontou um par de vezes na Grécia. Pensámos em troca-los, mas não o fizemos. Cinco quilómetros depois da fronteira, partiu-se de vez!
Lá o arranjámos o melhor que pudemos e na primeira gasolineira, comprámos a melhor ferramenta que um ciclista pode precisar em apuros. Fita-cola! Umas tiras aqui, outras ali e já está! Como novo... mais ou menos. Por agora vai ter que servir.


Após cicloviar até cidade grande mais próxima, o choque foi inevitável. O choque de ver tantas bicicletas juntas. Parámos num supermercado no centro da cidade para abastecer e ficámos maravilhados com o que vimos. Aqui, ninguém anda a pé, mas sim sobre rodas movidas a pedal!

Seguimos caminho. Já se vai sentindo o Verão. Com um pouco de imaginação, até podíamos pensar que passeávamos por uma qualquer estrada secundária nos campos algarvios.
Poderíamos imaginar! Porque as ciclovias com a mesma largura que as estradas, o pedalar de mão dada, como se a pé passeássemos, os semáforos no meio do campo, a sinalização mais que evidente e elucidativa, a falta de colinas no horizonte e os abundantes canais, não deixa enganar. Isto é a Holanda!


Atravessámos a grande cidade e encontrámos a vila do Coen e da Marieke, Adorp. Umas quantas casitas com o típico moinho gigante no meio delas. Estacionamos as meninas no seu quintal e entrámos na sua casa, decorada com o estilo que mais lhes faz lembrar as suas viagens. Aqui dentro, a América do Sul e África, saltitam nas nossas cabeças. Com histórias das suas viagens, as curiosidades de cada país esclarecidas e a comida deliciosa na barriga, fomos construindo o serão, até o João Pestana chegar e pôr um fim ao convívio.

Adoramos ouvir falar Holandês.


Edewecht – Rhede

Como se não bastasse estarmos algures na zona industrial de uma pequena cidade, é domingo. Sinónimo na Alemanha de silêncio, paz e sossego. Está tudo fechado. Supermercados, lojas e até cafés. Não se vê vivalma. Apenas algumas padarias estão vivas. Ninguém nos incomodou durante o dia ou pela manhã. Abrigados da potencial chuva, no parque de velocípedes de uma fábrica, a rotina matinal, não saiu da... rotina! Sim. Já é rotina, acordar em local novo, arrumar a tenda depois de passar por ela um pano, enfiar saco cama no saco e depois no alforge. Arrumar traquitanas espalhadas nos respectivos locais. Tudo em modo automático. Montar a taça de origami, para o muesli com água. Lavar os dentes e a cara. Montar no selim e começar a pedalar para mais um dia.


Um dia de ciclovias. Mais campo e cidades alemãs pitorescas. Vacas, cavalos e póneis. O aleatório rebanho... O alemão que usa a bicicleta para ir ao vizinho ou à sua horta. Para passear perto da sua casa, ou para aproveitar o ar fresco da manhã. Cruzámo-nos com todos e a todos dizemos "Hello" ou "Guten Morning".
Porque é domingo e tudo é fácil, temos bastante tempo para pensar...
Já estamos a vinte e um de Agosto. Há um mês estávamos abrigados da chuva com a Justyna em Tarnów, na Polónia... Há dois meses, começava o Verão e nós acordávamos num vasto milheiral da Roménia, para enfrentar um dia de calor abrasador e a nossa primeira capital... Há três, saíamos de um barco em Rhodes...

É o que dá pedalar assim. Com bocejos domingueiros e sem desafios numa ciclovia, com música nos ouvidos. "Rádio Nostalgia"...

Parámos após vinte e tal quilómetros. Um banco e uma mesa, é sempre um bom motivo, e local, para passarmos o resto da manhã a escrever os postais que faltam, com o selo deste país. Convém, antes de sair dele. Aproveitamos os pãezinhos ainda quentes! Ao nosso lado, um senhor de idade. Fardado de verde e com uma catrefada de medalhas. É o primeiro a chegar ao ponto de encontro de mais de vinte homens e mulheres vestidas de verde e com medalhas no peito. Alguém também trouxe uma corneta. Conversam um pouco. Organizam-se e alguém diz qualquer coisa ao grupo que está em sentido. Tudo não durou mais de dez minutos. Que raio estavam eles a fazer? Porquê tanto trabalho a fardarem-se para se reunirem durante dez minutos à conversa e ficarem em linha durante 60 segundos?


As nuvens aglomeram-se. Por esta altura, corre ao nosso lado um canal. Como aqueles que vimos em França. Corre ao nosso lado durante muito tempo e até entrarmos numa cidade um pouco maior. Por todo o lado, barcos. Pequenos e grandes, com e sem vela.


Continuamos a pedir direcções quando não sabemos onde virar, ou o sol se esconde, levando com ele o nosso sentido de orientação. Mas continua a ser fácil, esta bicicletada alemã.
Já estamos perto da fronteira. Mais uma. Mas não a atravessámos. Fica para amanhã, se Deus quiser, a geografia da terra deixar, e os lobos e ursos não nos comerem (a nossa ladainha supersticiosa, onde vamos juntando ou modificando mais itens, consoante a situação!). Para hoje ficou a nossa busca de um spot de campismo, no seio da ultima cidade alemã. Continua a ser domingo. O silêncio do dia ainda cá está.
Uma zona com estábulos, campos de futebol e ténis. Deve ser o poli-desportivo do bairro. Num canto abrigado da nuvens medonhas montámos a casa branca. Desta vez o avançado amarelo ficou guardado.


Bremen - Edewecht

Ainda antes de sairmos do quarto, já a Tinka tinha saído de casa, numa incursão à padaria da zona. Era sábado, e ela queria um pequeno almoço completo.
O café moído, a espuma no leite, diversos tipos de pão e de recheio para eles. Incluído um que eles trouxeram do Chile. Barrar o pão com abacate (esmagado previamente com açúcar e sal) e colocar uma fatia de queijo em cima. Muito bom. Segundo o Philipp e a Tinka, abacate é coisa que não falta naquelas terras e esta receita, até é das mais simples.


Os adeuses e um glorioso dia de sol brindaram-nos a pedalada. Finalmente, um dia de luz. Não de calor. Esse ficará, talvez, para futuras memórias da nossa passagem pelo Leste... Quem sabe. Pode ser que o Setembro e Outubro...
Continuamos com a estratégia de apontar as cidades, vilarejos e números de estrada que temos que percorrer até ao próximo destino. Mas às vezes nem precisamos de procurar placas. Íamos nós lançados por uma estrada, quando um senhor chama por nós a perguntar se precisávamos de ajuda. Prontamente nos encaminhou na direcção certa. Estamos habituados a ser nós a perguntar direcções e não que as direcções nos caiam do céu!


Não parámos durante quarenta e dois quilómetros de ciclovia, até chegarmos a Oldenburg. Abastecemos as barrigas durante duas horas à porta do Lidl e depois fomos fazer a digestão para um parque, onde o Outono já dá sinais.
Enquanto o Harry Potter falava na imaginação de um, o outro imaginava qual seria o problema com o fogão, enquanto o limpava, afincadamente. Vamos lá ver se é desta que ele se porta como deve ser.
As bicicletas é que estão contentes, depois do afinanço profissional, numa oficina alemã.


Pedalar na Europa é fácil, por muitas lamúrias meteorológicas que tenhamos.

Mais uns quilómetros e o dia de sol acabou. Foi assim o Verão da semana. Eis que as nuvens nos obrigam a procurar um abrigo mais seco. Por ser sábado e por amanhã a Alemanha parar (como em qualquer domingo Europeu), arriscámos debaixo do estacionamento para as bicicletas, à porta de uma fábrica.

Curry de vegetais com arroz, um pouco de leitura na tenda e o dia ficou feito.


...há um ano atrás: Torres Vedras - Casais do Baleal

Bremen

Quinta-feira e sexta-feira. Os dias continuam como se não estivéssemos ali. Um sai para mais um dia de trabalho na escola, o outro leva a Norah à creche. Nós acompanhamos apenas num dos dias esta ida e no outro prolongamos o despertar. Seja como for, o pequeno almoço é a três e já sem a Norah estar em casa. Pão e muitas papas de aveia para encher bem a pança.
As nuvens, o sol encoberto, e uns arrepios de frio mostram-nos cedo que vai chover. Os planos de visitar a cidade, de ponta a ponta vão, literalmente, por água abaixo!


Primeiro visitamos as oficinas mais perto, para escolher uma onde deixar as nossas babes, numa revisão, depois dos dez mil e quase meio completos. Visitamos três, mas logo na primeira ficou decidido que seria ali. Entramos, vemos, falamos, e sentimos ou não. Um feeling especial faz-nos decidir por uma e não por outra. às vezes, basta uma conversa para gostarmos, outra vezes um sorriso trocista, faz-nos desistir um segundo depois. No dia seguinte voltámos à hora de abertura e fomos recebidos com muitos mimos. Mesmo depois de nos terem dito que pessoal estranho à oficina não podia lá estar. Tivemos direito a um banquinho e uma bela converseta com o Volker. As maiores alterações vamos esperar para ver e tentar que sejam feitas no nosso mecânico em Lavos. O Julinho! No fim um chocolatinho típico da terra e, na compra de óleo, era essencial que trouxéssemos um frasco de Ballistol. Começou por ser lubrificante para armas, e agora tem uma lista de utilidades, incluindo feridas e bebidas, sendo feito a partir de seiva de pinheiro.
As bicicletas, descansam e nós também com estes cuidados. Não se pode chamar amizade, com duas horas de empatia, mas fica-nos o desejo de conhecer mais e reencontros futuros.


Circulando pelas ruas, à frente de todas as casa vemos, vários contentores de lixo. O Phillip antes de sair deixa sempre um deles no passeio, consoante o dia. O contentor do lixo lixo, tem chip, que controla quantas vezes é esvaziado. Todos os outros para reciclagem de plástico e papel são gratuitos. Um sistema pensado para ajudar a promover a reciclagem e evitar a produção de lixo. As garrafas e os alumínios amontoam-se até à próxima ida ao supermercado. As máquinas de recolha deitam vinte cinco cêntimos por cada embalagem lá posta. Às vezes, vemos compras inteiras pagas com talões das garrafas. Não admira que não se vejam caixotes do lixo na rua! Lá se avista um com sorte! Lixo é sinónimo de dinheiro. Quer seja porque quanto mais lixo se faz ao ano mais se paga, quer seja pela quantidade de garrafas alumínios que se entregam.
O caixote do lixo orgânico também faz parte deste rol de caixotes, que todos os dias se põem à porta. Se se esquecem de pô-lo no passeio ou de pô-lo a horas lá ficam mais uma semana até à próxima volta.


Os almoços foram em casa. Cozinheiros à vez o Philipp e o Alexandre trataram de satisfazer os nossos estômagos. A Tinka acabou por vir almoçar a casa também. Está quase a terminar o seu estágio como professora de espanhol. Os cd's nas prateleiras, os livros e a conversa dela mostram que ama a língua! O Alexandre e ela lá se entendem, mas a mim só me sai italiano! O Philipp trabalha em informática, e delicia-se nos últimos dias de férias/licença de paternidade.
É ele que fica encarregue de ir e buscar a Norah à creche, que começou a frequentar à dois dias!

Saímos depois do almoço, para visitar Bremen.Fomos procurar a estátua dos animais músicos! Pela imensidão de postais e souvenirs que as lojinhas vomitavam para os passeios já sabíamos o que procurar! Os quatro em cima uns dos outros lá permaneciam estáticos para mais uma foto! Os pés do burro estão ao alcance e toda a gente lhes toca. A cor de bronze, já deu lugar a um luzídio dourado! Diz que dá sorte!  A cidade está cheia. Gelatarias e lojas com preços muito altos não faltam. Recintos e grades vão sendo montados e mudados.Os La Strada está na cidade. Assistir é gratuito, mas de algum lado é preciso entrar tostão, por isso cobram um folheto com o programa. Decidimos procurar na internet. Assistimos a um ensaio/improvisação que nos deixa água na boca.


Um passeio pela cidade, mas sempre breve. Duas horas, para voltar a tempo de fazer o jantar. A Norah come cedo e nós que gostamos todos de comer, vamos embalados pela noite dentro. Entre as seis e as sete sentamo-nos à mesa. Damos as mãos e agradecemos a comida, numa cantiga simples. A meio a Norah, impertinente, num sono que força não ter, diz-nos boa noite e desce num colo para ir dormir. Três continuamos à mesa, na conversa, a ouvir música, até sermos quatro outra vez. Bebemos e falamos, canta-se e toca-se. As melodias são escolhidas com números das páginas ditos ao acaso. E cada um tem o seu disco pedido. A Tinka embala-nos com a voz e a guitarra, enquanto o Alexandre faz, batatas esmigalhadas e bifes com cogumelos ou quando eu preparo e faço quatro massas de crepes, no que mais parecia uma Crepe Party. A chuva e os relâmpagos fazem-nos sentir ainda mais confortáveis onde estamos.


Bierde - Bremen

Mais uma noite na floresta. Será que vou sentir falta disto, quando começar a acordar todos os dias na mesma cama, entre as mesmas quatro paredes?

Arrumámos tudo como deve ser. Devidamente seco e voltámos à ciclovia. Hoje vamos para Bremen. Quando saímos de L'viv e decidimos rumar para Oeste, não pensámos em visitar esta cidade. Mas ao olhar para o mapa, umas semanas mais tarde, e dissemos, "porque não?".

De ciclovia em ciclovia, com paragens para o xixi e para as fotos escondidas da floresta começámos a sentir os sinais de uma grande cidade. Mas isto é a Alemanha. Assim que as vias de acesso ganham dimensão, assim também as ciclovias se multiplicam para facilitar o acesso ao centro.


Houve uma altura que fomos dar ao rio. Seguimos pela sua margem, mas a maré devia estar a encher, porque as águas subiam a uma velocidade vertiginosa, alagando caminhos, e ervas baixas, onde uma multitude de pessoas se refastelavam ao sol. Não deve ser todos os dias, por isso à que aproveitar o solinho quando aparece. Nós pedalámos dali para fora, não querendo descobrir se conseguimos pedalar sobre as águas. Deixámos essa averiguação para quando chegarmos à Holanda.


Uma vez no centro e um pouco desorientados, perguntámos as direcções a um taxista. Ao passar pelas ruas e ao ver as casas, típicas supomos, imaginamos como seriam no interior. Só as vimos até agora em filmes.
Mas a campainha que tocámos pertencia a uma dessas casas, e a Tinka e o Philipp  receberam-nos, ajudando a carregar as tralhas pelas escadas em caracol que serpenteavam pelos dois andares. A Norah dormia, por isso não a conhecemos neste dia.

Instalámo-nos no sofá da sala, como manda a tradição do couchsurfing, e preparámo-nos para um serão plácido no último andar. A mesa convidava ao convívio e à conversa. O mapa do mundo por detrás, não deixava que houvesse momentos mortos e o pátio com vista sobre a cidade, incitava a nostalgia. Estamos em Bremen.



...há um ano atrás: Lisboa e arredores

Ummern - Bierde

A pequena barraca para manter seca a palha, manteve-nos secos também, apesar da forte neblina e humidade que nos rodeavam. Estamos nas terras baixas da Alemanha. Também devemos estar a chegar ao Inverno, porque ao começar a pedalar, sentimos um frio que trouxe memórias de mãos e pés gelados, durante os meses da lareira acesa. Poucos metros à frente, trocámos as chanatas pelas botas e vestimos o casaco.


Tal como e Alex de Flechtorf nos informou, esta zona da Alemanha é muito popular para os ciclistas. A falta de montanhas e colinas, as constantes florestas, os campos de milho e as típicas casas, fazem as viagens de bicicleta, um regalo para os olhos e sentidos. E não temos que partilhar as estradas com os carros, seguindo sempre uma ciclovia, devidamente sinalizada. Um prazer matinal, este de pedalar na Alemanha. Estamos a tentar fazer as pazes com os trilhos ciclistas, depois do fiasco dos dias após Leipzig.
 

Em Celle, entrámos para o centro. Aqui, todas as casas estão renovadas, embora a suas tortas vigas de madeira lembrem que já têm algumas centenas de anos. Tirando isso, tudo parece novo.
Encontrámos um banquinho, e enfiámos a bucha da manhã. À nossa volta, as gentes desta terra seguiam a sua rotina diária, com o apoio da omnipresente bicicleta. Aqui, todos pareciam chiques e tornavam fashion o uso de saltos altos e dois pedais.
 

Já nem ligamos muito às horas da refeição. Cada país têm as suas horas de comer. Uns comem que nem pardais, outros que nem javalis esfomeados. Uns passam o dia a comer, outros comem uma ou duas vezes ao dia. Nós seguimos a corrente de cada país e aos poucos encontramos a nossa. Sem calor ou frio extremos, com os dias ainda bem longos, acabamos por comer apenas quando temos fome. Paramos quando nos apetece. Os quilómetros vão-se fazendo e depois dos felizes cinquenta, tudo o que vêm à rede é peixe!

O dia a terminar, e a busca normal de água para um confortável campismo começa. Desta vez, encontramos uma gasolineira em que não temos que pagar para usufruir do WC. Seria isso, uma coisa da Alemanha do leste? Enchemos os cantis e os sacos de água. Aproveitamos para encher os pneus também, e é nessa altura que a Ana repara nuns compridos rasgões no seu pneu traseiro e num sinais de desgaste nos das frente. Não são furos. São rasgões laterais que parecem que vão rebentar a qualquer momento! Ao olhar para o conjunto de pneus da outra bicicleta, uns rasgões ainda maiores! Mas o que é isto? Demasiada pressão? A menos?

Não há nada a fazer. Cheira-nos que é de pedalar com pouca pressão e muito peso. Negligenciamos demasiado a manutenção de tudo o que envolve a bicicleta. Ontem foram aos travões e as câmaras de ar que deram problemas. Hoje são os pneus que mostram a nossa falta de cuidado. Quando tivermos na tenda, logo ligámos o computador e consultamos o mestre Zinn.
 

Uns quilómetros mais há frente, entrámos para a densa floresta à nossa esquerda. Com o solo coberto de fofinho musgo, não foi difícil encontrar um spot onde pernoitar.
Já dentro da cama azul, em frente ao computador e à bíblia da mecânica de bicicletas fotografada antes de sairmos de Portugal, a resposta ao dilema. Pouca pressão nos pneus, pode causar "snake bites". Deve ser isso que nós temos. Fomos mordidos pela serpente da preguiça na manutenção.


...há um ano atrás: Lisboa e arredores

Flechtorf - Ummern

Se foi por falar muito de furos durante o fim-de-semana, não sabemos. Mas quando tirámos as biclas da garagem, o pneu da frente da Ana, estava em baixo! Seria um furo? Demos-lhe umas bombeadas e aquilo agentou... Ufa!

O Alex foi mais cedo para o trabalho e antes de dizer adeus à Julia, ela teve que experimentar dar uma volta numa bicicleta carregada.


Com a direcção na nossa mente e algumas terras apontadas no caderno, rumámos através de ciclovias e trilhos por entre as florestas. Como de vez em quando aparecia uma placa, não nos preocupámos muito. Ficámos sim arreliados, quando após dez quilómetros o pneu da frente na bicicleta da Ana, voltou a esmorecer. Deve ser furo de certeza, mas este não é o sítio certo para remendá-lo.

Uns quilómetros e umas bombeadas mais tarde, chegámos até uma bomba de gasolina, com uma oficina ao lado. Escolhemos um cantinho e pusemos mãos à obra.
Como as bicicletas também já andavam a precisar de banho e de trocar de travões, aproveitou-se a pausa para uma manutenção. De vez em quando íamos à oficina pedir água ou se podíamos usar a casa de banho. Ali ninguém falava inglês, mas lá nos safávamos.
Depois de colocar a nova câmara de ar, ficámos sem nenhuma nova, tendo por isso que remendar as duas previamente furadas. Um senhor da oficina, o dono se calhar, olhava para nós e dizia qualquer coisa de vez em quando. Quando nos viu em problemas para colocar os novos travões, tomou ele conta do caso e afinou a coisa. Ao remendar a câmara de ar, viu o que fazíamos e abanou a cabeça a dizer que não era assim. Pegou no material e ensinou-nos a bela arte de remendar um furo.
Ofereceu-nos uma chave para o pipo, presenteou-nos com uma Sprite antes de partirmos e nós saímos dali a achar que em todo o lado encontramos gente simpática.


Quando a tarde já ia lançada, começámos em busca de pernoita em local abrigado. Aquelas nuvens já não nos enganam. A aldeia onde nos encontrávamos era composta de grandes mansões e celeiros a condizer. Nós até queríamos perguntar se poderíamos ficar debaixo de um dos telhados das máquinas, mas não víamos ninguém na rua. Começou a chover, torrencialmente, e abrigámo-nos junto a uma máquina agrícola gigante. O sítio não era mau do todo, mas dava nas vistas aos carros que passavam. Fizemos o jantar à espera que algo acontecesse que nos ajudasse a decidir.
Eis que uma rapariga aparece e diz olá. Nós fomos logo ter com ela a perguntar se haveria problema em ficar ali. Toda simpática, ela achava que sim, mas foi perguntar aos pais por autorização. Antes que pudéssemos pedir para ir também, já ela estava a entrar em casa. De antemão, já auspiciávamos que sem nos ver em carne e osso, é complicado para as pessoas aceitarem dois estranhos debaixo de um tecto deles. Mesmo que seja a filha a pedir.
E assim foi. A rapariga voltou com cara triste para nos dizer que tínhamos que sair dali.


Com o sol já a desaparecer, as opções desapareciam com ele também. À saída da mesma vila, uma igreja. Fomos espreitar nas traseiras, e um recanto, com um semi-tecto pareceu-nos a melhor hipótese tendo em conta a situação...

Um xixi, mais tarde, a Ana veio a correr a gesticular para um novo spot que tinha encontrado. Com espaço suficiente para a nossa tenda, uma cama de palha, protegida por um tecto, foi onde dormimos essa noite. Onde é que vamos dormir, Alex? Hoje vamos dormir em cima de palha, tal como o menino Jesus.


...há um ano atrás: Lisboa e arredores

Flechtorf


Ainda é cedo. Como não estamos numa tenda, deixámo-nos ficar até ouvirmos os passos dos nossos anfitriões. O tempo passa, e umas portas abrem-se, os sons do início do dia começam e nós saímos da cama e juntamo-nos ao mundo.

A Julia e o Alex já andavam atarefados a preparar tudo. Nós claro que gostamos, mas sentimos sempre a vontade incómoda de querer participar. Sentamo-nos à mesa pouco depois, para um repasto de café, chá, ovos mexidos, pão,queijo, quark, milch e carnes fumadas.
É ao sabor destes ingredientes que começa a conversa. Era difícil parar de falar com eles. Sempre a a partilhar histórias, um tema a levar ao outro e uma palavra a iniciar outro tópico.

O Alex é jornalista desportivo. Doido por futebol, até já escreveu um livro sobre isso e tudo. Deixou-nos curiosos, porque nos parecia ser um livro bem-disposto! A Júlia trabalhava no ramo da imobiliária! Sempre divertidos, partilharam connosco o seu jogo dos países. A Júlia ganha com cinquenta e muitos países visitados e o Alex quarenta e tal. Quando se fala em visitar algum sítio, os country points vêm sempre à baila. Juntos fizeram couchsurfing pela primeira vez em Portugal, e a Júlia, em especial, fala disso com um brilho nos olhos. Eles adoraram e em grande parte, deve-se ao casal que os recebeu e ao seu gato. Será que vamos ter de esperar pela meta dos cem países para nos virem visitar? O ponto de Portugal já o têm!


O repasto termina, a chuva caía forte lá fora, por isso prepara-se outro café/chá e brinca-se com o Carlos. Mas a conversa não pára.
Uma aberta nas nuvens, vamos ou não? É isso ou ficar o dia todo em casa. Fomos então, visitar a cidade grande de Braunschweig.

Esta não levou com o comunismo em cima. Levou foi, com as bombas dos aliados. Muitos dos edifícios tiveram que ser construídos de raiz ou renovados até serem a imagem espelhada do seu antecessor. Sabiam que foi em Braunschweig que um austríaco famoso oficializou a sua nacionalidade alemã? Logo a seguir, deixou crescer o bigode rectangular debaixo do nariz. e pedia as pessoas para levantar a mão direita ao pronunciarem o seu nome. Chamavam-lhe Adolfo.


Demos um passeio pelo centro e vimos uns edifícios de escritórios artísticos. Deve ser divertido trabalhar aqui. A chuva voltou e tivemos que fugir para debaixo de umas sombrinhas numa esplanada onde dezenas de alemães bebericavam a sua bica, que por aqui têm o volume de uma cerveja!

Por obra do acaso, a conversa ia dar muitas vezes ao tema dos furos nas nossas bicicletas. Não queremos ser supersticiosos, mas tememos que ao falar muito nisso, a coisa aconteça.

Quando parou de chover, fomos ver a parte velha da cidade enquanto o Alex e a Julia nos falavam disto e daquilo, das curiosidades por detrás dos monumentos. Ao nosso lado, um casal seguia um homem de trinta e muitos anos. Este último era alemão, o casal não. Falavam entre eles em inglês e um pressentimento disse-me que ali estava a decorrer um outro encontro de couchsurfing, pois o homem também estava a explicar as mesmas coisas que os nossos anfitriões nos diziam. Curioso.

A estátua no meio da praça, foi alterada pouco depois de ser feita. Os críticos não foram brandos e assim o autor decidiu inclui-los na obra também, num sítio muito interessante...


Ao jantar, com a língua inglesa já enraizada depois de todo o dia a falar, o Alex peguntou-nos onde iríamos dormir amanhã. A nossa resposta, "we don't know", de tão normal e natural que é para nós, impressionou o Alex. Se não são estes momentos, já não nos recordamos do quão diferente se tornou a nossa rotina diária.


...há um ano atrás: Lisboa e arredores

Oschersleben - Flechtorf


O acordar foi seco, por incrível que pareça! A tenda tinha salpicos da folhagem e só isso a fez ficar molhada, porque a pouca chuva nocturna secou antes do amanhecer com a brisa!
Um ciclista com o cão na passeata matinal no campo lavrado. Estamos na Alemanha. Até nos campos sem ciclovia eles andam. Mas este fingiu que não nos viu, enquanto comíamos o muesli.
Voltámos ao grande cruzamento do dia anterior e avançámos alguns quilómetros por outra saída até que surgiu uma placa que não devíamos estar a ver e voltámos tudo para trás. Ligámos o computador para olhar para o mapa, e lá fomos nós.



Antes do almoço, algo apareceu durante o passeio por entre as aldeias. Uma placa com o mapa da Europa. Um linha branca dividia-a em duas. Sem nos apercebermos, nem sequer nos lembrámos, acabáramos de chegar ao "Muro" que durante tanto tempo separou o ocidente do leste. Mas como a linha divisória pelos vistos tinha alguma espessura, durante uns 2 ou 3 quilómetros a placa apareceu várias vezes, a lembrar como era o mundo naquela altura e quando o deixou de ser.



As vilas mudaram assim que entrámos na zona intocada pelo comunismo. As casas maiores, mais elaboradas. Muitas delas acompanhadas por grandes celeiros e armazéns. Por aqui vivia-se bem, e as bananas e laranjas não apareceriam só no Natal, provavelmente...

Cidade à vista, e fome a acompanhar. Parámos cozinhámos, escrevemos num muro, visitámos o centro da cidade (que por sinal era bastante bonito) e continuámos.  Com ruas de casas típicas dos dois lados, um bocado tortas por causa da madeira que já é velha e empenou, e uma praça lindíssima. Com um igreja imponente e cores fortes a contrastar com o céu azul e as nuvens brancas.



Atravessámos a floresta, na direcção da vila dos nossos anfitriões. Eles avisaram-nos que iam começar a acender o churrasco. Acelerámos as pedaladas.

Demos umas voltas na vila, em busca da rua, mas tivemos que perguntar. O alemão que percebemos é pouco, mas chega para as direcções. Basta decorar as palavras chave: direita, esquerda, em frente, rotunda e semáforos. Existem mais algumas, mas estas são suficientes.

O Alex e a Julia, estavam à nossa espera, com o Carlos, o gato. Arrumámos as malas no quarto e as biclas na garagem. Tomámos a banhoca, que soube ainda melhor após dias de chuva e vento. Já desistimos de sonhar com dias de Verão.

Existem vários tipos de salsicha na Alemanha. Não provámos todas, mas aquelas que foram grelhadas, eram uma maravilha. Conversámos bastante, no pátio da casa com o som de fundo dos garfos e talheres. Aos poucos fomos aprendendo como eram as coisas do lado de cá do "Muro", porque quase toda a gente tinha amigos ou familiares a viver do outro lado, que visitavam de vez em quando. Como, ao chegaram à fronteira, entregavam o passaporte, que era carimbado deste lado, seguia por uns tubos até ao outro lado da fronteira e era de novo carimbado (ou não!) lá. Enquanto isso, as pessoas atravessavam a zona neutra que separava as duas Alemanhas. Aprendemos como Berlin era uma ilha no leste. Um corredor ligava o ocidente à capital, mas esta era rodeada por um cerco e dividida em duas por um Muro. Uma capital dividida para dois países.

Aprendemos muito com a Julia e o Alex, mas o João Pestana, pôs fim ao serão e ao cansaço da semana.

Mais fotos...

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Trebitz - Oschersleben

Passámos a manhã à espera que chovesse a qualquer momento, de tão carregadas que estavam as nuvens em cima das nossas cabeças.
Mas à entrada de uma pequena cidade, somos distraídos pela ruas cheias de gente. O mercado de fruta e legumes, flores, salsichas e comida pronta. No meio da confusão duas raparigas passam por nós de malas na bicicleta. Tinham um ar jovem, mas rapidamente as perdemos de vista. Voltámos a vê-las mais à frente, com um homem, que achámos ser o pai que viaja com as filhas numas férias pelo país.


Mais uma vez andámos um pouco perdidos com as estradas porque nos cruzamentos é sempre preciso avançar mais um pouco até vermos a cidade ou direcções que pretendemos seguir. Tentamos várias vezes pedir ajuda às pessoas e todas são são muito prestáveis e tentam ao máximo ajudar-nos, mas nós conseguimos embrulhar a informação toda e entear  o fio.

Tudo se resolve e seguimos. Ora, na berma da estrada, ora a subir e descer passeios. Tentamos respeitar os sinais com pista obrigatória para ciclistas e peões, mas confesso que me tira do sério ciclovias de duzentos metros ou às vezes um pouco mais acabarem sem alternativa a seguir e no meio do nada, obrigando -nos a retomar a berma. Se seguimos na berma e ignoramos os sinais, é costume ouvirmos uns automobilistas a reclamar ou levar com uns olhares de soslaio. Tentem entender, nós tentamos.... Gostamos de pedalar, mas andar aos s's e a saltar passeios não é bem o estilo de viagem que tínhamos em mente.

Para não variar, à hora de almoço, uma chuvinha para animar a malta e lembrar que nem só de sol vive o homem, mas de também da água que cai do céu. E mais uma vez nós de cantis vazios, cheios de sede, e sem ver ninguém na rua a quem pedir! Ironia! Fontes, torneiras ou posto de gasolina, é difícil ou quase inexistente, pelo meio de estradas e vilas secundárias.


Comemos pão com salsichas, para diversificar. Há muito que não comíamos e tínhamos saudades. O nosso pão aqui é invariavelmente com sementes e muitas vezes escuro. De mistura ou de centeio, daqueles densos em que se come uma fatia e a seguir se sente um peso no estômago. Gostamos muito deste pãozinho alemão.

Entre as vilas e aldeias as estradas temos sempre árvores de fruto a acompanhar. Pereiras, macieiras e ameixoeiras. Custa um bocadinho não olhar, não cobiçar e não parar a todo o instante para um rápida colheita. Claro, que nos perguntamos quem será que trata disto tudo e quem usufruiu desta fruta toda. Será que é uma simpatia para os automobilistas! Na Turquia as árvores de fruto que existiam no meio da rua não passavam indiferentes a quem por lá passava e havia sempre quem se pusesse debaixo da árvore esticado a apanhar e comer fruta. Mas aqui não. Ficamos um bocado na dúvida se podemos e como não vemos os locais a fazê-lo intriga-nos o motivo. Mas ao fim de tantos dias a olhar, a querer,  caímos em tentação e enchemos o saco de pêras, ferramos o dente numa e continuamos.


Ao final da tarde entramos numa cidade, o oásis de uma estação de gasolina com água infinita faz-nos parar para encher os sacos. Mas para sair, olhamos para todas as saídas das rotundas e pontos de interrogação sem resposta surgem no ar. Seguimos por uma, mas com água nos sacos e a noite a chegar não nos preocupámos se era a certa ou não. Queríamos só um sítio para pernoitar, de preferência com um tecto.

Os arredores da cidade não inspiravam confiança, e por isso enfiámo-nos no primeiro campo que encontrámos, quase à saída da cidade. O trigo já tinha sido cortado e as árvores protegiam-nos da estrada. Estava tudo molhado e  nada parecia convidar a grandes expansões de actividades no exterior. Lesmas e caracóis, folhas amareladas húmidas faziam prever um acordar molhado.  Ao fundo víamos as luzes nas janelas das casas a começarem a acender. Não era nem de longe o nosso sítio ideal, mas os humores estavam em baixo, e só queríamos ir dormir. Quanto menos trabalho melhor. Mal comemos, uns cereais (muesli é o rei aqui!) e enfiámo-nos logo na tenda!


...há um ano atrás: Lau - Forte da Casa

Schkeuditz - Trebitz

A meio da noite levámos com uma flashada de um carro. Mesmo em direcção a nós, não havia como esconder o óbvio. Sem grande vontade, aguardámos. Não havia vontade nenhuma de sair da tenda, pedir desculpas e pedir para ali ficar. Já para não falar de que a noite ia longa e mais umas horas e o sol já brilharia...por detrás das nuvens! Devia ser o guarda do outro armazém lá ao lado. Não saímos e ninguém disse nada. Prosseguiram a sua ronda...e nós os roncos!

De energia renovada pelo repouso nocturno, começámos o dia! Hoje é que íamos sair dali! Daquele beco sem saída, desse por onde desse. Seguimos pelo caminho que tinha o maldito sinal proibido à espera de a qualquer momento ouvir buzinanços ou janelas dos carros abertas ao nosso lado e alemão e gestos a mandar-nos para outro lado.
Mas nada! Alcançámos a cidade a seguir, e no seguimento para a outra cidade esbarramos, novamente com proibido bicicletas.  Com tanto tempo desperdiçado a tentar caminhos alternativos, já aprendemos que estes sinais podem dizer respeito apenas por alguns quilómetros daquela estrada, e que mais à frente, sem nenhum aviso, já podemos voltar a rolar junto aos carros. Solução? Ignorar, e ter cuidado, mas seguir!


Os dez mil quilómetros! Um número bem redondo com muitos zeros, que celebrámos com a foto da praxe! As nossas mãos já não são suficientes e a ideia de pedir uma mão extra ficará para a próxima, já que não passou ninguém por nós!


Passámos o dia a levar com o vento de frente e a lutar para continuar a pedalar contra a corrente! Ao passar ao lado de um campo de trigo, a enorme máquina que o colhia o trigo, pôs-se na posição ideal para o vento trazer todo o pó e miudezas bem para cima de nós.

O caminho continuou diante de nós a mostrar-se enigmático. Chegamos a um cruzamento com cinco saídas, incluindo a nossa, e agora? Vamos perguntar! O senhor respondeu-nos: viram ali à direita. Para me certificar, fiz com a mão o gesto da direcção que devíamos tomar! Ele acenou que sim e prosseguiu num passo rápido, sem me deixar perguntar qual das direitas. Escolhemos, e escolhemos bem!

A meio da tarde, parámos numa enorme estação de gasolina. Camiões, e camionistas por todo o lado. Um duche por três euros. Que tentadora publicidade. Enchemos os cantis, e o saco dromedário com alguma água e discutimos se ficávamos por ali ou não! Muito barulho dos carros, camiões, e luzes por todo o lado, dissuadiram-nos da ideia.

A  nossa estrada que seguia em frente e outra que da nossa seguia para a direita, até passar por cima da ponte, mesmo por cima da estrada onde íamos. O espaço entre tudo isto, tinha um grande relvado, bem tratado, arbustos e árvores. Sem pensar empurrámos as bicicletas para ali, e estudando ângulos, pusemo-nos atrás dos arbustos que mais nos protegiam. O tráfego, era pouco ou quase nenhum, pois já anoitecia. Mas mesmo assim, fomos descobertos. Um carro que entra por ali, mesmo a direito em cima da relva. Sai de lá o jardineiro. Explicámos e pedimos. Ele disse, sem problemas, sim senhor, mas por favor para deixarmos tudo limpo! Ok! Mais descansados ficamos para a noite.
Com as nuvens a ameaçar chuva bem por cima de nós, ao menos consola-me a ideia de que o "dono" sabe que estamos aqui!


...há um ano atrás: Comporta - Lau

Leipzig - Schkeuditz

A Cristiana parte para o Novo México em Outubro. Até lá acaba os trabalhos na faculdade e os cartoons que que dão asas à sua criatividade. Ainda tivemos tempo antes de sair para ver o trailer dos desenhos animados que andava a fazer, e que descortinavam como o Hitler se tinha tornado tão mau.


No centro da cidade, lojas de bicicletas! Visitámos algumas, mas sem sentir nada. Não as nossas bicicletas não ficariam bem ali. Os suportes dianteiros não foram substituídos! E sem ser um micro abre-latas, da loja de desportos de out-door também não levámos mais nada. O melhor era sair dali, do antro do consumismo e começar a pedalar que a cidade era bem grande e estávamos mesmo no meio.

Saímos de Leipzig, ou talvez não... As ciclovias seguiam ao lado da estrada e de repente acabavam à entrada de uma via rápida com sinal de proibido bicicletas. Nem uma única alusão a que caminho seguir para ir até aquele sítio na placa, mas sem ser por ali. Voltámos atrás, e tentamos virar na outra saída, pedalamos e ao fim de alguns quilómetros a direcção que tomamos é, completamente, o oposto do que queremos, e decidimos não avançar mais. As placas não ajudam. podia ser que outra estrada mais calma fosse também dar onde queríamos, mas não víamos sinais.

A placa com Leipzig riscada assinalou a nossa saída de Leipzig. A primeira. Foram tal as voltas que demos para encontar outro caminho que passámos cinco vezes por placas em sítios diferentes a assinalar a saída de Leipzig. Cidades! Bahhh... É  por estas e por outras que fugimos delas.

A meio do dia os humores já estavam estragados. Azedos!! Já dizíamos mal da Alemanha por todos os lados, e das ciclovias que acabavam assim sem mais nem menos e nos deixavam no meio de lado nenhum, sem saber por onde seguir.
Atravessámos uma linha de comboio de bicicletas carregadas ao lado, segundos antes do comboio passar, porque a ciclovia acabava ali e o elevador estava avariado. Lá se foram todas as nossas idealizações da bela Alemanha amiga das bicicletas!


Nem a olhar para o mapa, conseguíamos perceber se aquela estrada era ciclável ou não. Fomos dar ao aeroporto, e andámos por ali às voltas a pensar no que fazer. Lá decidimos encerrar a loja!  Chegava de andar às voltas, fazer quilómetros e não sair do mesmo sítio. Para isso tinha-me inscrito num ginásio! Mas como sairíamos dali? Que labirinto era  aquele que só os carros podiam sair dele?
Vimos a luz ao fundo do túnel, que é como quem diz o sinal hamburgueiro mais conhecido no mundo! Vamos ligar o portátil e estudar melhor o mapa. Ao cruzar-nos com um ciclcista, perguntámos-lhe como sair dali. Ele indicou-nos a estrada que queríamos pedalar, mas que tinha o sinal a proibir as bicicletas. Disse que não havia problema, que podíamos ir por ali. Ok. Amanhã, não quero saber, sigo por ali mesmo que os carros buzinem!
Virámos para ligar o computador à corrente  e à internet, já relaxados porque tínhamos decidido que íamos ficar por ali, algures a descansar e no dia seguinte de cabeça fresca, resolveríamos o elaborado quebra-cabeças de como chegar à cidade seguinte, numa estrada que também desse para as bicicletas. Assim que tomámos a estrada para ir à internet, pareceu-nos de imediato que aquela era a estrada certa. Mesmo que não fosse, a que queríamos, ía na direcção certa.

Os problemas das estradas ficaram para o dia seguinte. Voltámos para perto da ciclovia de terra batida, perto de uns armazéns que pareciam semi abandonados. Um carro estacionado à porta. Nestas alturas sinto-me uma detective, à procura de indícios de presença de gente. Luzes, barulhos, janelas abertas, carros, roupa estendida, pequeninas evidências de que não estamos sozinhos e de que se escolhermos ficar por ali, é possível que venhamos a ter companhia.


Mas o tempo, ou melhor as nuvens não davam vontade de sair daquele conforto de ter um tecto para nos impedir de acordar todos molhados. Ficámos na entrada de um antigo parque de estacionamento, quiçá centro comercial, à espera que o manto do anoitecer fosse escuro o suficiente para encobrir a nossa tenda amarela canário!
Mais um ciclista a desanuviar a mente, ao fim do dia de trabalho, a quem perguntámos se aquela estrada, a tal do sinal, era ciclável. E mais um compincha que disse que sim.
Amanhã!  Amanhã é que vai ser...


...há um ano atrás: Lagoa de Santo André - Comporta

Leipzig

O Félix teve que ir à universidade de manhã cedo. Nós tomámos o pequeno-almoço com a Cristiana. Hoje que estamos parados, está bom tempo. Como será amanhã?

Não sei se era do café acabado de moer, da cafeteira ou sei lá mais do quê, mas aquele café com leite pela manhã, foi delicioso.

A Cristiana tinha trabalhos para fazer, antes que os pais dela chegassem para passar o dia com ela e o Félix. É que ela vai estudar durante seis meses para a Cidade do México, e todos os momentos para dizer adeus à filha são poucos. Quando finalmente todos chegaram, os pais da Cristiana, e o Félix, saíram de casa. Mas ficou o convite para nos juntarmos a eles quando fossem jantar fora, ao restaurante Mexicano.

Nós voltámos para a ronha da cama, a escrever no blogue ou só a ler. Depois do dia de ontem e da ventania que apanhámos, não estávamos com muita vontade de confraternizar com a mãe Natureza. Por muito alegre que ela estivesse hoje.
Cozinhámos uma tachada de pasta para o almoço e fomos dar uma volta para a desmoer.


Não explorámos muito além. Descemos a rua da casa deles. Vimos bicicletas por todo o lado e um canal junto do qual os cidadãos rolavam os seus patins e davam nos seus pedais. Por todo o lado, as bicicletas partilhavam com os carros as imagens que os olhos viam. Com atrelado, simples pasteleiras, com banquinhos para as crianças junto do guiador, e quase todas com um cesto à frente para as compras. Aqui a bicicleta é utilitária!


Voltámos para casa. Eles aqui pelos vistos jantam cedo, porque passavam pouco das seis da tarde quanto nos sentámos à mesa da esplanada mexicana com o pais da Cristiana e o nosso casal anfitrião.


Conversámos um pouco durante a paparoca cheia de molhos coloridos e com sons crocantes. Descobrimos que ambos os pais da Cristiana são veterinários e que ambos tinham histórias para contar sobre a altura em que um muro dividia o país. Salientamos aqui, a viagem à boleia que a mãe da Cristiana fez, aquando da sua adolescência. Ela e mais três amigos,com uma morada escrevinhada num papel de um amigo de um amigo, esticaram o dedo e foram à boleia, pelos países satélites da União Soviética até chegarem à ditadura que a Roménia vivia na altura. Não havia telefones, telemóveis ou internet. Um grupo de amigos e uma morada. Era a maneira antiga de fazer couchsurfing.


Elsterweda - Leipzig

O sofá que é tão largo que parece uma cama. Ainda me surpreende o quão fácil é dormir e acordar numa cama diferente quase todos os dias. Ás vezes temos o chão, encafuados entre as os alforges e as mobílias da casa. Outras temos um sofá, numa sala ou quarto, outras ainda, uma cama numa mansão. Às vezes temos janelas. Outras não. Os vizinhos ouvem-se através das paredes, nos prédios. Os passarinhos, quando é uma casa do campo.
Não ouvimos passarinhos, mas o sol a entrar pela janela, anunciava um dia soalheiro.

Com a Kerstin, tomámos um pequeno-almoço relaxado, conversando sobre qual o melhor caminho para sair da vila e atravessar os campos, pelo labirinto das estradas campestres. Os talheres chocavam com os pratos,a salsicha cortada e o ovo mexido empurrados para cima do pão.


Apontámos no papel as vilas a passar. Vimos e revimos o Google maps, durante o fim-de-semana. Mas uma coisa é o ecrã. Quando se está mesmo lá, e as árvores escondem as referências, as estradas bifurcam-se sem sinalizações e tudo parece igual, a história é outra. Valha-nos o sol. Esse não engana e orienta-nos na direcção certa. Oeste. Mesmo que andemos aos zigue-zagues pelos campos, entre estradas e ciclovias, asfalto e terra batida, lá vamos pedalando na direcção certa.

Tudo estava presente para um dia magnífico, em cima de bicicleta. Os campos alemães, com as florestas a fazerem as vezes de ilhas e a estrada a serpentar por entre elas e através do arvoredo. As estradas secundárias a ligar as pequenas vilas. O parco trânsito e o ocasional tractor. As nuvens... Quando se viaja em planícies e as nuvens pintam o céu, podemos vislumbrar e ter alguma percepção da enormidade que é a abobada celeste. Hoje foi um dia desses. Todos os tipos de nuvens a passarem por nós. Cinzentas e ameaçadoras, fofinhas e rechonchudas branquinhas. Difusas e sem forma lá bem em cima. Gigantes brancos que se escondem no horizonte longínquo da planície. Hoje foi possível ver e ter a noção de passar sob três conjuntos de nuvens. Passar, não. Ser passado! Pois são as nuvens que se movem com rapidez lá em cima. E sempre que uma "camada" se aproxima de nós, é como se um muro de chuva se aproximasse. Por vezes víamos uma porta por onde podíamos atravessar secos. Outras, tivemos que procurar abrigo na primeira garagem que se apresentou.


Tal como disse, tudo estava presente para um dia magnífico. Tudo, expecto o vento. Já há algum tempo que não tínhamos um dia assim. Em que temos que procurar conforto nas paisagens e nas imagens que passam por nós, para esquecer que estamos a levar com uma ventania de frente, nos últimos 20km. com chapadas de lado, durante 40km. Para esquecer as mudanças de montanhas inclinadas que usamos em terreno plano, por causa do senhor vento.
Foi assim todo o dia. A pedalar por planícies em direcção a Leipzig. Sempre contra o vento.

Mas não fazíamos ideia de quão grande era Leipzig e ainda a dez quilómetros da cidade, uma senhora na estrada a acenar-nos e a avisar-nos que eram proibidas as bicicletas nesta estrada. Mais à frente um sinal, alertava-nos do mesmo. O que fazer então, quando não se vê alternativas à nossa volta e sol já toca no horizonte, levando com ele a luz do dia?
A  Ana, aponta para um caminho de terra batida que segue mais ou menos a direcção da estrada proibida. Descemos com as biclas por ele e seguimo-lo, inseguros do seu destino. Um senhor na vila a seguir, abana a cabeça, negativamente, ao ouvir a palavra Leipzig e segue caminho sem sequer parar.
Andávamos nós a tentar encontrar trilhos e caminhos de tractores que nos aproximassem da cidade, quando isto aparece:


A nossa amiga concha! Aqui têm duas espadas com ela, mas não há que enganar, é a concha que leva os peregrinos até Santiago! Em boa hora chegou, porque de certeza que nos levará, pelo menos, até às portas da cidade. Têm que levar!
Seguimo-la o melhor que pudemos, pois aqui não é tão explícito o Camiño como é em Espanha. Mas lá nos safámos.

E quando a concha desapareceu, já as paragens dos autocarros e dos eléctricos nos rodeavam. uma breve consulta ao mapa dos transportes públicos, uma pergunta gesticular ao motorista do autocarro e lá fomos nós.
Que bem que sabe pedalar na Alemanha. É de noite, estamos numa grande cidade, completamente nova para nós. As ruas cruzam-se por todos os lados e os eléctricos misturam-se com os carros, mas sempre, em algum sitio, existe uma pacífica ciclovia que nos levou pelo coração da cidade e através da confusão, até à casa do Félix e da Christi. Eram dez e meia quando chegámos e o conta-quilómetros marcava 112km. Foi o dia mais longo, dos Nomadiclas, até à data.


Ambos designers e ambos já no fim dos seus estudos, a orientar estágios. Ela na Cidade do México, o Félix algures pela Europa. Ouvimos as suas histórias e contámos as nossas, sobre um prato delicioso de esparguete com courgete e tomate.

De barriga cheia e banho tomado, não havia que enganar onde caímos a seguir. Na cama cosy, que a Christi preparou para nós, entre as mobílias e os alforges, no escritório do Félix.

Elsterweda

Como os dias ameaçavam ficar negros, não nos chateámos muito em ficar dois dias fora dos selins. Passámos o fim-de-semana em Elsterweda com a Kerstin.
Como o pessoal do andar da Kerstin andava na ronha, fui lá abaixo admirar o jardim e o sol enquanto durava. O pai e a mãe da Kerstin já andavam na lavoura dos seus legumes e flores. Tentei meter conversa com o pai, que às primeiras horas da manhã, já vinha a suar. Falámos um bocado. Falar não, gesticular e palavras monossilábicas para perceber como a pérgola em bambu tinha sido construída. Mas o meu alemão era tão bom como o inglês dele, e a conversa ficou por ali.


Após pequeno-almoçar, fomos de pópó até ao armazém do sócio e amigo da nossa anfitriã, ajudar a construir um carro de desfile, para as festividades de Elsterweda que se aproximavam. O armazém era enorme, e por todo o lado reinava o bambo. mobília em bambo, amostras de possíveis padrões de chão/parede, ferramentas de carpinteiro, lianas secas e montes de bancadas. No centro do armazém, um enorme atrelado, com dez metro de comprimento e da altura de um camião. Com um palco central, uma esplanada, uma mesa de DJ, uma casota e um alpendre, quase que se podia viver ali!
O dono do armazém, Amin, era um daqueles tipos que não se encontra todos os dias. Recebeu-nos com um sorriso e de braços abertos. Ficou super-contente por ali estarmos e por estarmos a ajudar. Sempre que nos apanhava ao pé dele, não parava de falar. Com o tempo fomos descobrindo a história de vida deste homem singular...

É alemão da parte da mãe e marroquino da parte do pai, e com uma infância e adolescência passadas nas Filipinas, pareceu-nos tudo menos o típico alemão que imaginamos. No seu inglês perfeito, contou-nos as suas histórias turbulentas nas Filipinas, falou-nos do seu país (as Filipinas) e da maneira de viver por lá. Dos costumes e tradições. Dos defeitos e dos feitios. Nunca parava de falar e nós absorvíamos tudo como umas esponjas. E ainda nos dizia que a mãe quando falava, não parava! Tal mãe, tal filho!
Das Filipinas, trouxe a sabedoria de trabalhar com um material mágico da natureza: o bambo. Importa o material de lá e juntamente com a Kerstin, montam e decoram espaços de lazer e bem estar. Bares, discotecas, festivais e restaurantes, já estão nos seu portofólio.


Os amigos da Kerstin iam chegando e aos poucos a trupe ganhou forma. As cervejas também não faltavam. Estamos na Alemanha e aqui o normal, são as jolas de meio litro! Alguém trouxe uns pães e umas salsichas.

Apertámos cabos e bancadas, levantámos alpendres, decorámos com flores e espetámos uns agrafos aqui e ali. Todos participavam. Ao fim da tarde o atrelado parecia outro.

A fome apertava. Chega de trabalho. Era sábado, por isso não era preciso esfolar o couro. A Kerstin foi à frente, comprar a carne e nós fomos com o Amin. O ponto de encontro, o alpendre de bambu no jardim da Kerstin.


Enquanto as mulheres tratavam da salada, a Ana conversava de copo de vinho na mão com a Ursula, a mãe do Amin, os homens faziam fogo e preparavam a carne para grelhar. Um molho de marinar, com toques filipinos do Amin, um aspirador que expelia o ar para apressar as brasas, umas meias litronas na mão.... Ahhh! Que bela grelhada e que bela jantarada pela noite dentro. Sempre com o Amin e a Úrsula a dominarem o tempo de antena e a levarem-nos pelas suas palavras até às Filipinas.

No domingo ninguém tinha nada para fazer. O Amin, ficou por lá e tomámos um pequeno-almoço/almoço tardio, repleto de salsichas, ovos mexidos, pão e manteiga.

A conversa serviu para passar o dia e a molenguice domingueira também lá se metia. Quando parou de chover, antes do jantar, fui ajudar o Amin a preparar o material para o seu próximo serviço, num centro comercial no sul do país. Aprovéitou-se e levou-se a bicicleta com sidecar para o armazém, para lhe dar uns retoques. Algo do género é perfeitamente rotineiro nas Filipinas e o Amin, decidiu montar uma cá, só para se divertir. Tive que atravessar a cidade com aquilo, e mais parecia estar a manobrar um elefante cego e desorientado. Abençoados travões e sortudos os inocentes carros estacionados pelo caminho!


Mais uma jantarada debaixo de um alpendre de bambo, mais uma conversa com ares asiáticos pela noite dentro, e o fim-de-semana ficou feito.


...há um ano atrás: Vila do Bispo - Carvalhal e Carvalhal