...um ano depois

Alguém nos disse um dia, bem antes da primeira pedalada, que a nossa viagem tinha começado, no momento em que decidimos fazê-la. E com razão.
Todo o processo, desde a ideia até ao dia da partida, foi uma aventura em si. Se vamos de bicicleta ou não. Se os alforges são assim ou assado. Se tentamos o couchsurfing ou não. Qual a rota? Foram decisões atrás de decisões, sempre com dúvidas e sempre com a boa ansiedade associada à descoberta. O fascínio de olhar para objetos e situações normais, sobre o ponto de vista das necessidades de uma viagem de bicicleta.


Mas se uma viagem não começa no dia da partida, dificilmente acaba no dia da chegada. Longe disso.
É difícil recordar um dia que seja, deste ano que passou, em que a experiência que vivemos nos 500 dias anteriores, não influenciasse ou nos viesse à memória. Logo ao início, ainda frescos das experiências, tudo nos alienava e todas as ações "normais" nos eram estranhas. Foi só no fim do Verão, quando o reboliço de visitas cá em casa começou a amainar, que nós começamos a amainar também e a viagem começou a ganhar contornos de sonho distante. Mas, vamos por partes....

Algumas semanas após o regresso, fixámo-nos em Tavira, na antiga casa da avó Teresa. A casa, por habitar há alguns anos, estava a precisar, no mínimo, de uma arrumo e limpeza geral, em todos os recantos. De mangas arregaçadas, fizemos uma triagem rigorosa a tudo o que se encontrava na casa. Móveis, loiças, eletrodomésticos vintage, bibelôts do tempo da Angola colonial, ferramentas dos tetrâ-avós da Corte do Pinto...


Todos os dias, durante semanas, a  decidir o que se podia aproveitar, o que se podia vender, o que se podia dar, o que se tinha que guardar. Uma trabalheira física e emocional. Ainda para mais, logo depois de termos terminado o inventário das nossas "coisas" espalhadas por aí. De um dia para o outro ficámos responsáveis pelas "coisas" acumuladas ao longo de pelo menos uma vida. A da avó Teresa.
Mas aos poucos, a casa foi ganhando forma e disposição. Aos poucos, as energias gastas na arrumação, começaram a ser substituídas pelo tempo em novos projetos e ideias que enchiam as nossas cabeças. Se é algo que não falta numa viagem de bicicleta é tempo para pensar. Tempo para criar novos sonhos e pensar na melhor forma de concretizá-los.

Começámos a recolher velhas paletes abandonadas na cidade e a desmontá-las, aproveitado as madeiras para alimentar a nossa imaginação. Usámos as ferramentas do tetra-avó para o efeito, provando que já não se fazem ferramentas como antigamente! Por agora, temos uma mesa "restaurada" com paletes, e uma dezena de projetos em papel na calha de lançamento.


A terra, as sementes e os vasos improvisados, foram enchendo a marquise e transbordando para as outras janelas da casa. Alfaces, pepinos, tomateiros, pimenteiros, salsa, coentros, girassol, salva, calendula, tomilho, feijão, manjericão, poejo, hortelãs, plantas carnudas. A ideia era criar um mini estufa de plantas comestíveis e encher a marquise de verde!
Com o tempo, a ideia ficou-se pelas alfaces atacadas por uma praga, por um único pepino, meia dúzia de pimentos e muitas pequenas moscas e mosquitos. Ainda tentámos vários remédios e mezinhas orgânicas, para salvar a horta cá de casa, mas com pouco sucesso.
Da marquise virada para Norte, mudámo-nos para um pequeno pedaço de terra a oito quilómetros de Tavira, no terreno dos pais do Lino, um amigalhaço nosso. Entre os três, lá tentamos que a horta vá para a frente, com favas e brócolos., guardadas por uma colmeia. Mas ainda estamos todos a aprender...


Fixados em Tavira, retomámos também as antigas amizades. Sempre que possível, fomos tentando partilhar o tempo com os amigos da tugalândia. Uns mais perto, outros mais longe. Ora íamos nós visita-los, ora vinham eles aos Algarves. Uns portugueses, outros não. Por vezes, até vinham de bem longe. André, Catarina e Mariana, os nossa razão para visitar a Inglaterra, passaram cá para uma almoçarada na marquise, e uma passeata pela cidade ao sabor de uma Primavera a aquecer.


A nossa família de Dueñas, também cá veio. Foi a nossa vez e lhes mostrar os cantos à casa e as iguarias cá da terra. Foi como se um pedaço da nossa viagem nos viesse visitar.

O Pablo, de Granada, partilhou a praia connosco durante a sua estadia em Santa Luzia. E durante estes encontros com "nuestros hermanos", recordámos como durante algum tempo, a língua portuguesa foi estranha para nós. Mas já não... Agora voltámos aos gagejos do espanhol, às distantes palavras italianas mal lembradas e ao inglês que por vezes sai mal, quando dantes saía tão facilmente.


A Christiane de Leipzig, e o seu amigo Christian, fizeram um esticanço de boleia, desde a Alemanha até Tavira, para aproveitar os últimos raios de sol do Verão e a tempo de ajudar a Ana com a maquilhagem e o nó da gravata do Alexandre, para o casamento da Fátima e do Joel. Dois anos depois de os visitarmos em Lagos, logo ao início da nossa demanda.


Amigos do tempo da escola do ciclo, a Sílvia e o Nuno, que vieram ter connosco passar uns dias de papo ao sol. Amigos da faculdade, a Sofia e o Gonçalo, que vieram partilhar a pequena Jasmim que estava a crescer na barriga da mãe.

E durante tudo isto, enquanto o Alexandre tele-trabalhava para a antiga empresa sediada em Lisboa, a Ana tentava a sua sorte com os jardins de infância do Sul (ou qualquer outro que lhe desse trabalho, em qualquer lado!), e com biscates de época balnear algarvio. Foi já no fim do ano, quando a coisa parecia cada vez mais negra, que lá apareceu uma sala cheia de meninos e meninas a precisar de educadora. Agora, todos os dias, a Ana vai de bicicleta para o trabalho, nos arredores de Tavira. O Alexandre também vai dando uso à bicicleta. Mas mais nos afazeres da urbe. Em vez de alforges com roupa térmica, estacas de tenda e sacos cama, enche-os com batatas, couves, laranjas e tremoços. E de vez em quando lá vem um saco de peixe fresco pendurado no guiador, ou umas conquilhas no cantil. Se dantes não faziam parte da nossa vida, agora é impensável viver sem elas. As bicicletas...
Correm estradas e caminhos, e continuam a partilhar e encher a nossa vida. Mas de vez em quando, lá foram aparecendo outras biclas cá em casa...


Pouco depois de já nos termos mudado para a casa do bairro da Atalaia, eis que o primeiro viajante a pedal nos apareceu. Amigo de um amigo, que por sua vez tem uma amiga de quem nós somos amigos! Confuso?! O Bruno de Portimão tirou uns dias de férias e foi ver até onde conseguia chegar com a bicicleta. Jantou connosco, fomos ao cinema e por cá pernoitou. Poucos dias depois de partir, já tinha chegado a Espanha, com uma mão cheia de histórias para contar.

Umas semanas mais tarde, nos desvios normais de uma consulta às páginas da web, descobrimos um casal de viajantes de bicicleta prestes a iniciar a sua viagem desde o Cabo da Roca até aos ao Oceano Pacifico. Sedentos de devolver a generosidade que encontrámos por essa estrada fora, convidámos a Amie e o Olli a passar por Tavira e descansarem um pouco. Calhou bem, porque eles estavam em plena campanha de marketing do seu projeto digital. Por cá ficaram uma semana, a trabalhar na biblioteca, a descansar as pernas e a refazer joelhos doridos, a partilhar histórias à mesa. Nós enchemo-lhes a barriga com sabores e recantos de Tavira sempre que podíamos. Foi a primeira vez, desde que chegámos, que pudemos conversar com alguém sobre este interesse comum. Poucos dias depois da partida deles, a nossa história foi parar ao seu blogue... (link). Continuamos a acompanhar e a viajar com eles. O mundo que deixámos para trás continua a mostrar-se generoso e cheio de surpresas...


As ideias de continuar a fazer algumas pedaladas de fim-de-semana com campismo selvagem à mistura, ficaram-se pelas ideias...

Apenas uma vez nos últimos 365 dias é que a nossa casa amarela voltou a ser montada sob uma oliveira. O Lino, veio ter connosco, para nos pedir dicas e sugestões para a sua ideia de pedalar até Santiago de Compostela, seguindo o quase obscuro Caminho do Leste Português, que começa em Tavira. Nós, cheios de entusiasmo, não deixámos que o dele esmorecesse e armado com as nossas teorias e os nossos alforges, lá fomos nós com ele no primeiro dia da sua viagem para Santiago, de bicicleta. Tentámos passar-lhe as nossas estratégias. Como se desenrascar com as refeições pelo caminho, quais os melhores spots para campismo selvagem, como couchsurfar a partir de um iPad! Safou-se bem e foi com orgulho que seguimos as suas aventuras pelo Facebook até chegar a Santiago, duas semanas mais tarde. Força Lino! Marrocos espera por ti!


Mas foi à pouco tempo, já em pleno Outono, que a vida nos presenteou com uma inesperada surpresa.
Esta coisa de viajar de bicicleta, acaba por criar, tal como tudo talvez, uma sub-cultura de aficionados sobre o tema. Se há uns anos atrás, procuraríamos informação sobre o tema em livros, hoje em dia com a Internet, tudo é mais acessível. Em pouco tempo, alguns nomes acabam por repetir-se. Alguns links acabam por ir dar ao mesmo sitio, e algumas viagens acabam por ser acompanhadas por várias pessoas em várias partes do mundo, ligadas por fios muito ténues.

Alguns meses depois de termos acabado a nossa viagem, o Peter Gostelow acabou a sua aventura africana de quase 3 anos. Na altura, ficámos com a ideia que a próxima aventura do Peter, seria escrever um livro. Nunca pensámos que Tavira faria parte desse processo!
Durante semanas ouvimos o Peter a contar histórias e desventuras dos últimos dez anos da sua vida. Contos de terras e costumes estranhos misturam-se com os nossos ensinamentos na bela arte de apanhar conquilhas ou como assar chouriços em álcool. Corridas pela manhã nas salinas ou subidas de bicla à Serra do Caldeirão, acabavam em petiscadas, almoçaradas e jantaradas que se prolongavam pela noite fora a discutir os prós e os contras do campismo selvagem urbano, dos subornos aos policias africanos, das diferenças de viajar a solo ou a dois, ou o que fazer quando um alforge rebola por uma ribanceira abaixo, no Paquistão. O Peter é fixe e já temos saudades dele!


E nós? E agora? Tal como dissemos no início, é difícil não pensar na viagem que fizemos ou no que deverá vir a seguir nas nossas vidas. As lembranças vão-se esfumando, mas há coisas que ficam...como nos repetia o Santi no Caminho de Santiago "o Caminho vai dar-te coisas até ao fim da vida". Muitos nos perguntaram se vamos fazer outra viagem. Para onde vamos a seguir. Estamos a descobrir. Quando soubermos mais dizemos. Um dia de cada vez, de sonho em sonho.


Quer seja na bicicleta onde nos montamos todos os dias, ou nas chuvadas que apanhamos a ir para o trabalho...
Na tenda que é montada na marquise para matar saudades, ou no saco-cama que é aberto quando visitamos a capital...
Nos desenhos de henna, que nos lembram de outras paragens, ou nas receitas sicilianas que ficaram a fazer parte da nossa ementa cá de casa.
Nos emails que trocámos com a Reyn ou nas fotos que espalhámos em molduras ou em screensavers...
É difícil matar saudades da estrada. Resistir à tentação de fazer outra "loucura", deixando para trás esta outra "loucura" rotineira. Digam o que disserem, viajar de bicicleta é fácil. Ter uma vida sedentária, sim é difícil! Conseguir olhar para os dias e semanas a passar tão rápido e tentar encontrar sinais de que estamos a evoluir e seguir em frente, é difícil!

Seriamos tontos em pensar que mais tarde ou mais cedo, não voltaremos a soltar amarras e partir à aventura. Até já temos alguns destinos em vista! A não ser que o mundo acabe daqui a dois dias, ou que a vida nos pregue uma partida, é mais do que certo que, talvez para o ano, daqui a dez anos ou com sessentas e muitos aniversários soprados. Sozinhos ou acompanhados...


Um dia, voltaremos a essa vida de nómada. Um dia voltaremos a ser Nomadiclas!


...há um ano atrás: Mértola - Tavira

...um mês mais tarde

Deixámo-nos estar por Tomar para o Ano Novo.
Foi pouco mais do que um esforço para passar a meia noite todos juntos, cada um no seu combate privado com o João Pestana, enquanto víamos quem ganhava o concurso da televisão. Comemos passas, bebemos champanhe e fomos ao sono que os lençóis guardavam.


Voltámos à capital poucos dias depois, aproveitando a boleia, e tratámos das nossas paperocracias de regresso à sociedade. Também as temos. A casa amarela foi entregue na loja para ver se a concertavam da vareta partida de que se queixava. Afinal a marca tem reputação de garantia vitalícia. A ver vamos, o que nos esperava essa viditerna garantia. Custou deixá-la assim, sem garantias para o coração.
O Alexandre foi ao escritório, antigo local de trabalho, e regressou com um tele-trabalho.

As visitas à bela e agitada Lisboa mais não deixavam que uma vontade de escapar para ambiências mais pacatas. Muito fumo, muita gente, pouco espaço, muitos carros, muito barulho, muito muito, e nós com tanto cá dentro, a conseguir espaço para mais estes muitos.


Começámos a rever as amizades deixadas para trás.
A Sílvia e o Nuno, que nos desarmou com  reviveres de dias da nossa viagem que provaram que se não era o mais assíduo leitor, é o com melhor memória. Fantástico, como guardou perguntas muito específicas sobre o que lia no nosso blogue, desde o início, e depois conseguiu lembrar-se de tudo para nos perguntar. Um chocolate para o coração,  estes amigos.
A super-unida família Durães, em Setúbal e na Quinta Piri, no Lau!. As sorridentes brincadeiras com os manos Duarte e Diogo não deixam ninguém indiferente, enquanto ajudam o avô a construir um canil e o pai a tratar dos cavalos.


No meio de tudo isto, em Lisboa e antes, em Tomar, aproveitámos e começámos a inventariar as nossas posses, acumuladas ao longo de anos e espalhadas pelos quatro cantos das nossas famílias.
Quem diz o inventário, diz mesmo tudo o que temos. Tudo o que ficou guardado e espalhado pelas casas reuniu-se aos poucos numa folha de Excel nos nossos portáteis. Assim sabíamos onde tínhamos aquela máquina de fazer sumo que precisávamos (e que não vendemos antes da viagem) ou aqueles vinte dossiers com fotocópias do tempo da secundária, que se calhar estavam melhor no ecoponto azul. Fomos esvaziando, limpando, reciclando, oferecendo, relembrando a quantidade de coisas que "temos". Uma enormidade, para quem passou ano e meio a viver feliz com o conteúdos dos alforges de uma bicicleta.
Mais tarde logo se veria o que fazer com tanta tralha. Soava a demasia e futilidade, mas o principal era escrever tudo. É necessário para o que pretendemos fazer a seguir. A nossa próxima "aventura"...

Sem casa certa, o plano nas nossas cabeças parecia fazer sentido. Todas as semanas vagueámos ao sabor da corrente, até que a Ana arranjasse um trabalho que nos fizesse lançar âncora, enquanto o Alexandre tele-trabalhava.
E assim, mudámos de poiso durante este primeiro mês de regresso, com a bagagem às costas, de casa em casa, entre as "nossas" quatro casas.
Espalhávamos a casa pelas aldeias, como se diz, e matávamos saudades enquanto inventariávamos, recolhíamos as nossas informações e esperávamos de braços abertos que o sentimento (e o trabalhinho) nos murmurasse ao ouvido, "aqui vou ser feliz!".


Não aconteceu. Pelo menos, desta maneira! Estávamos à descoberta de Peniche e das possibilidades internéticas, quando nos apercebemos que a estratégia de regresso à normalidade, não estava a funcionar. Num banco de jardim, deitámos cá para fora as ideias, aqui, ali ou acolá. Internet, bicicleta, supermercado, sossego, casa de família, aluguer, dinheiro, vieram à baila. Eram importantes. Tomar, Atouguia da Baleia, Lisboa ou Tavira?
Foi nesta altura que ligámos à mãe do Alexandre a pedir-lhe albergue, até conseguirmos alugar uma casa. A resposta foi contente pela proximidade do filhote, mas com a surpresa acrescida da possibilidade de aproveitar a casa vazia da avó.
Partimos nessa noite, rumo ao sul, sem certezas, mas com esperança e com o conhecimento de que voltávamos para junto das nossas meninas de duas rodas.


Tavira é, relativamente, pequena para nos podermos deslocar a pé ou de bicicleta para todo o lado. A biblioteca é a nossa preferida, e tem Internet para dar e oferecer. É uma calmaria, quando não é Verão e temos praia e serra ali ao lado e com alguma sorte um trabalho escondido algures para a Ana.
Timidamente, voltávamos à realidade e a vida retomou estranhamente uma rotina caseira. Bem nos dizia a Catherine, no Caminho de Santiago, que é assustadora a velocidade com que retomamos a nossa rotina, depois de regressarmos....


Para saberem se continuamos por Tavira, se sempre fomos morar para a ex-casa da avó do Alexandre, se a Ana arranjou um trabalhalhito bom com meninos, se continuamos a pedalar e a fazer as nossas saídas de fim de semana com as bicicletas. Têm que esperar para ler o que se passou este ano.


...há um ano atrás: Sanluri

...a semana que passou

Ainda conseguimos tomar um chá num café francês à beira rio, com a Ana Alves, antes de sair de Tavira. Receber mais novidades e rever a silhueta natalícia do centro histórico.


Nós tentámos. A sério que tentámos.
Até desenrascamos umas caixas e já pensávamos em desmontar as bicicletas, para que elas viajassem connosco de um lado para o outro. Mas não nos parecia correto. Sempre que nos enfiássemos num autocarro ou comboio, sem quebrar a lei, teríamos que as montar-desmontar, carregar com caixas ou desencantar umas novas. Para quê? Saímos de Tavira, rumo ao Natal, sem as nossas meninas. Foi um desalento.


E tal como nos autocarros que tivemos que tomar, antes e depois do Caminho de Santiago, também este pequeno trajeto Tavira-Lisboa, nos soava a batota. Com uma neblina a dominar a manhã alentejana e um frio imaginário lá fora, desejávamos poder saltar deste autocarro condicionado a temperatura tropical e respirar ar puro...
Se antes desta nossa viagem pela Europa, este desconforto era inexistente, não vai ser agora que nos vamos tornar em esquisitos. Adaptamo-nos. Ao que nos rodeia e a nós próprios. Que outra solução existe, além de tudo largar e voltar ao rotineiro e familiar selim, com todas as surpresas conhecidas e medos compinchas que nele carregamos?

Cada um foi passar o Natal, com as respetivas famílias do centro e oeste. Se nos pudéssemos clonar, assim teria de ser, para dar resposta às diárias perguntas: "onde vão passar o Natal?".

De volta à Atouguia da Baleia, a consoada, foi à mesa, com a numerosa família quase toda reunida, de volta do bacalhau cozido, da canja, do bolo rei do Ricardo, dos camarões, vinhos, dos queijos, dos chás e dos cafés. Foi uma noite pacifica, de conversa animada que cruzava a mesa de uma lado para o outro...
A certa altura, recordei-me do Natal do ano anterior, do Jill e do Jonh, da Camille e da Celeste, do Billy e da Jamie, e imaginei onde poderiam estar eles agora....


Passeou-se pelas redondezas da vila. Apreciou-se as paisagens, as praias desertas e o mar selvagem, deste canto de Portugal. Mas ainda não me habituei a isto. A andar de carro e ver o mundo a correr do outro lado da janela, dentro da insegurança metálica do automóvel...
Ainda não me habituei a dormir na minha antiga e familiar cama, a acordar em locais que foram em tempos, sinónimo de segurança imutável.
Tento sempre que posso, fugir da TV e do mudo horrível que ela pinta. Será o mesmo mundo que pedalamos? Não me parece e por isso escolho não corromper as memórias com as imagens de um ecrã.
Mas não posso viver nas memórias e é altura de criar novas e seguir em frente. Foi por isso que os Nomadiclas se reencontraram na Bairrada, prontos para descomprimir destas novas sensações. Fazer a barba de 3 meses e 2000km atrás, também ajuda a voltar à normalidade....

...

Enquanto o Alexius se promenadeava por terras mais a ocidente, eu aproveitei a boleia para Tomar e por lá fiquei a passear o Natal. Jantar em casa da tia, almoço em nossa casa, jantar na casa da avó. Que mais se pode acrescentar, ou pedir, desta semana natalo-familiar? Uma corrida e estava com os avós, um passeio de meia hora e estava com tios e primos. Em casa tinha irmã e cunhado e sobrinha.


Entre os três crescidos, resolvemos aquecer o corpo na rua, em vez de ficar a tiritar no sofá. Toca de apanhar lixo, cortar lenha, ceifar silvas , fazer borralheiras ou queimadas, como gostarem mais! ...Essas coisas que as famílias fazem, quando se juntam pelo Natal!
À tarde, escolhíamos passar os últimos aconchegos do sol, na rua, antes de nos retirarmos para a frente da lareira.
Enchi a barriga de brincadeiras com a minha sobrinha, depois de achar que passado tanto tempo já não me conheceria. Nada disso! Lembrando-se ou não, oferece-se a quem fizer palhaçadas: corridas de carro-mão, cavalitas, cangurus, histórias à lareira, foram alguns hits! Alcançaram platina, num dia só!


O Zuco, qual prenda de Natal, deixava os "maus dias" a quem se levantasse primeiro: um belo presente com cheiro! Bébézuco, como era, ainda não percebia o limite rua/casa. Para dizer a verdade, não havia limites para ele.O mundo era um grande brinquedo para ele brincar. Olhar para ele era como ver uma explosão de alegria de viver:
Vivam as pedras!!!! (e zás, lá passava ele a roer uma na boca!)
Vivam as ervas!!! (e deitava-se a rebolar na erva, enquanto mastigava uma bocarra que tinha apanhado!)
Vivam as azeitonas (e engolia umas quantas, caroço e tudo!)
Viva a parede ( e lambia a parede)
Viva o chão!! ( e lambia o chão!)
Viva os donos!! (e lambia os donos)
Viva o caixote do lixo!! (e deitava-o ao chão e desaparecia metade lá dentro!, criando o cãoixo).
A minha sobrinha ralhava com ele "NÃO, Zuco maluco!!, não!"


E por fim, o Alexandre chegou antes da semana voltar ao início e juntou-se à brincadeira. Éramos seis, os reis!


...há um ano atrás: Gonfaron

...o dia a seguir.

As bicicletas estão arrumadas sob a janela, dentro de casa, a descansar.
E nós também. ...continua a sensação de deslocado. A viagem já acabou, mas as nossas mentes e corpo ainda não se acomodaram ao sedentarismo. Não queremos acreditar que já tudo acabou, e tentamos não nos focar nisso.


São as férias de Natal para o Miguel. É ele que toma conta e vigia as nossas meninas no escritório, enquanto divide a sua atenção entre as batalhas míticas e fantásticas contra dragões, anões, duendes, fantasmas e outras criaturas cósmicas, e olha para a TV, que cospe qualquer programa. Dois olhos, dois ecrãs.
Nós apenas tivemos olhos para um ecrã. O ecrã do portátil, onde atualizamos e escrevemos no atrasado blogue. O nosso "eu" digital, ainda está a labutar de mochila às costas, em La Rioja, acabou de conhecer a Reyn, e a tendinite é uma palavra que pouco ouvimos ainda. Temos que trazer a história ao nosso encontro.

Com tudo espalhado na bancada do quarto, deixámos as arrumações para mais tarde e fomos para a rua. Fomos dar uma volta. Caminhar pela cidade como se fosse a primeira vez. Como se fosse uma cidade que estivéssemos a visitar e que amanhã disséssemos adeus. São as mesmas silhuetas de sempre, o mesmo "ambiente", mas a maneira de olhar é outra.


Na estação dos caminhos de ferro, colocamos questões sobre as facilidades de transportar as bicicletas no comboio, nas viagens para Lisboa. Facilidades? Não existem. Se quisermos entrar no "pouca-terra", temos que desmontar e empacotar as bicicletas. Pelo menos, é grátis, todo este aparatoso trabalho de desmonta-monta, empacota, desempacota. Nos autocarros, não temos tanta sorte. Para colocar o velocípede na bagageira, temos que o enquadrar na categoria das encomendas e aí, pagamos ao quilo! Depois de desmontar e montar tudo, claro. Isto, para fazer tudo dentro dos trâmites.
Se não "declararmos" que é uma bicicleta e a caixa onde ela se aperta, não der insinuações do que está lá dentro, talvez toda a gente desvie o olhar e não nos cobre uma multa. É assim, levar as bicicletas nos transportes públicos de Portugal. Pelo menos, se as quisermos tirar de Tavira. Um enredo...


Ao caminhar pela rua principal da cidade, uma velha conhecida escondia-se dos olhares de rotina dos transeuntes, assomando-se e deixando-se ver apenas por quem a conhece. A seta amarela! O Caminho de Santiago, também começa aqui e sítios que passámos vezes sem conta, durante uma vida inteira, ganham outro significado quando pensamos que está aqui um trilho que nos levará a Santiago, com outros peregrinos e experiências novas à mistura. Traz-nos uma sensação reconfortante, uma vez que os nossos corações ainda não chegaram aqui por completo. Vagueiam algures pelo que passou, entrando acanhados e cautelosos no que é e será a nossa vida até uma próxima aventura.


Fomos, timidamente, dizer olá aos nossos amigos que aqui vivem. Todos ao mesmo tempo, não, pois já percebemos que quando estamos entre muita familiaridade e caras conhecidas, o sentimento de deslocação sai reforçado e ficamos assustados. Deve ser assim, o bicho do mato das viagens...
Mas nem todos estão cá. Uns já se foram embora, outros para lá caminham, outros são mais difíceis de encontrar. Foi bom dizer olá, mas foi suficiente. Voltámos para casa, cabisbaixos, com a sensação de que nós voltamos e todos se estão a ir embora.


...há um ano atrás: Gonfaron

Mértola - Tavira

As primeiras luzes a entrar no salão de festas, pelas pequenas janelas, a imensidão do espaço onde passámos a noite. Ficámos alguns minutos deitados, no conforto do saco-cama, a saborear o nossa última manhã de viagem.
Ficámos com o nervosismo pré-partida. Encafuamos tudo dentro do alforges e encaixámo-los na bicicleta mais uma vez. Só mais esta vez...


Dissemos adeus ao pessoal que estava de serviço no quartel e agradecemos. Eles contaram-nos que de vez em quando um peregrino passava por ali e pedia pernoita. O pessoal encarregue de tomar conta do Caminho Português, veio há coisa de três ou quatro anos, pedir-lhes para ajudar os peregrinos que ali passassem. Talvez um dia voltemos aqui de mochila.
O dia mal começara e o frio apertava durante as primeiras pedaladas. Não demorou muito até pararmos para tomar o pequeno-almoço, com o nascer do sol sobre a cidade de Mértola.

Duas hipóteses para os últimos quilómetros.
Seguirmos a estrada principal, que nos levaria até uma IP, que rapidamente nos poria em Castro Marim e Vila Real de Santo António, onde a N125 nos esperava com o seu habitual tráfego. São pelo menos noventa quilómetros de estrada recta, sem grandes declives e sem muito para ver, além dos camiões de segunda-feira a razarem-nos as orelhas.
A segunda alternativa, seria virar daqui a sete quilómetros nesta estrada, após Mértola, e enfrentar a Serra do Caldeirão de cabeça e peito erguido, pela estraditas secundárias, as longas e impossíveis subidas, os buracos e a pouca sinalização, na esperança de encontrar o caminho mais directo e curto até Tavira. E também o mais bonito.


Virámos à direita, e deixámos para trás o crescente tráfego. Deixámos para trás os dias de barulho, buzinadelas e razantes bamboleantes. Deixámos para trás a certeza, e encarámos de frente a incerteza que apenas uma estrada nova consegue proporcionar. A partir de hoje, vamos ter que reaprender tudo de novo.

A bicicleta tremelica mais, quando em estradas esburacadas e mal remendadas. Mas os sorrisos que ganhámos, valem mais do que uns braços dormentes. Foi sobe e desce, sobe e desce, sobe e desce. Todo o dia nisto.


Quase sem darmos por isso, atravessámos do Alentejo para o Algarve ao passar sobre a ponte de mais um rio, que por esta serra corre. Não vimos placas a sinalizar nada, mas o mapa indicava a mudança de região.
Quando chegámos a Martim Longo, procurámos o caminho que se embrenhava ainda mais para dentro da serra e em Vaqueiros, saímos dos selins para almoçar. Ainda não tínhamos parado por um momento que fosse. Como se sentíssemos que durante muito tempo não voltássemos a ter umas sessões de serra acima de malas carregadas e quiséssemos por isso estender a sensação.
A aldeia parecia deserta, embora fosse segunda-feira. Mas não nos aborrecemos e comemos o arroz de pato que a mãe Mónica nos trouxe ontem, ao solinho da paragem das camionetas.


As subidas silenciosas, por entre o mato da serra. A ave de rapina a caçar nas encostas. A aldeia de casas brancas que espreita por entre os vales. O desenho das estradas e caminhos a meandrar pelas colinas. O suor que escorre quando estamos ao sol e se torna um fio gelado pelas costas ao cruzarmos sombras. As paragens para tudo isto apreciar enquanto se bebe do amigo cantil... 


Quando demos por nós, o azul do céu encontrou o azul do oceano. Aproximava-se o fim.
Parámos no topo mais alto do dia e sentámo-nos a observar e a reflectir...


Sobre este estilo de vida que não esperávamos gostar tanto, e sentir, já, tanto a falta. Os 505 dias em cima do selim, que nos obrigaram a mudar de maneira de pensar, de modo a pedalar dia após dia, apesar das adversidades e dos momentos mais em baixo. Desde as pequenas coisas do dia a dia, à consciência do nosso lugar no mundo e o que andamos aqui a fazer.
Ainda ficámos ali sentados bastante tempo. Acho que queríamos que a viagem perdurasse mais um pouco.

Mas o sol não espera, e antes que ele se escondesse atrás dos montes, puxámos os descansos para trás, levantámos a perna, ajeitámos o casaco e a badana, pusemos um pé no pedal e deixámo-nos levar pela descida da Serra de Mu até Tavira.


Tocámos à campainha, enquanto desmontávamos o estaminé. O meu irmão assoma-se à varanda, como se o primeiro dia da viagem se tratasse.



...há um ano atrás: Gonfaron

Serpa - Mértola

O tão temido frio de Dezembro, não chegou a entrar na tenda. Foi a "última" vez que dormimos na nossa tenducha, nesta viagem, e mesmo com uma vareta partida, uns fechos a ameaçarem falhar, alguns sinais de desgaste no interior e um carunchoso avançado, portou-se à altura das melhores. Não nos deixou ficar mal.


Como o dia iria ser pacífico e as distâncias não muito longas, demorámos o pequeno-almoço. Nas calmas e a aproveitar ao máximo o sol, deixámos Serpa por volta das nove e meia. Seguimos as placas a indicarem Mértola e Mina de São Domingos e durante trinta e sete quilómetros, tivemos a estrada por nossa conta, num Alentejo diferente do que vêem nos postais. O Alentejo do Guadiana.


Aqui, as planícies são escassas, mas nem por isso sentimos que andamos a queimar combustível com subidas e descidas. São calmas, e suaves. Sem stress. A estrada meandra por entre vales e cerros, montes e colinas por ela cortadas. Quando o horizonte se assoma, é um sem fim de mais montes pacatos e verdes. Sobreiros, azinheiras e oliveiras, polvilham a paisagem, sem nunca a dominar. Sente-se o espaço.
De vez em quando, passamos ao lado de uma vila ou aldeia. Perdidas e isoladas neste mar de colinas, o habitual branco e azul. Tudo é calmo e tranquilo. É domingo e as poucas pessoas que vemos, estão sentadas às suas portas, a descansar e a aproveitar o não usual sol e calor de Dezembro.


Pintada na estrada, a intervalos regulares, uma velha conhecida nossa. Os olhos já estão treinados para ver a seta amarela, e foi com agrado que a seguimos, na direcção oposta. O Caminho de Santiago.
Este, deve ser um dos caminhos menos usado. O Caminho Português do Este, que inicia em Tavira, onde a nossa viagem acaba, e atravessa Alcoutim, Mértola, Serpa, Moura e por esse lado do país segue sempre para Norte, até se juntar em Espanha, a outro Caminho. Mais uma vez, imaginámos como seria caminhar por aqui.


Virámos para a Corte do Pinto. Uma aldeia, escondida mas não sem vida, no Alentejo profundo. Tal como o pai, também a mãe do Alexandre não quis esperar que o filho chegasse a Tavira para o ver. Marcámos encontro na aldeia, onde familiares ainda vivem. Desta forma, podemos visitar todas as nossas origens nesta viagem. Bairrada, Atouguia da Baleia, Forte da Casa, Corte do Pinto e Tavira.
A casa da tia Maria e do tio Manuel, fica no centro e quando estacionámos os nossos camiões a pedal, os caçadores e nativos que conversavam no café em frente, pararam tudo e ficaram especados a olhar para nós a bater à porta. De lá saiu a mãe do Alexandre, e após cumprimentá-la e aos donos da casa, ficámos nós especados a olhar para o Miguel. O tempo também passou por aqui, durante o ano que andamos lá fora. Não parece muito, um ano... Mas parece que foi há uma vida atrás, que o Miguel era um fusili de treze anos. Agora virou spaguetti de voz grossa, com quatorze!
Estamos em família, mas também no Alentejo. Comprovámo-lo ao almoçar um ensopado de borrego, umas azeitonas e uma chouriça assada. Tudo com o belo do pão alentejano ao lado.
Com Mértola a poucos quilómetros dali, não tivemos pressa. Com calma e sossego, almoçámos e conversámos, no quintal. Abrigados do vento e ao sol, enquanto observávamos o Miguel a construir uma fisga de uns ramos de azinheira.


Dissemos os até manhãs, pois esperamos chegar a Tavira amanhã, e antes do sol se pôr, cruzámos as colinas que restavam até Mértola.
Mais uma vez nos lembramos de como a nossa época favorita para viajar é longe do Verão e aos domingos de preferência. Depois de irmos pedir aos bombeiros se nos podiam acolher, fomos cirandar pela cidade, até fazer tempo para a miudagem que ocupava o espaço onde iríamos dormir abalasse.
Com a luz mágica no ar, passeámos pelas ruas desertas, imaginado como seria viver por aqui.


Voltámos ao quartel, quando o frio se instalou no ar, vimos um pouco do filme da TVI de domingo, com uns robôs a destruir todo o mundo com pipocas e efeitos especiais a saltar por todo o lado. Quando nos cansámos, retirámo-nos para os nossos aposentos de quinze metros quadrados! Acho que podemos riscar da lista, que nesta nossa viagem pela Europa, já dormimos num salão de festas.


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Viana do Alentejo - Serpa

Não tivemos frio, nem ficamos molhados do orvalho matinal. Até dormimos num colchão, dentro de quatro paredes. Mas esta combinação, não é remédio santo para uma noite descansada.
As janelas do quarto, ficam junto a uma das lâmpadas do quartel que ficam acesas toda a noite. Além da luz que não deixava a noite chegar ao nosso quarto, a sacana da lâmpada devia ter um problema de saúde qualquer, porque durante toda a noite, não conseguimos pregar olho, com o barulho que ela fazia! Por muitas voltas que déssemos, por muito que nos enfiássemos no saco-cama, por muito que tentássemos imaginar que o zumbido era um tantra budista de meditação, não houve forma. O zumbido estava um decibel acima do suficiente para adormecer.


Quando o relógio chegou às sete, desistimos e saímos da cama, com os olhos raiados e uma dor de cabeça. Vamos lá pedalar então. Dissémos adeus ao cão do quartel, Lume, e adeus a Viana do Alentejo.

O fresco da manhã e a boa disposição que apenas uma bicicleta e um dia pela frente conseguem proporcionar, depressa afastaram o cansaço da noite. Há que aproveitar o dia! Estamos no Alentejo e ao passar o monte de Viana, ficámos logo a ver o que nos esperava. Um dia de horizontes até onde a vista alcança, de montes alentejanos suaves a subir e a descer. Quintas e herdades, com vacas, cabras e ovelhas. Campos acabados de semear e outros já com o verde de uma nova vida. Oliveiras, azinheiras e sobreiros. Céu azul e pouco trânsito nas estradas secundárias... É bom viajar por aqui em finais de Outono.


Como a ponte de Alvito estava cortada, trocámos as voltas ao plano e fomos dar uma volta maior, por Cuba e Beja. Nesta ultima, subimos até ao castelo e à praça, encostámos as meninas num banco junto ao mercado que começava a fechar a loja, e comemos umas sandocas. De vez em quando, um grupo de senhores, que ficaram para trás nas arrumações do mercado, paravam a conversa animada, o picar o queijinho e o golo de vinho tinto da terra, para uma melodia melancólica de cânticos alentejanos.


Quando chegámos a Serpa, fizemos a rotina do costume nestes dias que correm. Fomos ao super, abastecer antes de ir visitar os bombeiros. Um pouco confiantes talvez, que teríamos esta noite uma noite repousada no quartel de Serpa, foi com surpresa que o senhor comandante disse que não podia receber-nos,e não perdeu muito tempo para arranjar alternativas. O local onde costuma acolher, estava hoje reservado para a festa de natal da câmara, e por muito que insistíssemos que ficávamos contentes com um pedaço de chão para os sacos-cama, não houve reviravolta de ideias.
E agora?

Sem muita vontade para procurar campismo selvagem, já a ficar de noite e com o frio a rodear-nos, voltámos ao centro de Serpa e montámos a tenda no parque de campismo municipal.


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Vendas Novas - Viana do Alentejo

Dormimos tão bem quanto se podia esperar, por dormir dentro de quatro paredes. Às oito saímos do quarto, despedimo-nos dos bombeiros e montámos nas bicicletas, para mais um dia de viagem. Este, avizinhava-se cinzento.


Chegámos a Montemor-o-Novo e depois de um prolongado pequeno-almoço, regressámos à nossa amiga nacional dois, que nestas bandas ainda não foi promovida e mantém-se, regional.
Algures, numa vida atrás, atravessámos esta mesma serra, a Serra de Monfurado, de Verão mas fresquinhos no que toca a fazer viagens de bicicleta. Sempre nas mudanças mais baixas, sempre a suor por todos os poros e se bem me lembro, de vez em quando lá tinha que ser de empurrão.
Hoje, temos um dia de Inverno em Portugal. Cinzento, com chuva molha parvos e um frio de fim de Verão, mais do que de início de Inverno. As mudanças desta vez mantiveram-se acima, o suor nem chegou a vir. Mas a paisagem não mudou, apesar de agora não estar tão seca. Nem a sensação de vitória e bem estar quando damos conta que chegámos ao topo e temos à nossa frente a imensidão do Alentejo. Um olhar abarcava o vale de vinte quilómetros que nos separava de Alcáçovas.

Ao entrar em Alcáçovas, decidimos repousar e aproveitar a aberta na chuva, para enfiar algum combustível cá para dentro. Foi enquanto estávamos sentados na Praça da República, que começamos a olhar ao nosso redor e a reparar nos detalhes. Por estas bandas, as cores predominantes das casa são o branco com azul a rodear portas janelas e nos rodapés. Já não me lembrava que no Alentejo as cores são assim, e tão pouco me lembrei delas quando as vi num outro local, bem longe daqui e sob um céu mais soalheiro. O estilo das Ilhas Cíclades, nas construções das ilhas gregas. Pelos vistos o sol, a modos que "forçou" a arquitectura e as cores mais adequadas. Independentemente se as pessoas são gregas ou portuguesas. O estilo cíclades no Alentejo, ou o alentejano do Mediterrâneo?


Nós já raramente metemos conversa com os nativos, preferindo mais a paz e sossego nos nossos dias. Como David, o hospitaleiro de Tosantos. Ainda assim, uma senhora veio ter connosco com sinalética gestual a constatar que estávamos a comer. Quando lhe dissemos que: "...somos portugueses..." e "...viemos de Vendas Novas hoje e vamos para Tavira...", pareceu-nos a nós que a senhora perdeu o interesse. Como se por sermos portugueses a viajar de bicicleta, já não fossemos "interessantes". Será, que a interpretámos bem?
Não seria a última, hoje, a tomar-nos por estrangeiros.
Em Viana do Alentejo, enquanto a Ana foi ao Minipreço, um senhor de cabelo comprido grisalho, na casa dos quarenta e muitos, óculos e com ar de professor universitário, veio ter comigo e começou: "Do you speak English?". Á cabeça, só me vieram respostas de "Sou português!", "Falo português!" ou "Não sou inglês!" (sinónimo de estrangeiro)". Mas o tom não seria o correcto e não queria ofende-lo. Entrei no jogo.
"Yes, I speak English! Are you Portuguese?, ao que ele responde com um sorriso, "Yes, I am!". "Good! So am I!", retribuo. A risota esperada veio logo a seguir. A conversa ainda resistiu mais do que um minuto.
Viana do Alentejo está a tornar-se num dormitório de Évora... Alvito é mais bonito... A ponte para Vidigueira está em obras... Por aí... Mas ao despedir-se, fiquei de novo com a impressão de que se fosse de facto um estrangeiro a viajar de bicicleta em Portugal, muitos mais frutos teriam advindo da conversa.

Porque nos tomarão sempre por alemães, ingleses ou de outro qualquer país? Porque não pode um português a viajar de bicicleta, na sua própria terra, ser uma visão mais normal e acalentada pelos nossos?

Já nos Bombeiros Voluntários de Viana do Alentejo, a hospitalidade do costume, não nos deixou ficar mal. Sempre com boa disposição lá nos indicaram o quarto onde podíamos dormir e até nos facilitaram a chave do mesmo, caso quiséssemos ir ar um volta, mais descansados!

Ao adormecer, um zumbido artificial inundava o quarto no silêncio da noite...



...há um ano atrás: Gonfaron

Forte da Casa - Vendas Novas

É o principio do fim da viagem, ou o início de mais uma? É a questão que não me sai da cabeça, ao acordar e ter a consciência, que hoje, é dia de bicicleta!


Do Forte da Casa para a frente, temos o vasto Alentejo para atravessar. A maior região de Portugal e um pedaço do Algarve até Tavira. Quase trezentos e cinquenta quilómetros ou o equivalente a quatro ou cinco dias de pedal. É o que nos propomos a fazer, de modo a fechar o círculo. Já há muito que sentimos que a viagem terminou, ou anda a terminar aos bocados.
É altura de sentirmos aquela coisa de "agora sim, terminou".

Depois de um descansado pequeno-almoço em família, montámos nos selins à confortável hora de onze da manhã, para um começo barulhento na Nacional 10. E que bem que soube! Assim que o selim e as nádegas disseram "olá", foi uma sensação de bem estar e um relembrar de boas memórias. Depois de dias a sentir-me inadaptado com o que me rodeia, sem saber o que dizer às pessoas e às aranhas sem saber o que fazer, isto pelo menos já me é natural. Isto eu sei que sei fazer e que gosto. Venham lá os camiões!

Em menos nada chegámos a Vila Franca de Xira e atravessámos o rio Tejo pela ponte. A lezíria, Porto Alto e mais três ou quatro terreolas perdidas na despovoada estrada, pintaram o cenário para a nossa manhã.
Sem sítio onde almoçar, empurrámos as biclas para o meio do mato, não muito longe da estrada, mas o suficiente para podermos descansar dos incessantes carros e camiões.

Nestes dias que correm, o sol corre rápido e nós atrás dele temos que ir, para não ficar apeados em campismos selvagens gelados e molhados do orvalho! Por isso, após um dia inteiro de pedaleio non stop, em Vendas Novas, fomos experimentar pedir ajuda aos bombeiros, de novo. E de novo, para nosso alivio, não nos foi negada pernoita.



...há um ano atrás: Gonfaron