El Camino de Ana - Third Week

4 de Novembro - Frómista - Carrión de los Condes - 19,2 km

A dupla da Finlândia tinha um médico "a bordo". Soubemos porque a tosse vinda das profundezas do meu ser não o deixou indiferente e antes de sair, a modos que me aconselhou um tratamento.
Saímos. Frio! Com os ponchos postos sempre ajuda a proteger do vento. Chuva miúda e logo vestimos as calças impermeáveis. Sinto-me um trambolho. A mulher de plástico.

Chegamos a Carrion de los Condes quase ao mesmo tempo que o Juan Manuel. Era a primeira vez que o víamos. Sacou da sua credencial de peregrino do exército e de imediato a sua indumentária ganhou outro sentido aos nossos olhos.
A irmã que nos recebeu mostrou-nos as instalações, e para nosso desconsolo (falo por mim e pela Reyn) o único peregrino que tinha chegado, era o Júlio e ficava no mesmo quarto que nós. E ele roncava, e se roncava!

O Alexandre descansava o seu pé que estava pior e as mulheres foram às compras. A Reyn, voltou antes de mim, que ainda fui à farmácia. Regressei esbaforida e cheia de comida. A Reyn já cozinhava e eu juntei-me a ela. Peguei no tacho que estava a secar no escorredouro e ponho-o ao lume com água. Ora, o que não sabia eu, era que o Júlio e o seu companheiro estavam a planear usá-lo para fazer a sua comida também. Foi o suficiente, para passar toda a noite a ouvi-lo, não a falar para mim, directamente, mas a resmungar para o ar, que eu lhe tinha roubado o tacho (que era do albergue), e depois o bico do fogão e depois a faca. A comida ficou sensaborona, e apanhei uma pilha de nervos, a culpa não é dele, mas ele ajudou.

O Juan Manuel ficou sozinho num quarto, uma vez que assume assim que chega a um albergue, que é roncador e põe-no à parte. Verdade ou não, dorme descansado! E também estava sempre a aconselhar-nos. Façam isto, façam aquilo, assado é melhor. Lá achou que a nossa roupa não estava bem estendida e resolveu mudá-la também! Já me estava a passar com estes espanhóis mais velhos!


5 de Novembro - Carrión de los Condes - Ledigos - 23,4 km

A  manhã começou com uma cena!
Prevenidos para a falta de supermercados a preços decentes para peregrinos (em sentido financeiro, falando), tínhamos uma certa quantidade de comida. O dia seria longo com dezassete quilómetros sem nada pelo meio.
As coisas do pequeno almoço deixámo-las na cozinha na noite anterior (como é hábito de todos os peregrinos, em vez de andarmos a levar e a trazer comida da mochila). Estávamos muito bem a tomar o nosso pequeno-almoço, quando o Júlio se levanta e vai às mesas onde tínhamos deixado mais comida nossa e tira um pão. Senta-se e com os seus companheiros partilham e comem as primeiras fatias. Nós ficámos estupefactos e depois da surpresa passar a Reyn foi-lhe dizer que a comida que estava naquela mesa era nossa. Não tinha problema comerem o pão, mas era só para saberem. O Júlio atirou-se ao ar. Fechou o pão no saco, levantou-se e veio pô-lo na nossa mesa. Connosco a dizer, que não fazia mal, que podia comer o resto. E ele a empurrar o pão. Puxou da carteira e perguntou quanto tinha sido. Pensámos que iria comprá-lo e comê-lo. A Reyn disse um euro. E ele tira dois e estica. "Não, não queremos. Foi só um". Ele muda de moeda, atira-a para cima da mesa e mais o pão e vira costas. A Reyn levanta-se e leva o pão até à mesa deles e põe-no na mesa e diz que é deles. O Júlio sai disparado da cadeira, agarra no pão, atravessa a sala e põe o pão no lixo, enquanto vai resmungando que não precisa do nosso pão para nada. A noite anterior tinha sido má, mas com esta manhã ficámos com a certeza de que queríamos evitar este tipo a todo o custo.
Seja como for, fomos buscar o pão ao lixo e saímos.

A comida era tanta que tivemos de pôr alguma num saco de pano. Andámos a Reyn e eu a transportá-lo pelas duas o dia todo. Tudo o que fosse ingerido, era contabilizado com gosto como peso e espaço a menos.
As dores do Alexandre estavam cada vez piores e começámos a pensar em alternativas. Estabelecemos prazos para as melhoras do pé, ou caso contrário voltamos para as bicicletas. Fico um pouco triste, porque gostava de acabar o caminho.
Andávamos devagar. A estrada era de pequenas pedras brancas e parece não acabar. Pelo meio dos campos, os tractores mudavam a cada passagem mais um pouco de terra de castanho claro, para castanho escuro. Fazia frio, calçámos as luvas.
A  seguir ao almoço seguimos uns atrás dos outros. O Alexandre mais para trás, a Reyn no meio, e eu à frente. De vez em quando parávamos para esperar uns pelos outros, ou para descansar.

Numa dessas paragens, quando cheguei à primeira vila depois dos dezassete quilómetros vazios, olhei e vi que os dois estavam quase a chegar. Segui as setas e sentei-me encostada a um muro ao sol, a escrever. E esperei. Esperei tanto que me cansei e resolvi ir espreitar mais atrás a ver porque se demoravam. Não vi ninguém. Quando voltei a fazer o mesmo caminho reparei que as setas amarelas seguiam também por outro lado.
Ou seja, tinham-me passado à frente e eu não os tinha visto. Um quilómetro ou dois antes de chegar à vila recebo uma mensagem do Alexandre a perguntar onde estava, que ele e a Reyn já tinham chegado!!! E ele sabia que eu não tinha saldo! Cheguei à entrada da vila e vejo a Reyn sem mochila, com ar de quem ia começar a andar no meu sentido. Sorrimos as duas e ela mandou mensagem ao Alexandre que tinha ido à minha procura na vila a seguir. Pensavam que eu tinha seguido! Lá nos encontrámos todos no bar do albergue e explicámos todos os mal entendidos!
É que às vezes os bares adicionam umas setas extra só para que o caminho passe à porta deles e recebam mais uns peregrinos clientes, e nisto andamos nós às voltas com o caminho! O Santi já nos dizia: "Quando fazes o caminho as setas mandam, mas quando o fazes pela nona vez já podes escolher se queres seguir a seta ou não!"

Terminámos a noite com a barriga cheia de comida quentinha, e um dormitório só para os três. Nada de barulho, luzes, roncos, calor, ar demasiado seco e quente. Começávamos a apreciar cada vez mais estas noites tranquilas!


6 de Novembro - Ledigos - Calzadilla de Hermanillos - 26 km

Domingo! Depois de um dia com dezassete quilómetros sem nada, um final de dia sem supermercado, a nossa fartura de comida já começava a precisar de reposição. Mas domingo é dia de lojas fechadas. Claro, que há sempre quem mantenha o negócio aberto e nós peregrinos somos a razão!

Parámos para almoçar num parque, com bancos ao sol. O Alexandre aproveitou para pôr gelo no pé e descansar.
O Santi apanhou-nos e também ele vinha com um ar mais em baixo. Tinha bebido ou comido algo menos bom e tinha o estômago às voltas e andava a água e pão.

O Daniel juntou-se a nós depois de almoço. Teimava em chegar-se de tal forma a nós que quase roçávamos ao andar. Muito desconfortável! Os últimos quilómetros custaram. Seguimos uma estrada alternativa, suposta ser mais bonita, a Via Romana. Era de facto bonita, mas não vimos nada a não ser floresta durante largos quilómetros. Cada um seguiu ao seu ritmo e embora cansados e com frio, o pôr do sol a que assistimos fez-nos sentir agradecidos por ainda estarmos a caminhar.

Chegámos ao albergue e o Daniel aguardava a nossa chegada. Perguntou-nos o que era preciso comprar, se tínhamos comida para ele!!!! Que não tinha nada e que ia comprar vinho!! Acabámos por cozinhar para ele, comemos os quatro juntos, os únicos, no albergue. Guardámos a comida para o almoço do próximo dia e ele veio com o seu novo tupperware perguntar se havia para ele também!!!! Depois, de há dois dias atrás,  ter-se recusado a comer a comida toda, que nós comprámos e  cozinhámos para ele, e ter preferido comer antes a sobremesa, com seis pessoas à mesa que comeriam mais, mas não o fizeram porque não havia, deixei de me sentir bem com ele por perto.


7 de Novembro - Calzadilla de Hermanillos - Reliegos - 24,6 km


O Daniel recusou-se a sair sem nós. Mais uma manhã desconfortável. Num cruzamento que nos tiraria da Via Romana, virámos à esquerda para ir às compras. O Daniel ia mais à frente. Assobiámos, a avisar da mudança de sentido, mas ele seguiu!  A partir dali o caminho seguiu longa e interminável lado a lado com uma linha de plátanos coloridos de Outono.
Passaram mais peregrinos por nós que nunca viramos. Um deles um rapaz novo e alto numa passada larga e apressada que respondeu enquanto andava que era francês e que queria chegar ao fim desta estrada de árvores em fila que não tinha fim!

A Reyn e eu ganhámos avanço ao lento Alexandre, com dores. Chegámos animadas, mas cansadas a Calzadillas. À entrada somos confrontadas com o famoso bar do "Elvis Presley del Caminho", do qual passámos o dia a encontrar recortes de jornal colados estrategicamente em tudo o que era sítio.
Uma mesa comprida com muitos copos e muitas garrafas de vinho e o que parecia ser uma festa acontecia. Cinco ou seis de roda sentados de roda da mesa nuns risos largos e parvos. O dono do bar veio de lá com umas cadeiras e convidou-nos a descansar. A música estava alta, e com ritmos calientes. O francês  apressado também estava por ali sentado.
Ora nisto os da mesa metem conversa connosco. Palavra puxa palavra e um deles diz que se chama Pedro. Eu adivinhei o Silva para seu grande espanto. "Como é que sabes o meu nome", pergunta-me ele, sempre em inglês. "Porque nos dois últimos albergues, temos visto o teu nome e que és de Portugal, e eu também sou portuguesa, respondo eu, em inglês. Ele sorriu o seu sorriso bêbado e continuou aos beijos com a sua nipónica.

O Alexandre chega e senta-se ao nosso lado mas no chão e pergunta que raio fazemos nós ali, se aquilo é o albergue municipal. Explicamos (em inglês), e depois eu muito contente digo em português "Olha sabes quem é este? é o Pedro Silva!". O Pedro Silva vira-se na cadeira e com a boca aberta de espanto (e da bebedeira) pergunta "então és portuguesa e não me disseste nada?".  A conversa continua, com ele a dizer "já está", para estarmos descansados, que estávamos entregues, que estávamos em casa e depois perdeu-se a divagar sobre como os portugueses são tão bons a falar outras línguas. O Alexandre levantou-se e nós três (o francês também) seguimo-lo, mesmo depois da propaganda toda do barman ao novo albergue do amigo. Se o Pedro Silva estava nós não queríamos estar!

O francês era o Benoit, e pôs-se logo a dormir assim que chegou!
A Reyn andou dentro e fora a comprar pão e a pedir azeite. Fiz o jantar, com a luz a ir abaixo duas vezes. O hospitaleiro apareceu para se certificar que as bebedeiras não eram no seu albergue. E aproveitou para desabafar que os peregrinos já não são os mesmos, só vêm para a paródia, que uma moça do bar até teve de ser arrastada e mais historiazinhas de outros tempos.
Comemos cedo e fomos os quatro para a cama cedo. Dormimos sem roncos e com a janela aberta. Uma noite perfeita!


8 de Novembro - Reliegos - Léon - 20 km

O Alexandre ficou e nós seguimos. Decidimos que seria melhor ele apanhar o autocarro de albergue em albergue até o pé ficar melhor.
Parámos no mercado e comprámos fruta. Comemos umas sumarentas e frescas tangerinas e continuámos. Mal conseguíamos conversar com tanto trânsito a passar a poucos metros de nós, na nacional. Acenámos a muitos autocarros a pensar que o Alexandre poderia estar lá dentro. Juntas ou afastadas, a conversar pelos cotovelos ou caladas, chegámos a Léon no meio da confusão dos carros. Um pouco stressante.

Abrimos a porta do albergue olhámos para o cesto e vimos o bastão do Alexandre. Estávamos bem. Por esta altura, também eu já tinha um, que alguém deixou esquecido (?) em Fromista!
Chegámos e já cá estava muita gente, mas agora está a abarrotar!

A Kathrin chegou. A surpresa das surpresas, depois de lhe termos dito adeus em Burgos, conseguiu apanhar-nos!
Uma rapariga da Bélgica, chegou de bicicleta carregada de malas iguais às nossas, a Karine. Jantámos uma grande salada que fiz e dividimos com todos. Comi um pedacinho de queijo de ovelha que a Reyn comprou a pensar em mim. Episódio do senhor bêbado ou maluco que entrou sem ser peregrino, com os homens todos (os mais jovens) a levantarem-se e a passarem um bom bocado para o controlar até vir a polícia.
O Sean que fez cinquenta e dois quilómetros num dia. O Benoit que partilhou o seu vinho connosco e depois o chocolate preto sem leite. A Reyn e eu que queremos a janela aberta e as duas espanholas que a fecham. As horas que são e o pessoal ainda de pé a fazer barulho. Muita gente, quero gritar: "Apaguem a luz!", "Façam pouco barulho", "Abram a janela para respirarmos!"

O Dani chegou e despiu-se, cuecas e tudo, aqui! O Kim e a outra rapariga que já cá estavam...As duas espanholas, que rezo para que adormeçam rápido para abrir a janela.  Apagaram a luz :)


9 de Novembro - Léon - Villadango del Paramo - 25,8 Km

Um novo grupo que sai todo junto. A Kathrin, a Reyn, a Karine, e nós. O Alexandre ficou com as K, que ficam mais um dia por Léon a descansar, para ir à biblioteca e depois apanhar o autocarro. A Karine doi-lhe o joelho.

A Reyn e eu descobrimos cada vez mais coisas em comum e passamos o dia a cantar, fazer ritmos com os paus, falar de crianças, conversar pelos cotovelos...
Conversamos tanto que quando damos por nós seguimos a estrada errada e o nome da aldeia não vem nem na folha nem no livrinho da Reyn. Um outro Kim, também da Coreia, alcança-nos e sacando do seu Ipad confirma as nossas suspeitas de termos seguido pela estrada alternativa, que também era correcta, mas não ia dar ao albergue/cidade onde o Alexandre nos esperava. Sem pânicos analisámos a situação e avançámos aldeia dentro a falar alto, dizer olá a ver se encontrávamos alguém a quem perguntar. Ninguém! Começámos a tocar às campainhas e lá veio uma senhora de avental abrir a porta e encaminhar-nos. Alívio, não era preciso voltar para trás! Na aldeia seguinte voltámos a perguntar (tivemos que tocar à campainha) a um senhor que nos acompanhou durante uns metros enquanto repetia as instruções. Fizemos o que disse e chegámos a San Miguel eufóricas. Tínhamos conseguido.
Almoçámos sentadas na paragem do autocarro, protegidas da chuva e metemos conversa com uma senhora de tamancas de madeira. Madreñas. Boas para em dias de chuva manter os pé quentes e secos.

Chegámos animadas à vila e ao albergue. Estava demasiado sossegado, mas vimos o bastão do Alexandre e descansámos. O Kim chegou com a outra rapariga da Coreia. A hospitaleira veio só carimbar-nos as credenciais e foi-se logo embora. Ficámos os cinco sozinhos. Comemos e fomos descansar. Estava frio, não havia aquecimento, mas tínhamos muitos cobertores! Tinha sido um belo dia!


10 de Novembro - Villadango del Paramo - Astorga - 27,1 km

Fui a última a sair, fiquei a escrever um email.
Depois pus-me a acelerar a ver se apanhava alguém. A estrada nacional estava mesmo ali ao lado e uma neblina brutal não deixava ver mais que trinta metros! Passei a manhã com a impressão de que aquele pontinho lá ao fundo era esta ou aquela pessoa, mas sem ver ninguém.

Apanhei a Reyn, que só olhou para trás e soube que era eu porque me ouviu batucar com o pau na grade de qualquer coisa.
Tomámos a estrada um quilómetro mais longa, mas que deixava a nacional e se embrenhava na Natureza, desta vez de propósito! Pelo meio de uma grande quinta, com muita lama e cheiro a estrume até estarmos no meio do nada.
Almoçámos sobre os ponchos com muita conversa! Tanta que olhámos para o relógio e tínhamos ficado duas horas ali paradas.
Mas depois de almoço estávamos com mais energia e chegámos ao topo da colina rápido. O Kim e a outra rapariga do nome que me esqueço descansavam com bolinhos. Dali dava para ver a cidade e tudo em redor. Mais um vez, achamos que ter a meta à vista dá a impressão se estar quase lá e tudo parece mais fácil e rápido.

O albergue estava cheio e calhámos no mesmo quarto que o Júlio!!! Ele assim que nos viu, arrumou malas e foi pedir para o porem noutro quarto. Quatro europeus e cinco coreanos, neste quarto. O Sean que reencontrámos com surpresa e mais outro que faz tantos quilómetros como ele, o Peter, da Suécia.

Os coreanos fecharam a janela, baixaram os estores, fecharam a porta e apagaram a luz. Que fechado!
Ao menos ninguém ressonou!


El Camino de Alexandre - Third Week

04 de Novembro de 2011 - A dor a cada passo

Aquela dor de ontem... Hoje de manhã, um arrepio subiu-me pela espinha acima, ao sair do beliche e pôr os pés no chão. E não foi de frio. Foi de medo. Que dor é esta?

Uma nova realidade. Algo tão simples e fundamental, tão essencial e tão básico para o ser humano. Caminhar. Algo de novo para mim. Porque a cada passo que dou, cada vez que me apoio no pé esquerdo, umas golfadas e bombas de dor. Como é que vou conseguir sair desta? E se a situação não chegasse para se instalar o desespero, a chuva, o frio e o vento, continuam a não dar misericórdia.
Não é só o facto de tomar consciência que a possibilidade de desistir se tornou bem presente, é o dizer adeus a todo o trajecto até aqui e às pessoas que conhecemos.

A estrada é longa e sempre em frente. Nada para nos distrairmos a não ser a chuva que muda com o mudar do vento. E a dor... Essa sim é uma tremenda distracção. A dor a cada passo, durante uns longos dezanove quilómetros.


05 de Novembro de 2011 - ...17,2km...

Na folha A4 que nos serve de guia, podíamos ler: 17,2km até à próxima povoação. No livreco/guia da Reyn, a mesma coisa. Não são montanhas, são planícies e as intempéries continuam a tornar a nossa vida miserável. Nada de quintas, aldeias, chafarizes ou estradas com carros. Nada de nada! Se em média fazemos cinco quilómetros por hora, pelo menos umas longas três horas e meia de absolutamente nada teríamos de enfrentar.
Fui devagar. Muito devagar e com passos curtos. Apoiado no meu bastão/bengala, para minguar o meu novo companheiro: tendinite no pé esquerdo!

Está a chover. Esta e o vento, tornam qualquer evento social ao caminhar impossível. Passados poucos metros já todos caminham com uma distância crescente de vários metros. É cada um por si e virados para dentro de si. Se não consegues estar contigo mesmo durante tanto tempo, vêm fazer o Caminho e talvez aprendas algo sobre ti nesta etapa.

Uns quilómetros de caminhada, e sabes que és o ultimo. Que ficaste para trás porque vais devagar, que não te podes valer de ajudas se te acontecer algo, que não podes esperar que alguém apareça. São 17,2km a caminhar contigo.


06 de Novembro de 2011 - Pôr do sol

As dores ainda lá estão, mas lá se vai aprendendo a dominar uma ou outra técnica para que não doam tanto. Passos curtos, devagarinho e sem pressas. Mais peso aqui e menos ali. Evitar as descidas e carregar nas subidas. Por muito poucas que estas sejam.

Foi um dia assim, até decidirmos virar para uma via alternativa ao Caminho. A Via Romana. Não temos informação de quantos quilómetros são ao certo até ao albergue que vem na lista, mas não pareciam ser muitos. Até que viramos para uma estrada larga de terra batida que aponta para uma floresta. No ultimo troço de alcatrão, alguém escreveu: 8km até Calzadilla de Hermanillos. Oito quilómetros não é de assustar, mas depois de mais um longo dia, com o sol a pôr-se em menos nada e um vento frio a aumentar, tornou, mais uma vez, a tarde interessante!

Vais sozinho, está a ficar escuro. A fome é algo tão normal e familiar que já te esqueceste que ela está lá. Os tremores de frio nas mãos a descoberto, que seguram o cantil e o bastão, já nem os notas.A dor no pé...pfpff. Esquece lá isso! A bexiga que incha com cada golo que dás no cantil e te obriga a demorosas e aparatosas paragens, uma rotina.

O que é incrível, não é o que cada pessoa é capaz, quando confrontada com situações fora do vulgar e do seu campo de conforto. O incrível é, a capacidade de ainda, apesar de todos os obstáculos conseguir apreciar o facto de estar a caminhar numa floresta, sem nada à minha volta enquanto vejo um magnifico pôr do sol, e acreditar que se continuar a caminhar, pessoas que te querem vão estar à tua espera e que de uma forma ou doutra, nada de mal te irá acontecer.


07 de Novembro de 2011 - O passar dos dias

Os dias no Caminho começam para nós com o som do despertador da Reyn a tocar. Depois disso, ainda ficamos mais uns minutos na cama, até que a realidade se instala. Juntamo-nos na cozinha se houver, mas o hall também serve para tomar o pequeno-almoço antes de ir lá para fora. Cada um vai saindo ao seu ritmo. De vez em quando a Reyn despacha-se primeiro e sai a correr, outras vezes fica para trás. Antes de nos separarmos, combinamos mais ou menos o sitio onde almoçar todos juntos. Eu e a Ana saímos juntos, mas depressa os ritmos, as paragens e as vontades fazem que cada um caminhe o seu próprio caminho. Podemos ficar sem nos ver durante horas, mas não estamos muito preocupados. Estamos todos em casa. Estamos todos no Caminho de Santiago, a seguir as setas amarelas.

O almoço, costuma ser pão. Pão com marmelada é o menu do dia, quase todos os dias. Com algumas variantes (manteiga, chouriço, queijo, banana) mas a marmelada em si, está sempre lá perto. Por enquanto, ainda não estamos enjoados desta fantástica combinação preço/quantidade! Quando temos sorte e apanhamos uma cozinha no albergue anterior, cozinhamos a dobrar e metemos o resto nos tupperwares. É melhor um arroz frio de feijão, ou massa com legumes colados uns aos outros do que pão espanhol todos os dias. Não há forma de nos habituarmos a este pão.

A caminhada continua, um pouco mais molenga pela tarde. Se estiver dia de chuva, caminhamos em silêncio. Se estiver sol, acabamos por ir a conversar por esse caminho fora até ao albergue. Seja como for, é no albergue que todos se encontram e é nos albergues que temos o momento surpresa de cada dia. Com quem será que vou dormir hoje?

Se não tivermos já parado num supermercado antes, ainda temos que adiar o descalçar das botas e o descanso dos pés massacrados, para mais uma visita à terra em busca de provisões.
Depois de marcar território estendendo o saco-cama nos beliches, e fixar a bandeira na cozinha, é nesta que passamos a maior parte do restante tempo. O descanso é sagrado e todo o tempo é pouco para dormir e estar sossegados na cama.
Ás vezes estamos sozinhos os três, outras vezes são mais uns quantos, outras (poucas felizmente) são demasiados. Ainda ficamos abismados quando encontramos salas com colchões armazenados e à espera da invasão de peregrinos de Verão. É assustador pensar nestes locais com centenas de pessoas ao mesmo tempo.

Depois da paparoca e de momentos de converseta e risota à mesa, retiramo-nos para os aposentos privados.
O normal e dormir no beliche de cima e a Ana no de baixo, com a Reyn numa cama junto à nossa. Mas por vezes não acontece assim, e lá temos espanholas, coreanos, suíços e francesas como peluches de dormir.
É aos sons corporais deles que adormecemos e tirando um dia ou outro, durmo que nem uma pedra.


08 de Novembro de 2011 - O dia do autocarro

Não há mais volta a dar. Ontem no albergue quando tirei as botas e tentei massajar o pé e fazer uns tímidos alongamentos, um ruidoso som saiu das entranhas desconhecidas desta parte do corpo. Soava como uma velha porta a necessitar desesperadamente de óleo e cujo som atravessa paredes. Foram demasiados decibéis estranhos para continuar com isto e arriscar sequelas e problemas piores futuros.
Hoje vou de autocarro.

Ainda tive que caminhar seis quilómetros até ele, mas foram bem saboreados por serem os últimos durante os próximos dias. A Reyn e a Ana, seguiram caminho. Para elas seria um longo dia até Leon.
Enquanto esperava pelo autocarro, um outro para largar mais passageiros. Deste, sai a coreana que conheci em Tosantos e uma amiga. Olhamos os dois ao mesmo tempo um para o outro e apontamos para as nossas dores. Pelo menos, não me senti tão só.

O caminhar até ao autocarro, foi fácil, o ficar à espera deste também. Pôr a mochila no porão uma canja, comprar o bilhete ao motorista e sentar-me, foi num ápice. Mas assim que o autocarro começa a andar, tudo me cai. A realidade de que não consegui caminhar todos os quilómetros até Santiago. O saudoso adeus às dores do dia que tanta felicidade trazem quando a noite chega e a realização de mais uma etapa conquistada. Tudo esfumado ao ouvir o motor do autocarro.
Ainda tentei ver pela janela tudo o que estava a perder, mas não ajudava a levantar a moral.


09 de Novembro de 2011 - A perca do espírito

Não é a mesma coisa. Nem de longe. Hoje tive que apanhar outro autocarro. Decidimos que enquanto o pé fizesse sons tenebrosos ao mexer, iria ser assim. E quando as dores parassem teria que esperar mais dois dias, pelo sim e pelo não!

Passei a manhã em Leon, com a Kathrin e a Karine. A primeira apareceu de surpresa ontem em Leon. Conseguiu "apanhar-nos" mesmo ficando um dia a descansar em Burgos. Karine, apareceu às portas do albergue, armada com alforges na bicicleta, à frente e atrás! Não descansámos enquanto não lhe cilindrámos com perguntas sobre a sua viagem, numa tentativa de curar saudades das nossas meninas. Mas isto foi ontem... Hoje, acordei sem a pressa habitua num albergue a fervilhar de agitação. Não há pressas quando se viaja de autocarro. Trinta quilómetros, são trinta minutos se tanto e não um dia inteiro a caminhar.

Passei um pouco com a Kathrin e a Karine pelo centro histórico, bebemos um café com leite. Tentei ser útil ensinado-lhes o que aprendi ontem. Onde era a biblioteca, onde eram os supermercados. Quais os caminhos para chegarem ao albergue. Elas vão ficar mais um dia em Leon para descansar. Eu meti-me num autocarro, para sair num vilarejo igual a outros tantos e entrei num albergue deserto. Os peregrinos não costumam chegar tão cedo. Se calhar, já não sou um peregrino...


10 de Novembro de 2011 - ...sobre não caminhar...

Mais um dia, mais outro autocarro. Já não sei o que estou a fazer. A intensidade dos dias a caminhar (e até os da bicicleta!) estão a esfumar-se num pesadelo rodoviário. Estou a ver o mundo através de um vidro e sentadinho da silva numa poltrona. Qual é a piada?

Voltei a chegar cedo de mais ao albergue de Astorga. Ainda a senhora andava em limpezas, por isso fui dar uma volta. Mas não muito longe, porque senão este descanso médico perde o sentido e torna a situação ainda mais intolerável. Por isso, fui ao jardim ao lado do albergue, onde uma exposição fotográfica ao ar livre sobre os últimos cem anos de Espanha, me entretiveram e ensinaram, muito sobre este país vizinho que só agora estou a começar a conhecer.

Os dias são passados, na cama. Deitado a olhar para o tecto enquanto oiço um livro nos fones. A dormitar e a beber chá e água.
O momento alto do dia, é quando a Ana e a Reyn, chegam esbaforidas e massacradas ao albergue. Durante o jantar elas contam-me as aventuras do dia. O brilho nos olhos delas ainda está lá, tal como o Santi nos explicou. O meu brilho, foi dar uma volta e ainda não voltou.


El Camino de Ana - Second Week

28 de Outubro - Navarrete - Najera - 16 km

Quando saímos já eram oito e tal e a cena dramática da pulga/piolho ainda estava fresca. A Reyn acordou cheia de comichões e com os braços cheios de picadas de algum bicharoco.
Saímos antes da Reyn, que foi a última a deixar o albergue! Em Ventosa passou-nos quando parámos para comer e mais à frente estava agachada a partir amêndoas! Ora aí está uma peregrina relaxada, que até tira algum tempo para partir os dois quilos de amêndoas que apanhou pelo caminho e carrega na mochila!!! Entre "nós ajudamos-te a partir isso tudo, entre os três é num instante!" e ela a rir-se e oferecer-nos amêndoas, pôr-nos amêndoas nos bolsos e dizer que não é preciso, lá seguimos e só mais tarde nos apercebemos que era uma estratégia para ficar para trás e fazer xixi descansada! No Verão, deve ser o cabo dos trabalhos, até termos algum tempo sem aparecer alguém, o suficiente para ir atrás de um arbusto e não nos apanharem de calças na mão!
Mais à frente a Reyn apanhou-nos e seguimos juntos. A conversar e a comer uvas, nem demos pelo tempo passar e chegámos num instante à cidade.
O Ricardo também estava no albergue e todos juntos almoçámos com as três hospitaleiras. Sílvia (México), Maybeth (Canadá) e Iolande (France). A Reyn mostrou os braços picados e as hospitaleiras ajudaram-na. Lavaram a roupa toda, saco cama na secadora, emprestaram-lhe roupas enquanto tudo secava.
Nós as duas partimos o resto das amêndoas e pusemos a taça na mesa para todos se servirem.
O Alexandre e eu dormimos uma sesta e acordámos com uma impressão na garganta. Decidimos fazer uma canja e o chá de cebola, com limão e gengibre. Pusemos as botas no sapateiro a coser e levaram uma camada generosa de banha de cavalo. A ver se agora ficamos com os pés molhados?!!
Jantámos e repartimos o jantar enquanto conversámos com o Santi, a Kathrin e a Reyn.
Mesmo depois da sopa e do chá, dormimos mal e acordámos muitas vezes a meio da noite (fazer xixi - três vezes!!!) com o calor abafado de tanta gente no mesmo sítio e do aquecimento,e dores de garganta.


29 de Outubro - Najera - Redecilla del Camino - 31,1 km

Um dos albergues que gostámos mais, (por culpa do ambiente criado pelas hospitaleiras) mas uma das piores noites. Descansámos pouco, mas ao menos que tivesse sido bom, mas nem isso.
Em Grañon tivemos a tentação de ficar por lá, quando no supermercado encontrámos a Kathrin, que nos disse só estarem nove peregrinos ali. A refeição do jantar era donativo, um ponto a favor, mas não poder usar o fogão eram dois contra, porque o almoço do dia seguinte seria pão se não cozinhássemos. Redecilla del Camino foi o nosso primeiro albergue, o ano passado, e gostámos muito, dois pontos a favor. Já conhecíamos e tínhamos mais quatro quilómetros para andar, dois pontos contra. Acabámos por ir! O Alexandre saiu disparado à frente e eu segui alguns metros atrás, capaz de me atirar para o chão e chorar de cansaço, mas para não ficar para trás até caminhei bastante rápido!
Onde é que está a luz? Eu gostava de saber onde é que está a luz e o hospitaleiro!! Afinal, as vantagens tornaram-se em desvantagens. Sem hospitaleiro/a, sem luz, e na cozinha a fazer comida às escuras, este albergue já não parecia tão apetecível.


30 de Outubro - Redecilla del Camino - Tosantos - 17,4 km

Tosantos, paragem obrigatória! O Santi andava a falar-nos à dias de que Tosantos era o melhor albergue do caminho.
O David acolheu-nos e explicou-nos que o donativo que deixássemos iria comprar a comida dos peregrinos do dia a seguir. Não sei porquê, mas as coisas postas desta maneira, tornam tudo mais pessoal.
Além do David, que era o mais novo, havia o Pepe, e o "chef" José Luís. Nem vale a pena dizer quantas vezes cada um já tinha feito o caminho, porque nem eles sabiam já! Muitas vezes, a começar em diferentes sítios e à procura de coisas diferentes de cada vez! Chamam-se os "enganchados" do Camino! O Santi a modos que "pertencia" a este bando. Oferecia-se como voluntário, quando podia, apenas neste albergue e via-se que se sentia em casa.
Chegámos cedo. Banhos, roupa lavada  e um saborear do sol do fim da tarde no jardim em frente, com chá, bolachas e amigos peregrinos. Ao anoitecer, preparámos a comida todos juntos, com os homens a liderar o fogão. Jantámos todos juntos na mesa corrida.
Depois do jantar fomos convidados a participar num momento de reflexão. Ideias como :"o Caminho não acaba em Santiago, continua toda a vida!!" ou "tu não fazes o Caminho, o Caminho faz-te a ti" ficaram-nos gravadas na memória, bem fundo.
Quando fomos dormir, todos tinham um presente sobre os sacos cama. Uma seta amarela, de alfinete!
O melhor albergue? Não sei! Mas sem dúvida o albergue mais comunitário! Não estamos sozinhos.


31 de Outubro - Tosantos - Atapuerca - 25,4 km

Tive febre durante a noite, e o nariz cheio de ranhoca a não deixar respirar. Durante o dia, é ver-nos embrulhados em papel higiénico a limpar o nariz que escorre sem parar.
Na floresta, a Kathrin, a Reyn e nós desesperámos pelo fim de tanta floresta, sem mudar nada! Umas escavações decorriam, e foi-nos pedido para deixar uma mensagem no livro de honra! Mais quarenta corpos descobertos das vítimas da Guerra Civil.
Pela hora de almoço, o grupo que dormiu em Tosantos foi-se reunindo aos poucos na praça em frente a uma igreja. O Santi, e o Daniel, O Lars e o Adam, nós quatro, e o Ricardo e a Chin Hok!
Chegámos seis a Atapuerca! Pela primeira vez uma senhora de um albergue preferiu dizer-nos que estava cheio do que receber-nos e ter trabalho a limpar depois! Muitos dos albergues, fecham no fim do mês de Outubro para voltar a abrir em Abril. Teríamos de estar atentos aos calendários dos albergues, que tínhamos na folha de Saint Jean. Ainda bem que havia outro albergue ali, caso contrário que remédio senão caminhar até ao próximo!
Fomos às compras juntos e cozinhámos juntos. O Pepe de Tosantos juntou-se a nós à hora de almoço, e de novo à hora de jantar. Fim de semana, e o que o Pepe gosta mesmo é de ajudar os peregrinos, por isso trouxe-nos vinho, chouriço e foi pedir uma cebola para nós!
A Reyn, dormiu no mesmo quarto que nós e, finalmente, pudemos partilhar dos nossos calores de estar dentro de casa, e abrir a janela, já que ela também acampa e é uma moça encalorada.


1 de Novembro - Atapuerca- Burgos - 21,4 km

O dia foi marcado pelo reencontro da Reyn com os seus amigos Marc-Antoinne e Cristina, que começaram em Le Puy, como ela. Um grito assim que saiu do albergue, e toda a gente percebeu que tinha encontrado os amigos. De tanto, que a ouvíamos lamentar-se de não ter ficado com nenhum contacto deles e não fazer ideia onde estariam.
Subimos ao monte com eles à nossa frente e uma neblina a desvanecer. Ao fundo víamos Burgos, e toda a estrada a percorrer até lá. Uma bela vista. Talvez por termos a visão da chegada, e pela companhia animada, chegámos que foi um ver se te avias. Os cinco a ocupar a estrada e na pura galhofa, chegámos divertidos a Burgos! Só um dos três albergues estava aberto, o municipal. Pedimos para ficar todos juntos e puseram-nos no segundo andar, vazio.
Ao fim do dia contámos, pelo menos sessenta e poucos peregrinos ali. Toda a gente estava ali. Todos os que já tínhamos visto, pelo menos uma vez, e todos os outros que partiram antes, ou depois de nós. Façamos as contas aos quilómetros e é difícil fugir a Burgos, já que temos 21,4 quilómetros sem albergues!
O jantar foi com o "nosso grupo", com cada um a partilhar o que tinha.


2 de Novembro - Burgos -  Hontanas - 20,6 km

O pequeno almoço foi de novo em grupo. A Kathrin e o Marc Antoinne e a Cristina iam ficar um dia em Burgos a descansar e por isso, quisemos aproveitar o que nos parecia ser os últimos momentos juntos.
Muito, muito vento, muito, muito frio, por volta da hora do almoço. Juntámo-nos todos nas escadas de uma igreja, mas a ventania não deixou ninguém ali muito tempo.
De novo, da parte da tarde seguimos, uns atrás dos outros, mais ou menos à mesma distância. Todos a sós com a chuva miudinha, na estrada empedrada, e os seus pensamentos. As botas deviam pesar mais meio quilo com a lama que vinha atrás. O Kim escorregou e pôs a "pata na poça".
A estrada sempre igual a prolongar-se e a mostrar mais do mesmo planalto sem fim.
A chuva ficou mais forte e a estrada nunca mais chegava a lado nenhum.
A chuva parou e vimos um sinal do meio quilómetro que faltava para a vila, mas sem ver nada no horizonte.
Até que finalmente vemos a torre da igreja e começamos a descer e chegamos.
Cozinhámos com a Reyn, lentilhas e a chuva continuou a chover lá fora.


3 de Novembro - Hontanas - Fromista - 34,3 km

Todos de poncho e botas. A chuva não convida a caminhar descontraído e acompanhado. Vamos sempre todos mais pensativos e demoramo-nos pouco.
Subimos e descemos, fazemos poucas paragens. Pensamos em chegar. Descansar e estar seco e protegido dentro de quatro paredes. Mas o dia pregou-nos uma partida. Na vila onde planeávamos descansar, Boadilla del Camino, a hospitaleira, não lhe apeteceu limpar o albergue e foi dizendo a uns que estava aberto e a outros que estava fechado. E não se limitou a dizer do seu albergue mas também dos privados em redor. Experimentámos um e como fomos recebidos por um "robot" e não por um hospitaleiro, decidimos não ficar por ali. Também era mais caro do que os nossos planos! E sendo assim lá desencantámos forças, (muito fraquinhas, diga-se) para os "só mais seis quilómetros" a que ficava o próximo albergue, disse-nos a dita senhora.
Chegámos de noite, com frio, cansados, e com fome, para um albergue sem fogão.
Valha-nos o calor humano!


El Camino de Alexandre - Second Week

28 de Outubro de 2011. Santi Rodriguez e a peregrinação. 

Quando o Santi parou junto a nós para descansar, na subida dos Pirenéus, e lhe oferecemos bolachas e água, tomei-o por mais um peregrino. Trazia uma garrafinha de plástico, já vazia, para um dia de 27km. O seu equipamento não me pareceu o mais adequado. Seria apenas mais um... No dia seguinte, avisou-me que se levasse os fones nos ouvidos, não podia ouvir o Caminho.

Em Najera vimo-lo a entrar na cidade. Já não o víamos há alguns dias e ao aparecer, os três esboçámos um sorriso no meio da rua, como amigos de longa data que se reencontram. Parecia cansado e abatido, mas com um brilho nos olhos, não obstante. No albergue, inclinados sobre uma canja e um chá que nos curaria a constipação, conversámos com ele. É camionista e vive em Madrid, mas está desempregado à vinte meses. Não é a primeira que vez caminha até Santiago. É a oitava vez! E depois de tanta experiência no Caminho, já desenvolveu as suas próprias filosofias e pontos de vista sobre a melhor forma de fazer isto... a peregrinação.

Segundo Santi, existem muitos a caminhar até Santiago, mas poucos a peregrinar. Muitos que fazem o caminho por troços, muitos que saltam etapas de autocarro, muito que vem para a festa e a paródia e aproveitam-se dos preços baixos dos albergues. Estes seriam os TuriPeregrinos.
Peregrinação, segundo Santi, é aceitar as dores e as intempéries, comer bem nuns dias e nada noutros, fazer dez amigos num albergue e sorrir ao caminhar três dias sem falar com ninguém. Peregrinar é, além de caminhar até Santiago ininterruptamente, é estar aberto e aceitar aquilo que o Caminho nos mete à frente. Seja de bom, ou mau. Segundo Santi, o Caminho dá-te aquilo que precisas, não o que procuras.


29 de Outubro de 2011. Ás escuras em Redecilla del Camino.

Tínhamos de lá chegar. Foi o nosso primeiro contacto com o Caminho de Santiago, quando por lá passámos de bicicleta. Redecilla del Camino. Queríamos fechar este círculo.

Estafados quando saímos de Grañon e mais ainda quando passámos a barreira dos trinta quilómetros e chegámos ao albergue. A parte da casa que conhecíamos estava deserta, e sem electricidade. A parte que tinha a cozinha.  Antes que escurecesse, fui à única loja da cidade. Um bar cheio de fumo e de homens a beber cerveja. Enfiado num canto, uma estante fazia às vezes de supermercado da vila, com uma parca gama de produtos. Esparguete, com salsichas e molho de tomate.
Na minúscula cozinha, com o calor corporal a sair em vapor com cada expiração, tal era o frio que fazia no albergue, armado com uma lanterna na cabeça, lá se compôs um jantar quente. Durante isto, dois holandeses entraram também na cozinha. Tinhamo-los visto em Roncesvalles. Estes já caminham desde o sul de Paris. Quatro pessoas e roçar de ombros entre tachos ao lume e frigideiras a lavar.

Não é a primeira vez que cozinhamos às escuras, nem sequer a primeira vez que temos frio debaixo de sacos-camas e cobertores. Mas esperávamos mais depois de alimentar memorias acolhedoras deste albergue. Adormecemos desmotivados sem nunca ter visto sequer o hospitaleiro/a do albergue.


30 de Outubro de 2011. Tosantos e os peregrinos crónicos.

Para o Santi, Tosantos é o melhor albergue do Caminho. É governado por hospitaleiros voluntários, que por sua vez também já foram peregrinos. É o requerimento para se ser hospitaleiro num albergue. Tosantos é aquela aldeia com uma igreja enfiada nos penhascos. O ano passado passámos de repente por ela. Hoje vamos aqui dormir.

Estamos a aproveitar o restante sol do dia, no quintal do albergue. A beber café e chá com a Reyn, a Kathrin, Santi, Ricardo e mais dois ou três peregrinos. Connosco, estão os hospitaleiros, também à conversa.
O mais novo, David, é um peregrino crónico de Barcelona. Conta que as primeiras vezes que fez, procurava aquele convivo com as pessoas que nós andamos a experienciar. Mas com o tempo, procurava mais tempo para ele. Mais espaço para pensar e estar em paz. Agora, quando caminha, leva uma tenda. Pepe, é outro antigo peregrino. Vive em Burgos e não cheguei a perceber qual era a sua profissão. Pelas conversas paralelas, é um "anjo" do caminho, como o Santi lhe chama. Anda para trás e para a frente, de carro, entre a sua casa e os albergues em redor de Burgos, ajudando com o que pode (comida), conversando com as diferentes nações que passam junto à sua porta, fazendo-lhes sentir em casa e fazendo amigos no processo.

É o primeiro albergue sem camas. Apenas têm uns colchões do tipo que se encontram nos ginásios. Não somos muitos, mas vamos todos ficar no mesmo quarto. Daqui a pouco todos vão ajudar a preparar o jantar, com os ingredientes que o Pepe trouxe e com as compras resultantes dos donativos do dia anterior. Aqui, agradece-se com donativos, que irão tornar a recepção dos peregrinos de amanhã, mais ou menos acolhedora. Depende da vontade de cada um.
Não sentimos que estamos num empreendimento turístico que trata peregrinos como cifrões. Sentimo-nos antes, em comunidade com todo este mundo paralelo do Caminho de Santiago.


31 de Outubro de 2011. A longa floresta.

Não sei quanto tempo demorámos a atravessar aquela floresta.
O tempo andava esquisito e o facto de saber que seria uma travessia de mais de dez quilómetros de deserto florestal, não ajudava a levantar a moral. A comida também era escassa.
A floresta é cerrada, impossibilitando-nos de ver o horizonte, ou ver para onde nos dirigimos. É como um túnel de verde. Fez-me lembrar algumas estradas de Angola. Estradas de terra batida, amplas, mas com mato denso por todos os lados. Estamos a pé, e não de bicicleta. Dez quilómetros já não são trinta ou quarenta minutos de pedal, sentadinhos num selim. Agora são duas horas de trabalho árduo, com peso às costas e lembranças de dores futuras ao final do dia.

Algures no caminho, encontrámos uma equipa de várias pessoas, a escavar com escovinhas e pincéis, debaixo de uma lona, um imenso buraco. Um monumento à memória do que aqui ocorreu, explicou o cenário. Pelos vistos, esta vasta floresta serviu para esconder algumas das atrocidades de Franco. Mais de 400 pessoas já foram aqui encontradas em valas comuns e mais preparam-se para se juntar aos números da vergonha.

Mais à frente, sentadas num sinal do Caminho, Kathrin e Reyn, compunham as barriguitas com uma pequena bucha enquanto esperavam por nós. Continuamos todos juntos, com a conversa a distrair um pouco a rotina implacável. Mas não durou muito. A sensação opressiva da floresta, também estava a cobrar às nossas amigas.
Só queríamos sair dali o quanto antes...


01 de Novembro de 2011. A longa floresta industrial.

A entrada para a cidade de Burgos faz-se via duas rotas. Uma, mais longa mas em comunhão com a Natureza, seguindo um rio e muito menos utilizada. Outra, a tradicional, via as auto-estradas e a imensa zona industrial da cidade. Com tempos de chuva, já tivemos doses suficientes de chapinhar em lamas. Fomos pelo asfalto.

Com a companhia do Marc-Antoyne e da Cristina que nos "apanharam" em Atapuerca, logo ao início do dia, atravessámos os imensos armazéns, as vias rápidas e passagens elevadas, as vastas cercas de metal, os parques vazios de estacionamento e as parcas árvores que o concelho por ali plantou, para dizer que sim...
Valeu-nos ser Domingo e estar tudo fechado e com pouco ou nenhum movimento. Mas estávamos animados, sempre na conversa e na galhofa.

Foi assim que entrámos nas planícies de Castilla y Leon e numa das regiões mais frias de Espanha. A partir daqui começa um novo território, por nós não conhecido.


02 de Novembro de 2011. Frio, chuva e vento...

Foi o início do nosso Outono.
Tal como na bicicleta, o frio, a chuva e vento, são os piores inimigos do caminhante, e quando os três se combinam, o dia torna-se deveras interessante! Começou a chover logo à saída de Burgos. Enfiámo-nos nas nossas redomas de plástico Quechua e seguimos as já familiares setas amarelas. Ao início, a chuva incomoda mas é o frio que aos poucos se entranha em nós.

Não temos luvas. Umas das mãos vai a segurar o cantil pois é a melhor forma que temos de beber água continuamente. A outra mão, apoia o bastão e leva-nos em frente. Claro que isto implica que as mãos estejam à chuva. Estão sempre molhadas. Depois do almoço, já nem as sentimos de tanto frio que está.
As planícies, também não ajudam. Tudo é imutável durante horas e quando parece que chegámos a um tímido topo ou pequeno vale, descobrimos que temos mais horas do mesmo. Chuva, vento, frio e uma paisagem que não muda.

Nestas condições, até as acções mais simples e corriqueiras implicam um estorvo. Aliviar a bexiga, parar para beber água, apertar os cordões, ou tirar uma maçã da mochila.
Tudo ganha outra dimensão e tudo é uma grande vitória. Tudo se torna num exercício zen. Não pensar. Não lembrar. Não agir. Não sentir. Um passo de cada vez. Um passo de cada vez...
Nunca uma miserável vila foi motivo de tanta felicidade, um colchão tão querido ou um bico de fogão tão adorado.


03 de Novembro de 2011. Só mais 6km...

...não podia acreditar. Mais seis km!! Quando ouvi o que a senhora do albergue disse, só podia ser uma brincadeira. "O próximo albergue é perto. São só mais seis quilómetros...", respondeu a senhora da limpeza às perguntas dos peregrinos.

Mais seis quilómetros de pura tortura! Mas o que é isto do Caminho de Santiago?!?! O dia foi uma repetição do dia anterior. Planícies, frio, chuva e vento. Com o acrescento de uma dor crescente no tornozelo a seguir ao almoço. Cá me quer parecer, que deve ter sido do passo acelerado, e sem alongamentos prévios, a que os pés foram sujeitados durante toda a manhã.
Quando finalmente nos começamos a aproximar da vila objectivo, aquela que a folha A4, em francês e já rasgada, nos dizia ter um albergue aberto todo o ano, e descobri que teria mais seis quilómetros de tortura, fiquei boquiaberto. Como raio é que vou tirar mais um quilómetro que seja, do estado vergonhoso e derrotado do meu corpo?

Não sei como. Nem me apraz recordar como, mas fi-lo. Já era noite quando chegámos à vila seguinte. Jurei para nunca mais. Jurei que iria ter mais cuidado com os meus ricos pés e pernas. Que iria fazer alongamentos ao acordar. Que iria fazer paragens regulares e beber litros e litros de água... Nunca mais um dia destes, por favor. Mas não... 



El Camino de Ana - First Week

21 de Outubro - Saint Jean Pied de Port - Roncesvalles - 27 km

Final do dia! Pode não ser tarde ainda nas horas, mas chamo-lhe final do dia, porque já caminhei os vinte e sete quilómetros que me propus fazer hoje. E isso dá por terminado os meus deveres! A primeira etapa, para quem começa de Saint Jean Pied de Port. Não há mais albergues, refúgios, ou aldeias pelo caminho e, sendo assim, todos os peregrinos fazem a mesma etapa, os mesmos quilómetros e terminam o dia no mesmo albergue, em Roncesvalles. O albergue "mudou" as suas instalações e agora temos todas as comodidades que um peregrino pode desejar. Um cozinha industrial, muitas e enormes mesas corridas, lavandaria, sala de convívio, livros que podemos levar e dormitórios com robustos beliches de madeira arrumados em espaços de quatro em quatro. Como o espaço é aberto, durante a noite os trinta peregrinos que ocupavam as camas partilharam tudo o que fosse sons! Falo, claro, dos roncos e seus respectivos roncadores.

Saímos de Saint Jean ainda estava escuro e fomos seguindo os outros, meio perdidos e a pensar como saberiam eles por onde seguir. As nossas mochilas a abarrotar de pão, porque já sabíamos de antemão que nas imediações do albergue de Roncesvalles não haveria supermercado nem mercearia, e no dia seguinte era domingo, o que significava estar tudo fechado!
A paisagem era LINDA! Que mais se pode dizer. Subir os Pirenéus a pé, ficar rodeado de montanhas, verde fresco, ovelhas, e a neblina nos vales que dá impressão que estarmos acima das nuvens. Fomos ultrapassando e sendo ultrapassados por outros. Chegar ao topo foi, de alguma forma, fácil, embriagados pela beleza das vistas. Descer, isso sim, foi o martírio! Os gémeos e os tendões começaram a doer, porque a inclinação era tanta que tínhamos de controlar cada passada para não desatar a rebolar por ali a fora, no meio das folhas secas! Duas bolhazorras, uma em cada calcanhar!


Jean- Paul e Jean-Pierre: Amigos de longa data, deixaram as mulheres em casa, e vieram pela não sei qual vez consecutiva, fazer o Caminho de Santiago. Sempre bem dispostos e muito faladores. Muito agradáveis e divertidos com todos. Pareciam não sofrer das dores que os mais jovens se queixavam.

22 de Outubro - Roncesvalles - Larasoña - 26,3 km

Cheguei, completamente, estourada. Da cintura para baixo tudo doía, uma consciência muito, muito grande das partes do meu corpo. Quando ninguém está a ver, até me agarro às paredes para ajudar a livrar os pés de peso.
Passámos o dia na floresta. Nos livrinhos mil que se fazem do caminho, esta etapa é conhecida como a floresta mágica! Mal vemos a estrada nacional, para felicidade de todos os peregrinos. As cores outonais acariciam-nos por todo o lado. Logo no início do dia, saímos para uma manto de geada que cobria tudo de branco. As árvores ofereceram-nos momentos mágicos, onde se despiam diante de nós a uma rapidez estonteante. De tão bonito que quase nos perdemos por ali!
O caminho seguiu subindo e descendo, atravessando também campos de pasto. Devíamos passar e manter a porta fechada, para que nenhum animal se escapasse. Talvez com uma vaca a correr para nós andássemos mais rápido!!
Seguíamos sempre as setas amarelas, mas às tantas tive a certeza que se me perdesse alguma vez, bastava seguir o rasto de papel higiénico!
No fim do dia éramos quatorze no albergue. Tinha um aspecto menos cuidado, com a cozinha revestida com uma película de gordura rançosa, os beliches meio ferrugentos, que rangiam e os colchões que levantavam sérias questões da periodicidade com que eram limpos. Mesmo assim, tinha tudo o que necessitávamos. Incluindo uma mercearia na vila, coisa que não vinha assinalada na folha que nos entregaram em Saint Jean com os nomes dos albergues, distâncias, e equipamentos e recursos que havia em cada albergue/aldeia. Foi uma noite com muitos sons, camas e ressonar! Estávamos confinados a um quarto cheio de gente, com aquecedores ligados e mesmo que tentemos abrir a janela à socapa, mesmo antes de nos deitarmos há sempre alguém que dá conta e vai fechá-la. Resignámo-nos a acordar a meio da noite com ataques de calor e ar seco e quente. Quero a nossa tenda!


Kathrin: Metade americana, metade alemã! Após anos como uma verdadeira workaólica, decidiu deixar tudo e aproveitar a vida! Trabalhou numa conhecida empresa de preservação do ambiente e por causa disso viajou pelos quatros cantos do mundo! Adora caminhadas e trekking. Exibia o material mais light e técnico que vimos pelo caminho! Era uma conversadora nata e passávamos bons momentos com ela. Tinha sempre algo interessante para falar, fosse com quem fosse. É adepta, a única que conhecemos até agora, de audiobooks, como nós. Falava inglês, alemão, holandês, espanhol!

23 de Outubro - Larasoña - Zariquiegui - 26,1km

Atravessámos Pamplona, nossa conhecida do ano passado. Descansámos na cidade antes de completar os últimos dez quilómetros. Ao fim da tarde, o vento começou a soprar forte. Sabíamos que a maioria tinha planeado ficar-se por Cizur Minor. Fomos ambiciosos e seguimos até à aldeia seguinte, em busca de mais sossego pela noite. As noites calmas, e às vezes solitárias da bicicleta, fazem-nos falta.
À medida que caminhamos e paramos para xixis, comer ou descansar vamos sendo ultrapassados pelos que vêm de trás. às vezes dizemos só !hola! ou "buen camino" e outras demoramo-nos mais. Depende! Alguns que caminham mais rápido, ultrapassam-nos enquanto caminhamos!
 
A hospitaleira, Fátima, era uma simpatia e tinha muito que contar, mas as dores nas pernas pediam-nos para descansar. Entre chegar e sentar-nos devem ter passado, sem exagero, duas horas. A meio do banho escutámos mais vozes. Mais peregrinos, quem seriam? O Jean Paul e o Jean Pierre com os amigos que conheceram o ano passado no caminho, a Annie e o François. Acabámos o dia sentados à mesa a partilhar comida e histórias. Se bem que eles se tenham prologado mais, como se estivessem num dia normal, e não com vinte seis quilómetros nas pernas. A ventania e a chuva instalaram-se e gradualmente foram crescendo em intensidade. Os gémeos doíam-me tanto. Estavam tão duros que me doíam só de tocar, como músculos em pleno ataque de caímbra!


Marc-Antoyne e Cristina: Um casal do Canadá, um com dezoito e o outro com dezanove. Terminaram a secundária, e não queriam ir para a universidade, pelo menos, ainda! Ouviram falar do Caminho nas aulas e decidiram que seria uma boa opção para pensar na vida. Sempre juntos e muito unidos! Tinham orçamento limitado e partilhavam dos nossos hábitos de andar sempre a fazer contas ao preço da comida e albergues!

24 de Outubro - Zariquiegui - Lorca - 25,8 km

Só de olhar para a janela, já nem apetecia sair. Estava um vendaval enorme, e chuva. A Fátima arranjou-nos uns sacos de plásticos gigantes, que vestimos de maneira a cobrir as mochilas. Parecíamos uns espantalhos, uns bonecos tipo Blasted Mechanism!
Subimos a lutar contra o vento até ao Alto do Perdão. A escultura no topo é bonita, mas estava tanto vento e chuva que os ponchos e boinas dos JiPis voaram (tiveram que correr para os apanhar) e desmotivaram-nos a parar ou tirar qualquer foto.
Descemos pelo caminho empedrado atentos para não escorregar.
O almoço foi "debaixo" da famosa Puente de la Reina, já com uns ponchos azulões, acabadinhos de estrear. Uns muito mal empregues dezoito euros, pois assim que os vestimos um deles rasgou-se logo!
Contra o vento todo o dia, era olhar para trás ou para a frente e ver peregrinos inclinados a resistir à ventania.
Chegámos a Lorca e a Kathrin esperava por nós e juntos encontrámos o albergue. Fomos recebidos não por um hospitaleiro, mas pelo Ivo sorridente e mais falador do que alguma vez o tínhamos visto, a espreitar pela janelinha da porta de madeira: "This is perfect!","Everything!","Internet, television, wine!" e pegou na sua caneca para mais um gole e percebemos logo de onde vinha toda aquela alegria e falatório. Instalámo-nos na camarata comum, onde ao todo fazíamos cinco. E de facto, o albergue estava muito bem equipado e tinha boa pinta. A hospitaleira chegou mais tarde e foi também muito simpática. À entrada toda a gente deixou as botas molhadas e cheias de terra.
Os meus pés e tornozelos estavam com manchas vermelhas e inchadas. Espintalgados. O Alexandre tinha menos, mas também tinha.
Chegaram pouco depois a Annie e o François. Comemos uma sopaza de feijão, chouriço e massa e deitámo-nos deixando o Ivo e um outro hóspede espanhol não peregrino numa conversa de malucos. Nem espanhol, nem inglês, mas entendiam-se, lindamente!


25 de Outubro - Lorca - Los Arcos - 31,5 km

Entrámos na região de La Rioja e para celebrar, uma adega disponibilizava numa fonte duas torneiras, uma de água e uma de vinho. Escusado será dizer que todo e qualquer peregrino que por ali passava seguia mais contente, com um copo de tinto, ao ser convidado pela adega a provar das duas torneiras!
Ainda víamos vestígios do País Basco pelas vilas. Muitos pimentos a secar e palavras de ordem grafitadas nas paredes a pedir liberdade para o País Basco!
Trinta quilómetros depois e não podia com uma gata pelo rabo. Estava estoirada! A vermelhidão nos pés e, em especial, no tornozelo estava a alastrar e ardia! As bolhas dos calcanhares lá estavam para ficar e outras mais pequeninas surgiam nos dedos!
Um italiano com uma tendinite recebia massagens de um fisioterapeuta, ao lado dos dormitórios. Assustada fui perguntar ao fisioterapeuta se  por acaso sabia o que seriam aquelas manchas nas pernas. Falta de água! disse ele. Já tínhamos ouvido parte da sua conversa com o italiano e também lhe faltava água. Pelo menos três litros, explicava. Outras recomendações como não transportar mais que dez por cento do nosso peso, fazer paragens a cada oito/dez quilómetros, descansar bem, beber muita água, pôr os pés de molho em água fria, aplicar gelo, aplicavam-se a ele, mas também a todos, em geral. O Alexandre também já vinha com as dores a acentuarem-se no corpinho. Tendões dos calcanhares e manchas nos tornozelos. Assim que ouviu as recomendações do fisioterapeuta, disse que nunca mais se ia queixar de paragens para xixi e que ia beber muita água! A ver vamos!
O albergue era municipal e por isso mais barato que os outros da cidade (excepto quando há albergues de donativo!). Os peregrinos que lá encontrámos nunca os tínhamos visto! Além do italiano da tendinite, o Ricardo, havia um outro italiano, o Francesco. O Joel, das ilhas Maurícias, juntou-se na cozinha com o Kim, da Coreia, e fizeram o jantar para os quatro. Pasta para italianos. Era inevitável não sorrir perante este cenário. Vimos o Francesco olhar e até fazer uns comentários em surdina à forma como o Joel lidava com a pasta, mas não se meteu.
Um espanhol mais velho, entrou na cozinha e também adicionou mais tensão à cena, pondo-me a traduzir, para o Joel, a maneira com a sua mulher (que estava em casa) fazia um esparguete delicioso apenas fritando alho picado em azeite, e aguardando para verificar se o Joel fazia o que ele dizia! Quem já fervia era o Joel, da canseira de gente a dizer-lhe faz antes assim!!!


Ricardo: pouco depois de ter começado, ficou com uma tendinite. Mas nunca parou, ou desistiu. Continuou determinado, parando para a sua cerveja diária, e acompanhava sempre a sua comida italiana com um vinho. Muito simpático e generoso!
Restaurava carros antigos, como profissão e tinha a carta de condução apreendida há quase um ano, por multas de excesso de velocidade! Sonhava em viajar para a Austrália!

26 de Outubro - Los Arcos - Viana - 18,6 km

Depois de planos feitos para parar só em Logroño e fazer quase trinta quilómetros, as dores e as bolhas fizeram-nos voltar à razão e humildar o dia. Estávamos muito cansados e com um andar à pato! Bebemos muita água durante a manhã. Fizemos muitas "xixi's stops", claro!
Acabámos por ficar em Viana e tirar o resto do dia para repousar. Comemos o resto do nosso almoço de tupperware, e subimos ao terceiro andar dos beliches, onde descansámos, dormimos, ouvimos histórias, fizemos contas à vida, sempre com o cantil da água e chá ao lado!
Estava meio a dormir, quando o Alexandre me disse, que estava toda a gente ali! Só quando acordei para irmos fazer a janta é que vi quem era toda a gente! O pessoal com que saímos de Roncesvalles: A Kathrin (dei-lhe um grande abraço), a Reyn, a Cristina e o Marc- Antoinne, a Marinne, o outro casal de franceses, e as duas espanholas do dia antes, que chegaram a Los Arcos, depois de nós!
A Reyn assim que nos viu disse: "Então, estão cansados?", "Quiseram fazer muitos, não foi? Agora não podem mais!"
Na hora de fazer o jantar, mais dois novos peregrinos estavam na cozinha. Dois brasileiros. Um deles era o que esteve connosco no albergue de Saint Jean e que não chegámos a conhecer. O Sérgio, de São Paulo e a Flávia de Santa Catarina em Florianópolis. Muito simpáticos e trouxeram-nos uma quebra na rotina de falar inglês, francês ou espanhol
As dores melhoraram. A cidade é bonita. Tudo estava melhor quando descansávamos e tínhamos connosco pessoas que já começávamos a gostar!


Joel: a primeira pessoa que conheço que é das ilhas Maurícias. Tinha um inglês com uma pronúncia tão gira. E apesar de já ter quarenta, ninguém lhe dava mais de trinta e cinco. Em dias de muitos peregrinos juntos, assumia a liderança e punha o turbo, que o fazia ser dos primeiros a chegar.

27 de Outubro - Viana - Navarrete - 22,4 km

Passámos por Logroño.
Aproveitámos a grande cidade e visitámos o café onde há quase um ano atrás tomámos café com a nossa couchsurfer Mayte e o filho Nahuel, e deixámos-lhe uma mensagem. Comprámos os terceiros ponchos da viagem, na Decathlon, e esta grande paragem na cidade alongo-nos o dia.
Uma chuvada tremenda à hora almoço deixou-nos os pés e as calças ensopados, num instante. Logo a seguir, o sol brilhou até nos deixar em t-shirt. Percorremos o mesmo caminho que tínhamos feito o ano passado, atravessando o enorme parque à entrada de Logroño, e caminhando ao lado da auto-estrada separados por uma rede cheia de cruzes de paus e ervas que os peregrinos vão fazendo.
Chegámos a Navarrete e porque o quarto já estava cheio ficámos sozinhos no andar de cima!
Estava cansada de ter sempre alguém a cheiretar a nossa comida. Sem ter qualquer confiança abriam a nossa panela para espreitar o que preparávamos, diante das nossas caras. Já para não falar dos comentários constantes sobre a nossa divisão de tarefas, ou sobre o facto de cozinharmos todas as noites, para o jantar e para o dia seguinte. Eles vinham de casa, nós de semanas sucessivas de campismo, de uma viagem de bicicleta. Se o albergue tinha fogão espremíamos ao máximo o seu sumo. Fartos de sandes e comida fria andávamos nós.
Já íamos a meio do jantar quando a Reyn chegou, esbaforida e carregada de comida. Pôs-se a cozinhar ao mesmo tempo que nós e jantámos juntos. O Kim juntou-se a nós, e partilhou da nossa sopa, uma vez que conseguiu queimar a pasta que tentou fazer.
Falámos das nossas vidas, do nosso dia, de problemas com cartões multibanco, perder iPhones, e fazer o caminho.
A Reyn foi posta no mesmo quarto que nós. Foi a primeira vez que dormimos os três no mesmo quarto! O sossego.


Reyn: Professora primária, educada numa escola Waldorf, vivia numa quinta e é da Bélgica. Desde o primeiro dia que olhámos para ela e para a sua grande mochila que nos cativou. À medida que o tempo avançava, passámos cada vez mais tempo com ela. Uma verdadeira amiga, com quem partilhámos o Caminho. Deixou o trabalho para fazer o Caminho e decidir o que queria fazer na vida. Falava francês, inglês, holandês, alemão, espanhol, arranhava latim e grego antigo e começou lições de português connosco!

El Camino de Alexandre - First Week

21 de Novembro de 2011. Conversas na montanha com Wolt.

Estávamos os três à conversa. Sentados na relva, um pouco cansados. Virados para o Norte, enquanto palavras em espanhol se misturavam com as de inglês, a dizer adeus a França. Para nós, um adeus definitivo nesta viagem.
Wolt devia ter vinte e muitos ou trinta e poucos e é da Bélgica. Como muitos que fazem o caminho, também ele fez uma pausa na sua vida para viajar.
A conversa era despreocupada. Nós tentávamos não falar das bicicletas. É muito cedo para começar a desbobinar todo um ano a estranhos. Ao longe, mais peregrinos continuavam a subida dos Pirenéus, tal como nós o fizéramos à pouco. Desde as sete da manhã, sempre a subir por entre vales, rodeados por portentosas montanhas, povoadas de ovelhas, cabras, pastores e caçadores. Com apenas um local onde encher o cantil durante vinte e sete quilómetros de beleza natural indescritível. Nestas alturas,uma pessoa não precisa de água. A adrenalina, a sensação de um novo começar, partilhada com mais peregrinos de todos os cantos do mundo é suficiente. Espanhóis, Franceses, Belgas, Alemães, Coreanos e provavelmente outros, a quem não perguntámos o nome.
Wolt, quis ficar mais tempo sentado. Sozinho entre as montanhas, a apreciar a paisagem. Nós dissemos adeus e seguimos rumo à descida que atravessaria uma floresta, antes de chegar ao albergue.


22 de Novembro de 2011. A floresta gelada.

As folhas das árvores caiam como se chuva fosse.
Poderíamos ficar toda uma manhã a olhar para este acontecimento de tão belo que é. Imaginem uma floresta e um caminho a atravessá-la. Imaginem tudo coberto de um orvalho gelado de tanto frio que fazia. A relva estaladiça, as poças de lama com uma camada de gelo. Umas vacas a tentar encontrar alguma relva menos gelada. Não havia vento... Uma quietude no ar.
Nem reparámos nas folhas a cair da árvore. Quem é que costuma reparar em folhas a cair, quando estamos no Outono? As árvores pareciam estar a mexer-se demasiado para a calma que nos rodeava. Delas caiam não uma ou duas de vez em quando, mas dezenas e dezenas de folhas, num fluxo constante. Não parecia ter fim! Sempre a cair, de todas as árvores do caminho.
Os guias do Caminho, alertavam de como esta floresta é mágica. Ainda são oito horas e já estamos a ver um espectáculo destes.
Lá mais para frente, um pau encostado a uma árvore como se uma pintura fosse, "chamou-me e pediu-me" para vir também. Agarrei nele e ele a mim, e os dois seguimos em frente sem grandes conversas...


23 de Novembro de 2011. Jantar com os franceses.

Deixámos o "nosso" grupo de Saint Jean Pied du Port para trás, ao decidir avançar mais seis quilómetros, rumo ao Alto del Perdón. Entrámos no albergue da pequena vila antes do topo. Éramos os primeiros e pelos vistos os únicos. O albergue tinha um ar de novo e com decoração muito familiar. Não custava muito imaginar o que poderia ser a nossa casa. Depois da ventania das últimas horas, do aspecto frio e desolador da montanha que nos esperava no dia seguinte e da solidão da maior parte do dia, soube bem chegar a um sítio acolhedor como este.
Enquanto tomávamos banho e bebíamos chá, umas vozes à porta fizeram-se ouvir. Chegou mais gente. O Jean Pierre e o Jean Paul, acompanhados por mais dois amigos franceses, Annie e Françoi, entraram em casa, com as volumosas mochilas, o ar cansado e o sorriso na boca. Características típicas de um peregrino.
De alguma forma, demos por nós, horas mais tarde, sentados à mesa com todos eles. Todos trouxeram as suas dispensas para cima da mesa. Nós com uma grande sopazia de feijão com massa e chouriço, eles com o pão, o queijo, mais chouriço espanhol, garrafas de vinho, tortilhas e boa disposição. Podíamos estar na nossa casa ou na casa deles. Todos partilhavam o que tinham, assim como as histórias e os motivos comuns que nos juntaram aqui. Podíamos fingir que estamos em casa, mas estamos a jantar com quatro franceses, da idade dos nossos pais, numa vila espanhola. Estamos bem.


24 de Novembro de 2011. Os ponchos improvisados do Perdon

A noite foi descansada e em paz, não obstante os ventos e a chuva lá fora. Só nos lembrámos da nossa situação quando chegou a altura de enfrentar o dia lá fora. Um vilarejo a meio caminho do topo da montanha, são sete, está um monumental temporal lá fora com perspectivas de piorar e nós não temos um impermeável para as nossas mochilas!
Já os franceses tinham saído, quando a hospitaleira do albergue apareceu. Pedimos-lhe ajuda e o melhor que se arranjou foram dois sacos do lixo tamanho XL, onde fizemos três buracos. Dois para os braços e um para a cabeça. Cobria a mochila e era esse o objectivo.
Saímos porta fora e durante duas horas lutámos contra as rajadas de vento que ameaçavam tombar-nos, a chuva que beliscava na cara e nas mãos com ajuda do frio, a lama fresca durante a subida e as pedras escorregadias na descida.
Quando finalmente chegámos a Ponte la Reina, procurámos uns ponchos como deve ser, entre as lojas turísticas para os peregrinos. Pagámos dezoito euros por dois ponchos azuis, que assim que saímos da cidade, começaram a rasgar-se!
São os segundos ponchos do dia, e pelo andar da coisa, não serão os últimos até Santiago!


25 de Novembro de 2011. Um mauriciano e um coreano cozinham pasta para dois italianos.

Com trinta e tal quilómetros nas pernas e pés, só queríamos uma cama onde nos deitar até amanhã! O mais difícil ao fim do dia, é ter forças para repor forças! Ter tino na cabeça, para tirar botas e peúgas e pôr tudo a secar. Lavar algumas cuecas e peúgas mais mal cheirosas. Ir procurar um mercado ou loja onde a comida não tenha preços exorbitantes de peregrino, encontrar tachos e panelas onde cozinhar algo a que possamos chamar comida que conforte. Quente de preferência.
É neste cenário, numa cozinha com mais cinco ou seis peregrinos em que nos encontramos. Na conversa com eles, entre picar cebolas e ferver água para o arroz, que conhecemos os membros do grupo que partiu de Saint Jean no dia antes de nós! Um sinal de que talvez estejamos a caminhar demasiado depressa.
Mas valeu a pena, para os poder conhecer e assistir ao filme que se desenrolou, enquanto o Joel, das Ilhas Maurícias, e o Kim, da Coreia do Sul, cozinhavam pasta para dois Italianos. Pasta para dois Italianos, enquanto um sexagenário espanhol mandava biscates de faz assim ou faz assado!


26 de Novembro de 2011. Kathrin e os outros.

Cansados e com a moral um pouco em baixo, ficámos em Viana. As ruelas eram-nos familiares da nossa passagem aqui de bicicleta. A malta das Ilhas Maurícias, Coreia e Itália, passou-nos à frente. Iam ficar em Logroño. Nós decidimos que hoje seria dia de descanso, mesmo que isso significasse que deixaríamos de estar entre caras conhecidas. Ficaríamos no limbo, entre as pessoas que começaram ao mesmo tempo que nós e as que saíram um dia antes. Ficaríamos sozinhos.
Pelo menos o albergue era catita. Até os beliches eram diferentes e chegavam aos três andares! Nós repousávamos nas alturas do terceiro andar, quando mais alguém entra no quarto. Kathrin! Conhecemos-la no dia da floresta mágica. O segundo dia. De alguma forma fomo-nos encontrando ao longo dos dias. Ora ela passava por nós, ora nós por ela. Foi das primeiras pessoas com que começámos a travar uma amizade e ficámos tristes ao saber que não a veríamos mais, pois também ela planeava ir para Logroño. Mas não. Uma dor estranha na perna, obrigou-a a ficar para trás e nós contentes ficámos por vê-la de novo!
Mas não foi a primeira pessoa do dia que nos fez sorrir. Mais para o fim da tarde, começaram a entrar mais caras conhecidas no albergue. A malta que iniciou connosco o Caminho! A francesa da Normandia, Marinne, com o seu pai. O Marc-Antoinne e a Cristina, do Canadá. Reyn da Bélgica. A nossa família do Caminho voltou a nós. Daqui já não saímos.


27 de Novembro de 2011. Kim e Reyn

Kim é da Coreia do Sul. Veio para a Europa viajar. Quis conhecer Espanha e foi nela que perdeu o seu iPhone. Sem contactos ou forma de planear as suas estadias futuras nos hosteis, investiu os seus limitados fundos num iPad! Agora já pode planear, mas ficou sem dinheiro para os seus planos. Alguém lhe falou do Caminho de Santiago, que além do carácter religioso, é também uma forma muito barata de conhecer o Norte de Espanha. Não estava preparado para tal, mas não foi isso que o impediu. Anda com dores horríveis desde que começou a caminhar porque os únicos sapatos que têm estão longe de estar preparados para vinte cinco/trinta quilómetros por dia. Não têm calças impermeáveis ou de caminhada. Quando chove fica completamente encharcado. Mas aqui está. No albergue de Navarrate. Ficou para trás dos seus amigos, pois não aguentava mais a caminhada de hoje. Sente-se à vontade para cozinhar arroz, mas sem orientação do Joel, deixa queimar a pasta. Nós partilhámos com ele a sopa de feijão que fizemos.
A Reyn é outra história. Enquanto nós iniciamos em Saint Jean Pied du Port, ela já tinha oitocentos quilómetros nas pernas quando lá chegou, vinda de Le Puy! Tem trinta anos e é professora. Como muitos por aqui, largou o que fazia e meteu-se em algo fora do normal e longe do quotidiano. Ainda a estamos a conhecer, mas já simpatizamos com ela. Desde o dia em que a vimos cozinhar castanhas que apanhou durante o dia, ou desde a história que os franceses nos contavam de alguém a carregar dois quilos de amêndoas que apanhou na estrada.


Dueñas - Saint Jean Pied du Port

Mais um pequeno almoço, cheio de frutas acabadas de comprar no mercado. A Maria fez-nos uns bocadillos para a viagem e nos ainda ofereceu mais fruta. Deu-nos um abraço até dali a um mês. Desejou-nos "bon camino" e seguimos de carro com o Albierto, que fez o favor de nos levar a dois quilómetros da entrada de Dueñas, a um restaurante de camionistas.
Sim, íamos tentar a nossa sorte e tentar arranjar uma boleia até França!
Das três vezes que esticámos o dedo na brincadeira tivemos bons resultados, como nos sairíamos numa a sério. Estávamos nervosos e, durante a primeira hora, sentámo-nos a comer pipas e a observar. O parque de estacionamento estava vazio e nas duas horas que se seguiam esperávamos uma enchente de camionistas espanhóis e portugueses. Queríamos os portugueses, que tem a boa fama de dar sempre boleia. Esticar o dedo está proibido em Espanha e ninguém o faz, por isso teríamos de ir um a um a perguntar.


Começam a chegar alguns. Vemos as matrículas, vemos o que têm escrito de lado e mais ou menos por isto temos ideia se podem ajudar-nos ou não. Atacamos já, ou esperamos que venham de comer? Com a barriga cheia estamos mais bem dispostos, por isso apostámos nos que voltavam do restaurante.  E lá andámos nós para trás e para a frente a seguir camionistas e a perguntar se nos podiam levar até França, só até à fronteira. "Queremos fazer o Caminho de Santiago". estávamos com fé que esta nos ia ajudar. Ouvímos de tudo. Mas sempre não no fim. "Só posso levar um passageiro", " Não vou para aí", " É proibido levar gente nas cabinas!","É mais fácil se perguntarem a carros". Já estávamos um bocadinho em baixo e quase a decidir voltar a pé para Dueñas, quando mudámos o alvo e virámo-nos para os que iam de carro. Encontrámos um grupo grande de portugueses que seguia em dois carros e lá fomos nós. Regressavam a Portugal, e os carros iam cheios. O pouco que falámos deu-nos outra vez para estranhar esta língua que é a nossa, mas já pouco sai das nossas bocas nestes últimos tempos. Já estamos tão acostumados ao inglês e ao espanhol que parece que não somos nós quando falamos português.


O parque estava numa roda viva de chega e parte de camiões e a esplanada estava cheia de gente. Cada vez mais encavacados e de mau humor lá nos voltámos uma última vez  para os camionistas. O Alexandre sentia-se mal por ser sempre eu a falar e eu já acreditava tão pouco que íamos conseguir que falava sem grande vontade. A gota de água foi quando um senhor nos disse "porque é que não apanham um autocarro?" com cara de "olha-me para estes aqui à mama!!". Lá enfiámos o rabinho entre as pernas e pusemo-nos a caminho. E vimos o senhor que nos disse para irmos de autocarro a seguir de carro em direcção a Dueñas, a passar mesmo ao nosso lado...


Apanhámos o autocarro em Dueñas para Vallladolid, e em trinta minutos estávamos na fila para comprar os bilhetes para Irún, que partia dali a quinze minutos. Viajar de autocarro para mim é um stress. Não posso olhar para baixo, ler, concentrar-me em nada sem ter o horizonte ao fundo, o calor do aquecimento e o cheiro a estofos misturados põe-me mal disposta e quanto mais tempo passa piora. De maneira que dormimos os dois de aborrecimento, porque tínhamos dormido pouco, e porque não havia muito mais que fazer. Vimos um filme, comemos. Em Burgos tivemos meia hora para esticar as pernas, que aproveitámos para passear até à catedral.Os outros passageiros foram saindo e nós fomos os últimos. Chegámos já era noite cerrada e, quando perguntámos pelo comboio para Hendaye, disseram-nos que já não havia mais. O motorista de outro autocarro ofereceu-nos boleia e cinco minutos depois pousávamosh os pés em França.

Na estação de comboios lemos dois anúncios de albergues, mas os preços eram mais do que o que queríamos pagar num e o outro ficava em Irún. Fomos dar uma volta pela cidade, comemos o que restava nos nossos sacos sentados nas escadas geladas de uma igreja. Descobrimos mais gente a dormir, pelos cantos da cidade. Todos os lugares abrigados estavam ocupados e regressámos à estação dos comboios. Ainda aberta, tinha três peregrinos. Mochilas cheias, paus e conchas dependuradas denunciam qualquer peregrino. Um senhor dormia na zona dos fumadores e o guarda com o cão andava na ronda. Quando nos mudámos para a sala de fumadores, mais sossegada e menos iluminada o guarda do cão entrou a dizer que a estação ia fechar.


Estávamos rabugentos com sono e frio. Saímos dali disparados, dispostos a arranjar um sítio, para ao menos descansar. Começou a chover! Avistámos um bar/café fechado com duas mesas e bancos corridos dos dois lados, em madeira, e debaixo de um alpendre. "É mesmo aqui!" pensámos. Um de cada lado e mal nos começámos a ajeitar, vemos surgir detrás do prédio os três peregrinos que estavam na estação e que nos seguiram. Enfiaram-se ali também. Eram um bocadinho ruidosos e demoram a calar-se das conversas. Mas, finalmente, lá veio o silêncio. Pusemos os sacos de cama e até já estávamos a dormirtar. Deviam ser umas duas das manhã. Às cinco fomos acordados pelos três peregrinos que nos perguntavam se íamos apanhar o comboio das cinco e cinquenta e cinco!!! E assim voltámos à estação, esperámos, apanhámos o comboio, e recostámo-nos nos bancos a tentar descansar mais um bocadinho. Do comboio saímos para um autocarro e às nove da manhã chegámos a Saint Jean Pied de Port. Ufa!

Igual ao que nos lembrávamos, exactamente, um ano depois. Fomos à oficina de peregrinos e fizemos as nossas credenciais, pagámos o nosso primeiro albergue e levámos o nosso primeiro carimbo. Ouvimos os conselhos para o dia seguinte e como o albergue só abria às duas da tarde, fomos às compras para pequeno almoço e visitámos a cidade como deve ser.


Às duas e pouco estávamos a chegar. Já estavam cinco camas ocupadas no nosso dormitório. Não havia hospitaleira/o mas a Janine, uma senhora que morava no piso de cima fazia vezes de... Isso e saber da vida de toda a gente. A hora de jantar foi animada com toda a gente à mesa a conversar a pares ou grupos maiores, cada um com a sua comida. Não havia fogão e por isso cada um improvisou.

O primeiro dia de caminho eram vinte e sete quilómetros sem nada pelo meio. Sábado. Quando chegássemos ao albergue da povoação seguinte também não haveria supermercado. Próximo dia: domingo, o que significa que as lojas estão fechadas. Quem vai p'ra o mar avia-se em terra, e nós tínhamos as mochilas cheias de pão. Pequeno-almoços, almoços e jantares!
Antes de apagarmos as luzes, chegaram mais dois peregrinos. Um espanhol e um belga. Algures havia um brasileiro, noutro dormitório, contaram-nos.


...há um ano atrás: Pamplona e Pamplona - Roncesvalles

Dueñas

O ritmo da bicicleta entranhado no corpo acordou-nos cedo, apenas no primeiro dia. Passámos o resto dos dias entre as duas casas. Para dormir e trabalhar era na casa rural e as refeições com a Maria e o Albierto, na sua casa, mesmo ao lado. A partir da hora do almoço tínhamos a companhia do Pablo e da Cláudia, consoante os horários escolares e actividades extra. A Maria e o Albierto só trabalham da parte da tarde, mas há dias em que não têm braços a medir com tantas aulas e chegam a terminá-las depois das dez e meia da noite.

Do outro lado da sua casa, a casa rural. Na cozinha, sala de estar e quarto todas as nossas coisas espalhadas, sozinhas e agrupadas, penduradas, sobre a mesa, pelo chão, numa tentativa de escolha e arrumações. Temos duas mochilas novas, que comprámos em Huesca, em cima dos sofás à espera que as preparemos para um mês de caminhada.  O ano passado fizemos uma parte do Caminho de Santiago (caminho francês) e ficou-nos um bichinho a crescer aqui dentro.  Das várias hipóteses que tínhamos para regressar a casa, pareceu-nos a melhor, fazer o Caminho mesmo antes de entrar de novo em Portugal e ver se matamos este bicho que nos dá voltas na cabeça. Por isso, procurámos alguém de confiança a quem pudéssemos confiar as bicicletas durante a nossa caminhada.

Enquanto um de nós escrevia, o outro limpava sacos, um dava nome às fotos e o outro fazia compras, um carregava fotos e novos posts e o outro limpava a  tenda. Passámos os dias num lufa lufa para conseguir escrever as dezenas de dias em atraso que o nosso blogue tem, a ver se conseguíamos que quando regressássemos a Dueñas o blogue estivesse a postos para receber as novidades do Caminho. Mas entre a listazorra de emails, referências, internet condicionada a partes da tarde, acabámos por ter de nos decidir a partir ou ficaríamos em Dueñas a molengar para sempre, com tanta computadorice que precisamos pôr em dia.

A  Maria e o Alberto puseram-nos à vontade e foram muito pacientes connosco durante todo o tempo. Já tinham feito uma parte do caminho em família, e têm-na bem fresca na memória , como se tivesse sido a semana passada, partilhavam connosco as suas experiências. Tentámos cozinhar para eles e no último dia deixamos já metade de um salame devorado por todos. Qual de nós o mais guloso!!


O Albierto caminhou connosco durante uma manhã. Fizemos uma hora a andar até ao canal. Atirámos o pau ao ar, e as maçãs cairam  ao chão. Um engana barrigas que começavam a dar horas. Na volta contou-nos com detalhe o quinze de Maio. O dia D. Só aí as informações que nos chegaram por emails, por volta dessa data, de família e amigos, fizeram click nos nossos cérebros. Como nos sentimos no fim de alguns quilómetros? perguntou-nos o Albierto. Bem! Mas não tínhamos mochilas e foram só sete quilómetrozinhos.

Descansámos fisicamente, e ao mesmo tempo cansámo-nos de teclar no portátil. Desse por onde desse, quarta tínhamos de partir para França, com ou sem posts em dia!


...há um ano atrás: Logroño - Estella e Estella - Pamplona