El Camino de Alexandre - Second Week

28 de Outubro de 2011. Santi Rodriguez e a peregrinação. 

Quando o Santi parou junto a nós para descansar, na subida dos Pirenéus, e lhe oferecemos bolachas e água, tomei-o por mais um peregrino. Trazia uma garrafinha de plástico, já vazia, para um dia de 27km. O seu equipamento não me pareceu o mais adequado. Seria apenas mais um... No dia seguinte, avisou-me que se levasse os fones nos ouvidos, não podia ouvir o Caminho.

Em Najera vimo-lo a entrar na cidade. Já não o víamos há alguns dias e ao aparecer, os três esboçámos um sorriso no meio da rua, como amigos de longa data que se reencontram. Parecia cansado e abatido, mas com um brilho nos olhos, não obstante. No albergue, inclinados sobre uma canja e um chá que nos curaria a constipação, conversámos com ele. É camionista e vive em Madrid, mas está desempregado à vinte meses. Não é a primeira que vez caminha até Santiago. É a oitava vez! E depois de tanta experiência no Caminho, já desenvolveu as suas próprias filosofias e pontos de vista sobre a melhor forma de fazer isto... a peregrinação.

Segundo Santi, existem muitos a caminhar até Santiago, mas poucos a peregrinar. Muitos que fazem o caminho por troços, muitos que saltam etapas de autocarro, muito que vem para a festa e a paródia e aproveitam-se dos preços baixos dos albergues. Estes seriam os TuriPeregrinos.
Peregrinação, segundo Santi, é aceitar as dores e as intempéries, comer bem nuns dias e nada noutros, fazer dez amigos num albergue e sorrir ao caminhar três dias sem falar com ninguém. Peregrinar é, além de caminhar até Santiago ininterruptamente, é estar aberto e aceitar aquilo que o Caminho nos mete à frente. Seja de bom, ou mau. Segundo Santi, o Caminho dá-te aquilo que precisas, não o que procuras.


29 de Outubro de 2011. Ás escuras em Redecilla del Camino.

Tínhamos de lá chegar. Foi o nosso primeiro contacto com o Caminho de Santiago, quando por lá passámos de bicicleta. Redecilla del Camino. Queríamos fechar este círculo.

Estafados quando saímos de Grañon e mais ainda quando passámos a barreira dos trinta quilómetros e chegámos ao albergue. A parte da casa que conhecíamos estava deserta, e sem electricidade. A parte que tinha a cozinha.  Antes que escurecesse, fui à única loja da cidade. Um bar cheio de fumo e de homens a beber cerveja. Enfiado num canto, uma estante fazia às vezes de supermercado da vila, com uma parca gama de produtos. Esparguete, com salsichas e molho de tomate.
Na minúscula cozinha, com o calor corporal a sair em vapor com cada expiração, tal era o frio que fazia no albergue, armado com uma lanterna na cabeça, lá se compôs um jantar quente. Durante isto, dois holandeses entraram também na cozinha. Tinhamo-los visto em Roncesvalles. Estes já caminham desde o sul de Paris. Quatro pessoas e roçar de ombros entre tachos ao lume e frigideiras a lavar.

Não é a primeira vez que cozinhamos às escuras, nem sequer a primeira vez que temos frio debaixo de sacos-camas e cobertores. Mas esperávamos mais depois de alimentar memorias acolhedoras deste albergue. Adormecemos desmotivados sem nunca ter visto sequer o hospitaleiro/a do albergue.


30 de Outubro de 2011. Tosantos e os peregrinos crónicos.

Para o Santi, Tosantos é o melhor albergue do Caminho. É governado por hospitaleiros voluntários, que por sua vez também já foram peregrinos. É o requerimento para se ser hospitaleiro num albergue. Tosantos é aquela aldeia com uma igreja enfiada nos penhascos. O ano passado passámos de repente por ela. Hoje vamos aqui dormir.

Estamos a aproveitar o restante sol do dia, no quintal do albergue. A beber café e chá com a Reyn, a Kathrin, Santi, Ricardo e mais dois ou três peregrinos. Connosco, estão os hospitaleiros, também à conversa.
O mais novo, David, é um peregrino crónico de Barcelona. Conta que as primeiras vezes que fez, procurava aquele convivo com as pessoas que nós andamos a experienciar. Mas com o tempo, procurava mais tempo para ele. Mais espaço para pensar e estar em paz. Agora, quando caminha, leva uma tenda. Pepe, é outro antigo peregrino. Vive em Burgos e não cheguei a perceber qual era a sua profissão. Pelas conversas paralelas, é um "anjo" do caminho, como o Santi lhe chama. Anda para trás e para a frente, de carro, entre a sua casa e os albergues em redor de Burgos, ajudando com o que pode (comida), conversando com as diferentes nações que passam junto à sua porta, fazendo-lhes sentir em casa e fazendo amigos no processo.

É o primeiro albergue sem camas. Apenas têm uns colchões do tipo que se encontram nos ginásios. Não somos muitos, mas vamos todos ficar no mesmo quarto. Daqui a pouco todos vão ajudar a preparar o jantar, com os ingredientes que o Pepe trouxe e com as compras resultantes dos donativos do dia anterior. Aqui, agradece-se com donativos, que irão tornar a recepção dos peregrinos de amanhã, mais ou menos acolhedora. Depende da vontade de cada um.
Não sentimos que estamos num empreendimento turístico que trata peregrinos como cifrões. Sentimo-nos antes, em comunidade com todo este mundo paralelo do Caminho de Santiago.


31 de Outubro de 2011. A longa floresta.

Não sei quanto tempo demorámos a atravessar aquela floresta.
O tempo andava esquisito e o facto de saber que seria uma travessia de mais de dez quilómetros de deserto florestal, não ajudava a levantar a moral. A comida também era escassa.
A floresta é cerrada, impossibilitando-nos de ver o horizonte, ou ver para onde nos dirigimos. É como um túnel de verde. Fez-me lembrar algumas estradas de Angola. Estradas de terra batida, amplas, mas com mato denso por todos os lados. Estamos a pé, e não de bicicleta. Dez quilómetros já não são trinta ou quarenta minutos de pedal, sentadinhos num selim. Agora são duas horas de trabalho árduo, com peso às costas e lembranças de dores futuras ao final do dia.

Algures no caminho, encontrámos uma equipa de várias pessoas, a escavar com escovinhas e pincéis, debaixo de uma lona, um imenso buraco. Um monumento à memória do que aqui ocorreu, explicou o cenário. Pelos vistos, esta vasta floresta serviu para esconder algumas das atrocidades de Franco. Mais de 400 pessoas já foram aqui encontradas em valas comuns e mais preparam-se para se juntar aos números da vergonha.

Mais à frente, sentadas num sinal do Caminho, Kathrin e Reyn, compunham as barriguitas com uma pequena bucha enquanto esperavam por nós. Continuamos todos juntos, com a conversa a distrair um pouco a rotina implacável. Mas não durou muito. A sensação opressiva da floresta, também estava a cobrar às nossas amigas.
Só queríamos sair dali o quanto antes...


01 de Novembro de 2011. A longa floresta industrial.

A entrada para a cidade de Burgos faz-se via duas rotas. Uma, mais longa mas em comunhão com a Natureza, seguindo um rio e muito menos utilizada. Outra, a tradicional, via as auto-estradas e a imensa zona industrial da cidade. Com tempos de chuva, já tivemos doses suficientes de chapinhar em lamas. Fomos pelo asfalto.

Com a companhia do Marc-Antoyne e da Cristina que nos "apanharam" em Atapuerca, logo ao início do dia, atravessámos os imensos armazéns, as vias rápidas e passagens elevadas, as vastas cercas de metal, os parques vazios de estacionamento e as parcas árvores que o concelho por ali plantou, para dizer que sim...
Valeu-nos ser Domingo e estar tudo fechado e com pouco ou nenhum movimento. Mas estávamos animados, sempre na conversa e na galhofa.

Foi assim que entrámos nas planícies de Castilla y Leon e numa das regiões mais frias de Espanha. A partir daqui começa um novo território, por nós não conhecido.


02 de Novembro de 2011. Frio, chuva e vento...

Foi o início do nosso Outono.
Tal como na bicicleta, o frio, a chuva e vento, são os piores inimigos do caminhante, e quando os três se combinam, o dia torna-se deveras interessante! Começou a chover logo à saída de Burgos. Enfiámo-nos nas nossas redomas de plástico Quechua e seguimos as já familiares setas amarelas. Ao início, a chuva incomoda mas é o frio que aos poucos se entranha em nós.

Não temos luvas. Umas das mãos vai a segurar o cantil pois é a melhor forma que temos de beber água continuamente. A outra mão, apoia o bastão e leva-nos em frente. Claro que isto implica que as mãos estejam à chuva. Estão sempre molhadas. Depois do almoço, já nem as sentimos de tanto frio que está.
As planícies, também não ajudam. Tudo é imutável durante horas e quando parece que chegámos a um tímido topo ou pequeno vale, descobrimos que temos mais horas do mesmo. Chuva, vento, frio e uma paisagem que não muda.

Nestas condições, até as acções mais simples e corriqueiras implicam um estorvo. Aliviar a bexiga, parar para beber água, apertar os cordões, ou tirar uma maçã da mochila.
Tudo ganha outra dimensão e tudo é uma grande vitória. Tudo se torna num exercício zen. Não pensar. Não lembrar. Não agir. Não sentir. Um passo de cada vez. Um passo de cada vez...
Nunca uma miserável vila foi motivo de tanta felicidade, um colchão tão querido ou um bico de fogão tão adorado.


03 de Novembro de 2011. Só mais 6km...

...não podia acreditar. Mais seis km!! Quando ouvi o que a senhora do albergue disse, só podia ser uma brincadeira. "O próximo albergue é perto. São só mais seis quilómetros...", respondeu a senhora da limpeza às perguntas dos peregrinos.

Mais seis quilómetros de pura tortura! Mas o que é isto do Caminho de Santiago?!?! O dia foi uma repetição do dia anterior. Planícies, frio, chuva e vento. Com o acrescento de uma dor crescente no tornozelo a seguir ao almoço. Cá me quer parecer, que deve ter sido do passo acelerado, e sem alongamentos prévios, a que os pés foram sujeitados durante toda a manhã.
Quando finalmente nos começamos a aproximar da vila objectivo, aquela que a folha A4, em francês e já rasgada, nos dizia ter um albergue aberto todo o ano, e descobri que teria mais seis quilómetros de tortura, fiquei boquiaberto. Como raio é que vou tirar mais um quilómetro que seja, do estado vergonhoso e derrotado do meu corpo?

Não sei como. Nem me apraz recordar como, mas fi-lo. Já era noite quando chegámos à vila seguinte. Jurei para nunca mais. Jurei que iria ter mais cuidado com os meus ricos pés e pernas. Que iria fazer alongamentos ao acordar. Que iria fazer paragens regulares e beber litros e litros de água... Nunca mais um dia destes, por favor. Mas não... 



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