El Camino de Ana - First Week

21 de Outubro - Saint Jean Pied de Port - Roncesvalles - 27 km

Final do dia! Pode não ser tarde ainda nas horas, mas chamo-lhe final do dia, porque já caminhei os vinte e sete quilómetros que me propus fazer hoje. E isso dá por terminado os meus deveres! A primeira etapa, para quem começa de Saint Jean Pied de Port. Não há mais albergues, refúgios, ou aldeias pelo caminho e, sendo assim, todos os peregrinos fazem a mesma etapa, os mesmos quilómetros e terminam o dia no mesmo albergue, em Roncesvalles. O albergue "mudou" as suas instalações e agora temos todas as comodidades que um peregrino pode desejar. Um cozinha industrial, muitas e enormes mesas corridas, lavandaria, sala de convívio, livros que podemos levar e dormitórios com robustos beliches de madeira arrumados em espaços de quatro em quatro. Como o espaço é aberto, durante a noite os trinta peregrinos que ocupavam as camas partilharam tudo o que fosse sons! Falo, claro, dos roncos e seus respectivos roncadores.

Saímos de Saint Jean ainda estava escuro e fomos seguindo os outros, meio perdidos e a pensar como saberiam eles por onde seguir. As nossas mochilas a abarrotar de pão, porque já sabíamos de antemão que nas imediações do albergue de Roncesvalles não haveria supermercado nem mercearia, e no dia seguinte era domingo, o que significava estar tudo fechado!
A paisagem era LINDA! Que mais se pode dizer. Subir os Pirenéus a pé, ficar rodeado de montanhas, verde fresco, ovelhas, e a neblina nos vales que dá impressão que estarmos acima das nuvens. Fomos ultrapassando e sendo ultrapassados por outros. Chegar ao topo foi, de alguma forma, fácil, embriagados pela beleza das vistas. Descer, isso sim, foi o martírio! Os gémeos e os tendões começaram a doer, porque a inclinação era tanta que tínhamos de controlar cada passada para não desatar a rebolar por ali a fora, no meio das folhas secas! Duas bolhazorras, uma em cada calcanhar!


Jean- Paul e Jean-Pierre: Amigos de longa data, deixaram as mulheres em casa, e vieram pela não sei qual vez consecutiva, fazer o Caminho de Santiago. Sempre bem dispostos e muito faladores. Muito agradáveis e divertidos com todos. Pareciam não sofrer das dores que os mais jovens se queixavam.

22 de Outubro - Roncesvalles - Larasoña - 26,3 km

Cheguei, completamente, estourada. Da cintura para baixo tudo doía, uma consciência muito, muito grande das partes do meu corpo. Quando ninguém está a ver, até me agarro às paredes para ajudar a livrar os pés de peso.
Passámos o dia na floresta. Nos livrinhos mil que se fazem do caminho, esta etapa é conhecida como a floresta mágica! Mal vemos a estrada nacional, para felicidade de todos os peregrinos. As cores outonais acariciam-nos por todo o lado. Logo no início do dia, saímos para uma manto de geada que cobria tudo de branco. As árvores ofereceram-nos momentos mágicos, onde se despiam diante de nós a uma rapidez estonteante. De tão bonito que quase nos perdemos por ali!
O caminho seguiu subindo e descendo, atravessando também campos de pasto. Devíamos passar e manter a porta fechada, para que nenhum animal se escapasse. Talvez com uma vaca a correr para nós andássemos mais rápido!!
Seguíamos sempre as setas amarelas, mas às tantas tive a certeza que se me perdesse alguma vez, bastava seguir o rasto de papel higiénico!
No fim do dia éramos quatorze no albergue. Tinha um aspecto menos cuidado, com a cozinha revestida com uma película de gordura rançosa, os beliches meio ferrugentos, que rangiam e os colchões que levantavam sérias questões da periodicidade com que eram limpos. Mesmo assim, tinha tudo o que necessitávamos. Incluindo uma mercearia na vila, coisa que não vinha assinalada na folha que nos entregaram em Saint Jean com os nomes dos albergues, distâncias, e equipamentos e recursos que havia em cada albergue/aldeia. Foi uma noite com muitos sons, camas e ressonar! Estávamos confinados a um quarto cheio de gente, com aquecedores ligados e mesmo que tentemos abrir a janela à socapa, mesmo antes de nos deitarmos há sempre alguém que dá conta e vai fechá-la. Resignámo-nos a acordar a meio da noite com ataques de calor e ar seco e quente. Quero a nossa tenda!


Kathrin: Metade americana, metade alemã! Após anos como uma verdadeira workaólica, decidiu deixar tudo e aproveitar a vida! Trabalhou numa conhecida empresa de preservação do ambiente e por causa disso viajou pelos quatros cantos do mundo! Adora caminhadas e trekking. Exibia o material mais light e técnico que vimos pelo caminho! Era uma conversadora nata e passávamos bons momentos com ela. Tinha sempre algo interessante para falar, fosse com quem fosse. É adepta, a única que conhecemos até agora, de audiobooks, como nós. Falava inglês, alemão, holandês, espanhol!

23 de Outubro - Larasoña - Zariquiegui - 26,1km

Atravessámos Pamplona, nossa conhecida do ano passado. Descansámos na cidade antes de completar os últimos dez quilómetros. Ao fim da tarde, o vento começou a soprar forte. Sabíamos que a maioria tinha planeado ficar-se por Cizur Minor. Fomos ambiciosos e seguimos até à aldeia seguinte, em busca de mais sossego pela noite. As noites calmas, e às vezes solitárias da bicicleta, fazem-nos falta.
À medida que caminhamos e paramos para xixis, comer ou descansar vamos sendo ultrapassados pelos que vêm de trás. às vezes dizemos só !hola! ou "buen camino" e outras demoramo-nos mais. Depende! Alguns que caminham mais rápido, ultrapassam-nos enquanto caminhamos!
 
A hospitaleira, Fátima, era uma simpatia e tinha muito que contar, mas as dores nas pernas pediam-nos para descansar. Entre chegar e sentar-nos devem ter passado, sem exagero, duas horas. A meio do banho escutámos mais vozes. Mais peregrinos, quem seriam? O Jean Paul e o Jean Pierre com os amigos que conheceram o ano passado no caminho, a Annie e o François. Acabámos o dia sentados à mesa a partilhar comida e histórias. Se bem que eles se tenham prologado mais, como se estivessem num dia normal, e não com vinte seis quilómetros nas pernas. A ventania e a chuva instalaram-se e gradualmente foram crescendo em intensidade. Os gémeos doíam-me tanto. Estavam tão duros que me doíam só de tocar, como músculos em pleno ataque de caímbra!


Marc-Antoyne e Cristina: Um casal do Canadá, um com dezoito e o outro com dezanove. Terminaram a secundária, e não queriam ir para a universidade, pelo menos, ainda! Ouviram falar do Caminho nas aulas e decidiram que seria uma boa opção para pensar na vida. Sempre juntos e muito unidos! Tinham orçamento limitado e partilhavam dos nossos hábitos de andar sempre a fazer contas ao preço da comida e albergues!

24 de Outubro - Zariquiegui - Lorca - 25,8 km

Só de olhar para a janela, já nem apetecia sair. Estava um vendaval enorme, e chuva. A Fátima arranjou-nos uns sacos de plásticos gigantes, que vestimos de maneira a cobrir as mochilas. Parecíamos uns espantalhos, uns bonecos tipo Blasted Mechanism!
Subimos a lutar contra o vento até ao Alto do Perdão. A escultura no topo é bonita, mas estava tanto vento e chuva que os ponchos e boinas dos JiPis voaram (tiveram que correr para os apanhar) e desmotivaram-nos a parar ou tirar qualquer foto.
Descemos pelo caminho empedrado atentos para não escorregar.
O almoço foi "debaixo" da famosa Puente de la Reina, já com uns ponchos azulões, acabadinhos de estrear. Uns muito mal empregues dezoito euros, pois assim que os vestimos um deles rasgou-se logo!
Contra o vento todo o dia, era olhar para trás ou para a frente e ver peregrinos inclinados a resistir à ventania.
Chegámos a Lorca e a Kathrin esperava por nós e juntos encontrámos o albergue. Fomos recebidos não por um hospitaleiro, mas pelo Ivo sorridente e mais falador do que alguma vez o tínhamos visto, a espreitar pela janelinha da porta de madeira: "This is perfect!","Everything!","Internet, television, wine!" e pegou na sua caneca para mais um gole e percebemos logo de onde vinha toda aquela alegria e falatório. Instalámo-nos na camarata comum, onde ao todo fazíamos cinco. E de facto, o albergue estava muito bem equipado e tinha boa pinta. A hospitaleira chegou mais tarde e foi também muito simpática. À entrada toda a gente deixou as botas molhadas e cheias de terra.
Os meus pés e tornozelos estavam com manchas vermelhas e inchadas. Espintalgados. O Alexandre tinha menos, mas também tinha.
Chegaram pouco depois a Annie e o François. Comemos uma sopaza de feijão, chouriço e massa e deitámo-nos deixando o Ivo e um outro hóspede espanhol não peregrino numa conversa de malucos. Nem espanhol, nem inglês, mas entendiam-se, lindamente!


25 de Outubro - Lorca - Los Arcos - 31,5 km

Entrámos na região de La Rioja e para celebrar, uma adega disponibilizava numa fonte duas torneiras, uma de água e uma de vinho. Escusado será dizer que todo e qualquer peregrino que por ali passava seguia mais contente, com um copo de tinto, ao ser convidado pela adega a provar das duas torneiras!
Ainda víamos vestígios do País Basco pelas vilas. Muitos pimentos a secar e palavras de ordem grafitadas nas paredes a pedir liberdade para o País Basco!
Trinta quilómetros depois e não podia com uma gata pelo rabo. Estava estoirada! A vermelhidão nos pés e, em especial, no tornozelo estava a alastrar e ardia! As bolhas dos calcanhares lá estavam para ficar e outras mais pequeninas surgiam nos dedos!
Um italiano com uma tendinite recebia massagens de um fisioterapeuta, ao lado dos dormitórios. Assustada fui perguntar ao fisioterapeuta se  por acaso sabia o que seriam aquelas manchas nas pernas. Falta de água! disse ele. Já tínhamos ouvido parte da sua conversa com o italiano e também lhe faltava água. Pelo menos três litros, explicava. Outras recomendações como não transportar mais que dez por cento do nosso peso, fazer paragens a cada oito/dez quilómetros, descansar bem, beber muita água, pôr os pés de molho em água fria, aplicar gelo, aplicavam-se a ele, mas também a todos, em geral. O Alexandre também já vinha com as dores a acentuarem-se no corpinho. Tendões dos calcanhares e manchas nos tornozelos. Assim que ouviu as recomendações do fisioterapeuta, disse que nunca mais se ia queixar de paragens para xixi e que ia beber muita água! A ver vamos!
O albergue era municipal e por isso mais barato que os outros da cidade (excepto quando há albergues de donativo!). Os peregrinos que lá encontrámos nunca os tínhamos visto! Além do italiano da tendinite, o Ricardo, havia um outro italiano, o Francesco. O Joel, das ilhas Maurícias, juntou-se na cozinha com o Kim, da Coreia, e fizeram o jantar para os quatro. Pasta para italianos. Era inevitável não sorrir perante este cenário. Vimos o Francesco olhar e até fazer uns comentários em surdina à forma como o Joel lidava com a pasta, mas não se meteu.
Um espanhol mais velho, entrou na cozinha e também adicionou mais tensão à cena, pondo-me a traduzir, para o Joel, a maneira com a sua mulher (que estava em casa) fazia um esparguete delicioso apenas fritando alho picado em azeite, e aguardando para verificar se o Joel fazia o que ele dizia! Quem já fervia era o Joel, da canseira de gente a dizer-lhe faz antes assim!!!


Ricardo: pouco depois de ter começado, ficou com uma tendinite. Mas nunca parou, ou desistiu. Continuou determinado, parando para a sua cerveja diária, e acompanhava sempre a sua comida italiana com um vinho. Muito simpático e generoso!
Restaurava carros antigos, como profissão e tinha a carta de condução apreendida há quase um ano, por multas de excesso de velocidade! Sonhava em viajar para a Austrália!

26 de Outubro - Los Arcos - Viana - 18,6 km

Depois de planos feitos para parar só em Logroño e fazer quase trinta quilómetros, as dores e as bolhas fizeram-nos voltar à razão e humildar o dia. Estávamos muito cansados e com um andar à pato! Bebemos muita água durante a manhã. Fizemos muitas "xixi's stops", claro!
Acabámos por ficar em Viana e tirar o resto do dia para repousar. Comemos o resto do nosso almoço de tupperware, e subimos ao terceiro andar dos beliches, onde descansámos, dormimos, ouvimos histórias, fizemos contas à vida, sempre com o cantil da água e chá ao lado!
Estava meio a dormir, quando o Alexandre me disse, que estava toda a gente ali! Só quando acordei para irmos fazer a janta é que vi quem era toda a gente! O pessoal com que saímos de Roncesvalles: A Kathrin (dei-lhe um grande abraço), a Reyn, a Cristina e o Marc- Antoinne, a Marinne, o outro casal de franceses, e as duas espanholas do dia antes, que chegaram a Los Arcos, depois de nós!
A Reyn assim que nos viu disse: "Então, estão cansados?", "Quiseram fazer muitos, não foi? Agora não podem mais!"
Na hora de fazer o jantar, mais dois novos peregrinos estavam na cozinha. Dois brasileiros. Um deles era o que esteve connosco no albergue de Saint Jean e que não chegámos a conhecer. O Sérgio, de São Paulo e a Flávia de Santa Catarina em Florianópolis. Muito simpáticos e trouxeram-nos uma quebra na rotina de falar inglês, francês ou espanhol
As dores melhoraram. A cidade é bonita. Tudo estava melhor quando descansávamos e tínhamos connosco pessoas que já começávamos a gostar!


Joel: a primeira pessoa que conheço que é das ilhas Maurícias. Tinha um inglês com uma pronúncia tão gira. E apesar de já ter quarenta, ninguém lhe dava mais de trinta e cinco. Em dias de muitos peregrinos juntos, assumia a liderança e punha o turbo, que o fazia ser dos primeiros a chegar.

27 de Outubro - Viana - Navarrete - 22,4 km

Passámos por Logroño.
Aproveitámos a grande cidade e visitámos o café onde há quase um ano atrás tomámos café com a nossa couchsurfer Mayte e o filho Nahuel, e deixámos-lhe uma mensagem. Comprámos os terceiros ponchos da viagem, na Decathlon, e esta grande paragem na cidade alongo-nos o dia.
Uma chuvada tremenda à hora almoço deixou-nos os pés e as calças ensopados, num instante. Logo a seguir, o sol brilhou até nos deixar em t-shirt. Percorremos o mesmo caminho que tínhamos feito o ano passado, atravessando o enorme parque à entrada de Logroño, e caminhando ao lado da auto-estrada separados por uma rede cheia de cruzes de paus e ervas que os peregrinos vão fazendo.
Chegámos a Navarrete e porque o quarto já estava cheio ficámos sozinhos no andar de cima!
Estava cansada de ter sempre alguém a cheiretar a nossa comida. Sem ter qualquer confiança abriam a nossa panela para espreitar o que preparávamos, diante das nossas caras. Já para não falar dos comentários constantes sobre a nossa divisão de tarefas, ou sobre o facto de cozinharmos todas as noites, para o jantar e para o dia seguinte. Eles vinham de casa, nós de semanas sucessivas de campismo, de uma viagem de bicicleta. Se o albergue tinha fogão espremíamos ao máximo o seu sumo. Fartos de sandes e comida fria andávamos nós.
Já íamos a meio do jantar quando a Reyn chegou, esbaforida e carregada de comida. Pôs-se a cozinhar ao mesmo tempo que nós e jantámos juntos. O Kim juntou-se a nós, e partilhou da nossa sopa, uma vez que conseguiu queimar a pasta que tentou fazer.
Falámos das nossas vidas, do nosso dia, de problemas com cartões multibanco, perder iPhones, e fazer o caminho.
A Reyn foi posta no mesmo quarto que nós. Foi a primeira vez que dormimos os três no mesmo quarto! O sossego.


Reyn: Professora primária, educada numa escola Waldorf, vivia numa quinta e é da Bélgica. Desde o primeiro dia que olhámos para ela e para a sua grande mochila que nos cativou. À medida que o tempo avançava, passámos cada vez mais tempo com ela. Uma verdadeira amiga, com quem partilhámos o Caminho. Deixou o trabalho para fazer o Caminho e decidir o que queria fazer na vida. Falava francês, inglês, holandês, alemão, espanhol, arranhava latim e grego antigo e começou lições de português connosco!

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