El Camino de Ana - Third Week

4 de Novembro - Frómista - Carrión de los Condes - 19,2 km

A dupla da Finlândia tinha um médico "a bordo". Soubemos porque a tosse vinda das profundezas do meu ser não o deixou indiferente e antes de sair, a modos que me aconselhou um tratamento.
Saímos. Frio! Com os ponchos postos sempre ajuda a proteger do vento. Chuva miúda e logo vestimos as calças impermeáveis. Sinto-me um trambolho. A mulher de plástico.

Chegamos a Carrion de los Condes quase ao mesmo tempo que o Juan Manuel. Era a primeira vez que o víamos. Sacou da sua credencial de peregrino do exército e de imediato a sua indumentária ganhou outro sentido aos nossos olhos.
A irmã que nos recebeu mostrou-nos as instalações, e para nosso desconsolo (falo por mim e pela Reyn) o único peregrino que tinha chegado, era o Júlio e ficava no mesmo quarto que nós. E ele roncava, e se roncava!

O Alexandre descansava o seu pé que estava pior e as mulheres foram às compras. A Reyn, voltou antes de mim, que ainda fui à farmácia. Regressei esbaforida e cheia de comida. A Reyn já cozinhava e eu juntei-me a ela. Peguei no tacho que estava a secar no escorredouro e ponho-o ao lume com água. Ora, o que não sabia eu, era que o Júlio e o seu companheiro estavam a planear usá-lo para fazer a sua comida também. Foi o suficiente, para passar toda a noite a ouvi-lo, não a falar para mim, directamente, mas a resmungar para o ar, que eu lhe tinha roubado o tacho (que era do albergue), e depois o bico do fogão e depois a faca. A comida ficou sensaborona, e apanhei uma pilha de nervos, a culpa não é dele, mas ele ajudou.

O Juan Manuel ficou sozinho num quarto, uma vez que assume assim que chega a um albergue, que é roncador e põe-no à parte. Verdade ou não, dorme descansado! E também estava sempre a aconselhar-nos. Façam isto, façam aquilo, assado é melhor. Lá achou que a nossa roupa não estava bem estendida e resolveu mudá-la também! Já me estava a passar com estes espanhóis mais velhos!


5 de Novembro - Carrión de los Condes - Ledigos - 23,4 km

A  manhã começou com uma cena!
Prevenidos para a falta de supermercados a preços decentes para peregrinos (em sentido financeiro, falando), tínhamos uma certa quantidade de comida. O dia seria longo com dezassete quilómetros sem nada pelo meio.
As coisas do pequeno almoço deixámo-las na cozinha na noite anterior (como é hábito de todos os peregrinos, em vez de andarmos a levar e a trazer comida da mochila). Estávamos muito bem a tomar o nosso pequeno-almoço, quando o Júlio se levanta e vai às mesas onde tínhamos deixado mais comida nossa e tira um pão. Senta-se e com os seus companheiros partilham e comem as primeiras fatias. Nós ficámos estupefactos e depois da surpresa passar a Reyn foi-lhe dizer que a comida que estava naquela mesa era nossa. Não tinha problema comerem o pão, mas era só para saberem. O Júlio atirou-se ao ar. Fechou o pão no saco, levantou-se e veio pô-lo na nossa mesa. Connosco a dizer, que não fazia mal, que podia comer o resto. E ele a empurrar o pão. Puxou da carteira e perguntou quanto tinha sido. Pensámos que iria comprá-lo e comê-lo. A Reyn disse um euro. E ele tira dois e estica. "Não, não queremos. Foi só um". Ele muda de moeda, atira-a para cima da mesa e mais o pão e vira costas. A Reyn levanta-se e leva o pão até à mesa deles e põe-no na mesa e diz que é deles. O Júlio sai disparado da cadeira, agarra no pão, atravessa a sala e põe o pão no lixo, enquanto vai resmungando que não precisa do nosso pão para nada. A noite anterior tinha sido má, mas com esta manhã ficámos com a certeza de que queríamos evitar este tipo a todo o custo.
Seja como for, fomos buscar o pão ao lixo e saímos.

A comida era tanta que tivemos de pôr alguma num saco de pano. Andámos a Reyn e eu a transportá-lo pelas duas o dia todo. Tudo o que fosse ingerido, era contabilizado com gosto como peso e espaço a menos.
As dores do Alexandre estavam cada vez piores e começámos a pensar em alternativas. Estabelecemos prazos para as melhoras do pé, ou caso contrário voltamos para as bicicletas. Fico um pouco triste, porque gostava de acabar o caminho.
Andávamos devagar. A estrada era de pequenas pedras brancas e parece não acabar. Pelo meio dos campos, os tractores mudavam a cada passagem mais um pouco de terra de castanho claro, para castanho escuro. Fazia frio, calçámos as luvas.
A  seguir ao almoço seguimos uns atrás dos outros. O Alexandre mais para trás, a Reyn no meio, e eu à frente. De vez em quando parávamos para esperar uns pelos outros, ou para descansar.

Numa dessas paragens, quando cheguei à primeira vila depois dos dezassete quilómetros vazios, olhei e vi que os dois estavam quase a chegar. Segui as setas e sentei-me encostada a um muro ao sol, a escrever. E esperei. Esperei tanto que me cansei e resolvi ir espreitar mais atrás a ver porque se demoravam. Não vi ninguém. Quando voltei a fazer o mesmo caminho reparei que as setas amarelas seguiam também por outro lado.
Ou seja, tinham-me passado à frente e eu não os tinha visto. Um quilómetro ou dois antes de chegar à vila recebo uma mensagem do Alexandre a perguntar onde estava, que ele e a Reyn já tinham chegado!!! E ele sabia que eu não tinha saldo! Cheguei à entrada da vila e vejo a Reyn sem mochila, com ar de quem ia começar a andar no meu sentido. Sorrimos as duas e ela mandou mensagem ao Alexandre que tinha ido à minha procura na vila a seguir. Pensavam que eu tinha seguido! Lá nos encontrámos todos no bar do albergue e explicámos todos os mal entendidos!
É que às vezes os bares adicionam umas setas extra só para que o caminho passe à porta deles e recebam mais uns peregrinos clientes, e nisto andamos nós às voltas com o caminho! O Santi já nos dizia: "Quando fazes o caminho as setas mandam, mas quando o fazes pela nona vez já podes escolher se queres seguir a seta ou não!"

Terminámos a noite com a barriga cheia de comida quentinha, e um dormitório só para os três. Nada de barulho, luzes, roncos, calor, ar demasiado seco e quente. Começávamos a apreciar cada vez mais estas noites tranquilas!


6 de Novembro - Ledigos - Calzadilla de Hermanillos - 26 km

Domingo! Depois de um dia com dezassete quilómetros sem nada, um final de dia sem supermercado, a nossa fartura de comida já começava a precisar de reposição. Mas domingo é dia de lojas fechadas. Claro, que há sempre quem mantenha o negócio aberto e nós peregrinos somos a razão!

Parámos para almoçar num parque, com bancos ao sol. O Alexandre aproveitou para pôr gelo no pé e descansar.
O Santi apanhou-nos e também ele vinha com um ar mais em baixo. Tinha bebido ou comido algo menos bom e tinha o estômago às voltas e andava a água e pão.

O Daniel juntou-se a nós depois de almoço. Teimava em chegar-se de tal forma a nós que quase roçávamos ao andar. Muito desconfortável! Os últimos quilómetros custaram. Seguimos uma estrada alternativa, suposta ser mais bonita, a Via Romana. Era de facto bonita, mas não vimos nada a não ser floresta durante largos quilómetros. Cada um seguiu ao seu ritmo e embora cansados e com frio, o pôr do sol a que assistimos fez-nos sentir agradecidos por ainda estarmos a caminhar.

Chegámos ao albergue e o Daniel aguardava a nossa chegada. Perguntou-nos o que era preciso comprar, se tínhamos comida para ele!!!! Que não tinha nada e que ia comprar vinho!! Acabámos por cozinhar para ele, comemos os quatro juntos, os únicos, no albergue. Guardámos a comida para o almoço do próximo dia e ele veio com o seu novo tupperware perguntar se havia para ele também!!!! Depois, de há dois dias atrás,  ter-se recusado a comer a comida toda, que nós comprámos e  cozinhámos para ele, e ter preferido comer antes a sobremesa, com seis pessoas à mesa que comeriam mais, mas não o fizeram porque não havia, deixei de me sentir bem com ele por perto.


7 de Novembro - Calzadilla de Hermanillos - Reliegos - 24,6 km


O Daniel recusou-se a sair sem nós. Mais uma manhã desconfortável. Num cruzamento que nos tiraria da Via Romana, virámos à esquerda para ir às compras. O Daniel ia mais à frente. Assobiámos, a avisar da mudança de sentido, mas ele seguiu!  A partir dali o caminho seguiu longa e interminável lado a lado com uma linha de plátanos coloridos de Outono.
Passaram mais peregrinos por nós que nunca viramos. Um deles um rapaz novo e alto numa passada larga e apressada que respondeu enquanto andava que era francês e que queria chegar ao fim desta estrada de árvores em fila que não tinha fim!

A Reyn e eu ganhámos avanço ao lento Alexandre, com dores. Chegámos animadas, mas cansadas a Calzadillas. À entrada somos confrontadas com o famoso bar do "Elvis Presley del Caminho", do qual passámos o dia a encontrar recortes de jornal colados estrategicamente em tudo o que era sítio.
Uma mesa comprida com muitos copos e muitas garrafas de vinho e o que parecia ser uma festa acontecia. Cinco ou seis de roda sentados de roda da mesa nuns risos largos e parvos. O dono do bar veio de lá com umas cadeiras e convidou-nos a descansar. A música estava alta, e com ritmos calientes. O francês  apressado também estava por ali sentado.
Ora nisto os da mesa metem conversa connosco. Palavra puxa palavra e um deles diz que se chama Pedro. Eu adivinhei o Silva para seu grande espanto. "Como é que sabes o meu nome", pergunta-me ele, sempre em inglês. "Porque nos dois últimos albergues, temos visto o teu nome e que és de Portugal, e eu também sou portuguesa, respondo eu, em inglês. Ele sorriu o seu sorriso bêbado e continuou aos beijos com a sua nipónica.

O Alexandre chega e senta-se ao nosso lado mas no chão e pergunta que raio fazemos nós ali, se aquilo é o albergue municipal. Explicamos (em inglês), e depois eu muito contente digo em português "Olha sabes quem é este? é o Pedro Silva!". O Pedro Silva vira-se na cadeira e com a boca aberta de espanto (e da bebedeira) pergunta "então és portuguesa e não me disseste nada?".  A conversa continua, com ele a dizer "já está", para estarmos descansados, que estávamos entregues, que estávamos em casa e depois perdeu-se a divagar sobre como os portugueses são tão bons a falar outras línguas. O Alexandre levantou-se e nós três (o francês também) seguimo-lo, mesmo depois da propaganda toda do barman ao novo albergue do amigo. Se o Pedro Silva estava nós não queríamos estar!

O francês era o Benoit, e pôs-se logo a dormir assim que chegou!
A Reyn andou dentro e fora a comprar pão e a pedir azeite. Fiz o jantar, com a luz a ir abaixo duas vezes. O hospitaleiro apareceu para se certificar que as bebedeiras não eram no seu albergue. E aproveitou para desabafar que os peregrinos já não são os mesmos, só vêm para a paródia, que uma moça do bar até teve de ser arrastada e mais historiazinhas de outros tempos.
Comemos cedo e fomos os quatro para a cama cedo. Dormimos sem roncos e com a janela aberta. Uma noite perfeita!


8 de Novembro - Reliegos - Léon - 20 km

O Alexandre ficou e nós seguimos. Decidimos que seria melhor ele apanhar o autocarro de albergue em albergue até o pé ficar melhor.
Parámos no mercado e comprámos fruta. Comemos umas sumarentas e frescas tangerinas e continuámos. Mal conseguíamos conversar com tanto trânsito a passar a poucos metros de nós, na nacional. Acenámos a muitos autocarros a pensar que o Alexandre poderia estar lá dentro. Juntas ou afastadas, a conversar pelos cotovelos ou caladas, chegámos a Léon no meio da confusão dos carros. Um pouco stressante.

Abrimos a porta do albergue olhámos para o cesto e vimos o bastão do Alexandre. Estávamos bem. Por esta altura, também eu já tinha um, que alguém deixou esquecido (?) em Fromista!
Chegámos e já cá estava muita gente, mas agora está a abarrotar!

A Kathrin chegou. A surpresa das surpresas, depois de lhe termos dito adeus em Burgos, conseguiu apanhar-nos!
Uma rapariga da Bélgica, chegou de bicicleta carregada de malas iguais às nossas, a Karine. Jantámos uma grande salada que fiz e dividimos com todos. Comi um pedacinho de queijo de ovelha que a Reyn comprou a pensar em mim. Episódio do senhor bêbado ou maluco que entrou sem ser peregrino, com os homens todos (os mais jovens) a levantarem-se e a passarem um bom bocado para o controlar até vir a polícia.
O Sean que fez cinquenta e dois quilómetros num dia. O Benoit que partilhou o seu vinho connosco e depois o chocolate preto sem leite. A Reyn e eu que queremos a janela aberta e as duas espanholas que a fecham. As horas que são e o pessoal ainda de pé a fazer barulho. Muita gente, quero gritar: "Apaguem a luz!", "Façam pouco barulho", "Abram a janela para respirarmos!"

O Dani chegou e despiu-se, cuecas e tudo, aqui! O Kim e a outra rapariga que já cá estavam...As duas espanholas, que rezo para que adormeçam rápido para abrir a janela.  Apagaram a luz :)


9 de Novembro - Léon - Villadango del Paramo - 25,8 Km

Um novo grupo que sai todo junto. A Kathrin, a Reyn, a Karine, e nós. O Alexandre ficou com as K, que ficam mais um dia por Léon a descansar, para ir à biblioteca e depois apanhar o autocarro. A Karine doi-lhe o joelho.

A Reyn e eu descobrimos cada vez mais coisas em comum e passamos o dia a cantar, fazer ritmos com os paus, falar de crianças, conversar pelos cotovelos...
Conversamos tanto que quando damos por nós seguimos a estrada errada e o nome da aldeia não vem nem na folha nem no livrinho da Reyn. Um outro Kim, também da Coreia, alcança-nos e sacando do seu Ipad confirma as nossas suspeitas de termos seguido pela estrada alternativa, que também era correcta, mas não ia dar ao albergue/cidade onde o Alexandre nos esperava. Sem pânicos analisámos a situação e avançámos aldeia dentro a falar alto, dizer olá a ver se encontrávamos alguém a quem perguntar. Ninguém! Começámos a tocar às campainhas e lá veio uma senhora de avental abrir a porta e encaminhar-nos. Alívio, não era preciso voltar para trás! Na aldeia seguinte voltámos a perguntar (tivemos que tocar à campainha) a um senhor que nos acompanhou durante uns metros enquanto repetia as instruções. Fizemos o que disse e chegámos a San Miguel eufóricas. Tínhamos conseguido.
Almoçámos sentadas na paragem do autocarro, protegidas da chuva e metemos conversa com uma senhora de tamancas de madeira. Madreñas. Boas para em dias de chuva manter os pé quentes e secos.

Chegámos animadas à vila e ao albergue. Estava demasiado sossegado, mas vimos o bastão do Alexandre e descansámos. O Kim chegou com a outra rapariga da Coreia. A hospitaleira veio só carimbar-nos as credenciais e foi-se logo embora. Ficámos os cinco sozinhos. Comemos e fomos descansar. Estava frio, não havia aquecimento, mas tínhamos muitos cobertores! Tinha sido um belo dia!


10 de Novembro - Villadango del Paramo - Astorga - 27,1 km

Fui a última a sair, fiquei a escrever um email.
Depois pus-me a acelerar a ver se apanhava alguém. A estrada nacional estava mesmo ali ao lado e uma neblina brutal não deixava ver mais que trinta metros! Passei a manhã com a impressão de que aquele pontinho lá ao fundo era esta ou aquela pessoa, mas sem ver ninguém.

Apanhei a Reyn, que só olhou para trás e soube que era eu porque me ouviu batucar com o pau na grade de qualquer coisa.
Tomámos a estrada um quilómetro mais longa, mas que deixava a nacional e se embrenhava na Natureza, desta vez de propósito! Pelo meio de uma grande quinta, com muita lama e cheiro a estrume até estarmos no meio do nada.
Almoçámos sobre os ponchos com muita conversa! Tanta que olhámos para o relógio e tínhamos ficado duas horas ali paradas.
Mas depois de almoço estávamos com mais energia e chegámos ao topo da colina rápido. O Kim e a outra rapariga do nome que me esqueço descansavam com bolinhos. Dali dava para ver a cidade e tudo em redor. Mais um vez, achamos que ter a meta à vista dá a impressão se estar quase lá e tudo parece mais fácil e rápido.

O albergue estava cheio e calhámos no mesmo quarto que o Júlio!!! Ele assim que nos viu, arrumou malas e foi pedir para o porem noutro quarto. Quatro europeus e cinco coreanos, neste quarto. O Sean que reencontrámos com surpresa e mais outro que faz tantos quilómetros como ele, o Peter, da Suécia.

Os coreanos fecharam a janela, baixaram os estores, fecharam a porta e apagaram a luz. Que fechado!
Ao menos ninguém ressonou!


1 comentário:

Nuno Cândido Vieira disse...

Será talvez a primeira vez que não vos invejo nestes relatos, não pelas dificuldades mas, pelos constrangimentos impostos por terceiros. O tipo (e a cena) do pão... Tendo em conta o contexto filosófico de uma viagem desta natureza, é no mínimo irónico.