El Camino de Alexandre - Fourth Week

11 de Novembro de 2011 - ...a sensação de turista...

Para colmatar o desanimo por estar a andar de autocarro, hoje tive que viajar mais do que o costume. Não existem carreiras que permitam continuar com a rotina dos últimos dias. Ir de transporte até ao próximo albergue e esperar pela Ana e pela Reyn. A seguir a Astorga, o Caminho sobe até à sua altura máxima. mil e quinhentos metros de altitude e a emblemática Cruz de Hierro no topo. Um marco para qualquer peregrino que se preze. Mas não para mim...

Despeço-me delas durante os próximos dois dias. Digo adeus à malta que caminha ao nosso ritmo e preparo-me para rever o grupo do dia seguinte.
Uma viagem de uma hora pelas montanhas, pela transição da planície/serra, pela mudança de arquitetura. Ainda não é a Galiza, mas já se respira e ouve o galego. Eis a cidade de Ponferrada.
Sou o primeiro a chegar ao albergue e após a dormência e o descanso, as caras familiares começam a chegar. Joel, Ricardo, Sebastian, Flores e Danielle, os espanhóis seniores... Todos de sorriso estampado na cara e com o invejado brilho nos olhos. Até o Shaun que saiu do mesmo albergue que eu e caminhou os cinquenta e cinco quilómetros que separavam as duas cidades. Subiu e desceu a montanha num só dia!

Chegam todos mais ou menos em simultâneo e todos me dizem que teria sido horrível para mim ter feito este trajeto com uma tendinite mal curada. Pelo menos, reforçam a noção de que fiz uma boa escolha. Não me atrevo a explorar muito a cidade. Tenho um dia inteiro para queimar amanhã, sem nada para fazer e sem poder entrar no albergue até às três da tarde.
Depois de tantos dias a viajar de autocarro, a ver o mundo atrás da janela, a ouvir o Caminho pelas histórias de quem o anda a viver, começo a sentir-me à parte. Distante e fora desta realidade que é o Caminho de Santiago.
Estou presente, mas não a participar. Será isto a sensação de ser um turista?


12 de Novembro de 2011 - Passar o tempo.

Posto na rua às oito da manhã, obriguei-me a fazer o pouco que encontrei para fazer, devagar, de modo a render a ocupação do tempo.

Fui ao supermercado e tomei o pequeno-almoço no jardim, enquanto via os peregrinos a seguir caminho. Ainda disse adeus a alguns.
Deambulei pelas ruas sem movimento e desertas. Em Espanha, o comércio ganha vida depois das dez, o que me permitiu observar o lado tranquilo da cidade. Exceto no mercado. Este deve ser igual em todos os países. Ainda mais madrugador do que eu, já o comércio de rua, de mesas com roupas e couves se estendia como as pernas da aranha em torno do edifício do mercado de Ponferrada. Aqui aproveitei para me abastecer de legumes para o almoço.

Fui à biblioteca. Mas antes de me perder na Internet, sentei-me na sala de revistas e jornais e pus as noticias em dia, ao lado dos reformados e desalojados que aqui se servem da sua dose diária de leitura informativa gratuita.
Quando fechou, à uma hora, comecei a caminhar na direção do albergue, passando pelo centro histórico e visitando uma exposição de fotografia, gratuita, num dos museus de Ponferrada.
Com o sol a aquecer o pátio do albergue, sentei-me numa das mesas exteriores a comer e escrever o que havia para escrever num pequeno bloco de notas.

O albergue abriu, e aos poucos as pessoas começaram a entrar. A Ana e a Reyn foram as últimas. Vieram devagar, aproveitaram o bom tempo para umas sonecas pós almoço e com as barrigas e os tupperwares cheios de medronhos. Ao chegarem comecei a sentir que tinha conseguido superar o calvário dos últimos dias. As dores físicas e a realidade de não poder caminhar. Superei a "solidão" ilusória de quem anda no Caminho sem caminhar. Aguentei os longas horas de tédio, deitado na cama a olhar para o teto enquanto a tendinite descansava. Aguentei as perguntas dos peregrinos que me viam e lançavam olhares de "anda a fazer batota".
Consegui. O pé já não me dói. Amanhã eu e o bastão, voltámos à carga!


13 de Novembro de 2011 - Arroz coreano.

Não era só o Kim e a sua amiga. Também a coreana que conhecemos em Tosantos e que andava a curar dores de autocarro, caminharam ao nosso ritmo, acabando por irmos todos parar ao mesmo albergue.
Com uma construção e mobílias "acolhedoras", nós os três, e os três coreanos, instalámo-nos no mesmo quarto, que também servia de cozinha para o albergue.

De toda a gente que conhecemos até agora no Caminho, são com os coreanos que temos mais dificuldade em comunicar. O inglês deles saia a muito custo e as diferenças culturais, imagino, são mais fortes do que entre a malta da nossa Europa.
Já presenciáramos em primeira mão a pouca habilidade do Kim em cozinhar pasta, no passado. Mas durante os últimos dias, andamos a aprender que o Kim pode ser muita coisa, mas mau cozinheiro, não é uma delas. Foi o elo de ligação para o nosso contacto com o mundo oriental. O arroz.

Podem comprar o mesmo arroz que nós, no mesmo supermercado, mas o resultado final é bastante diferente, assim como as diversas utilidades que dele retiram. Chá de arroz. Papas de arroz ao pequeno-almoço. Bolas de arroz para comer durante o dia. Arroz cozido. Arroz salteado. Um sem fim de aplicações e sempre elaboradas com grande simplicidade e descontração. Nada de medidas e tempos de cozedura. O arroz sai sempre solto, sempre com um ar brilhante e sempre com um sabor diferente. Sem usar condimentos. É arroz ao vapor, sem apetrechos tecnológicos ou livros da Bimbi. Apenas com um tacho.

De todos, é o Kim o mais perito. Armado com as antigas receitas da avó e mãe, encanta as suas compatriotas e novos amigos ocidentais. Ensinou-nos os princípios básicos da sua arte e a partir de agora, ganhámos mais do que uma nova forma de cozinhar arroz. Ganhámos uma ligação com eles e uma memória sempre que o grão branco estiver dentro do pote!

Kim... O peregrino do ano!


14 de Novembro de 2011 - ...MP3 blues...

Como raios é que me meti nesta?
Já passa das oito da noite e a escuridão hà muito que dominou a paisagem. Estou a caminhar a passo rápido à chuva, pondo em risco a mal curada tendinite com o conta-quilómetros pernil a aproximar-se dos quarenta quilómetros. Começo a ficar cansado e como se não bastasse, a floresta que atravesso às escuras ganhou outro ambiente, com umas lanternas a mexerem-se uns metros mais atrás de mim. Como se alguém andasse à cata de peregrinos loucos extraviados! Vou começar com o passo de marcha e arriscar pôr um final permanente ao Caminho.
Como raios é que meti nesta?

É simples. Hoje entrámos na Galiza. Foi dia de chuva, por isso o poncho andou sempre cá fora a estorvar os movimentos. Também foi dia de serra. É assim a Galiza. Aos altos e baixos. Na primeira vila da região, O Cebreiro, paramos à porta da única casa com uma estante de enlatados. Eu sentei-me num dos troncos que estavam à porta, e desliguei o MP3. Dez minutos depois, saímos carregados de pão, para os últimos seis quilómetros do dia, até ao próximo albergue.

Ultrapassada a floresta, ao descermos uma encosta, reparei que os fones presos aos ouvidos, bambaleavam soltos na outra extremidade, fora do bolso!
Adeus MP3! Adeus, depois de tanta companhia que me deste este ano. Muito me ajudaste em dias difíceis e longos, de muita chuva, muito frio, muita montanha, muito trânsito ou muito tudo ao mesmo tempo!
Em poucos segundos escolhi entre as três hipóteses. Desistia do meu companheiro. Voltava para trás quatro quilómetros, de mochila às costas e encontrava o pequeno objeto azul que sabia só poder estar entre as ervas do tronco lá atrás. Caminhava até ao albergue, pousava a mochila e voltava atrás para o ir buscar.

Escolhi a última. Acelerei o passo numa corrida perdida contra o pôr-do-sol, fiz o check-in, atirei a mochila para um beliche e sai porta fora, de volta ao Caminho serpenteante e aos altos da serra galega, pesquisando o chão que pisava em busca de sinais azuis de plástico.
Quando finalmente entrei na vila, de novo, liguei a pálida lanterna de testa, joguei a mão à erva, seguro de tocar no meu amigo e nada! Não estava ali! Foi em vão... Mas não dormiria descansado sem pelo menos ter tentado.

Quando entrei no albergue, com os pés feitos em oito, e triste pela falta de ajuda auditiva nos próximos dias, a explicação das luzes. Dois espanhóis e uma rapariga eslovena, que andam a fazer o caminho, saindo muito tarde e com grandes paragens durante o dia, o que os obriga a caminhar de vez em quando já de noite.


15 de Novembro de 2011 - Galiza e o que a Kathrin trouxe.

Densa. É a palavra que me ocorre ao observar a vegetação que atravessámos na Galiza. Longos quilómetros de floresta densa, que veste as serras e tudo em seu redor. Faz-me lembrar os Pirenéus franceses, mas mais selvagens.

O Caminho anda coberto de folhas outonais, como se um tapete vermelho fosse. As pedras , seixos e troncos caídos tornam necessário a nossa atenção sempre presente. Nada de caminhar com a cabeça nas nuvens. Isto é um exercício de corpo inteiro!
De vez em quando, por entre a folhagem, conseguimos ver a paisagem. Mais e mais colinas, divididas por cercas e sebes, florestas e riachos que se escondem por entre as nuvens e a neblina, que brilham com as espreitadelas do fugaz sol. É indescritível a beleza da Galiza. Será assim o Norte de Portugal?

Entrámos no Mosteiro de Samos, seguindo uma via alternativa do Caminho. A menos usada esperamos.
Samos é o mosteiro e o mosteiro é Samos. Gigante, adequa-se que nem uma luva para descrever o edifício que também serve de albergue. Estávamos apenas quatro no albergue. A Reyn e a Ana tomavam banho, um novo coreano maldizia a sua pouca sorte com feridas de carne viva nos entre os dedos. Demasiado peso na mochila, talvez... Eu lia o jornal, enquanto repunha a circulação nos dedos dos pés e afastava o frio, quando ouço a porta a abrir atrás de mim. Kathrin!

Mais uma vez, conseguiu apanhar-nos, mesmo fazendo dias de descanso. Mais uma vez, é sempre a mim que me vê primeiro e é sempre com um sorriso que é recebida.
Como se fosse um sem fim de boas vindas a um familiar distante de quem nos despedimos um sem fim de vezes.
Mais para lhe dizer que perdi o meu companheiro auditivo, do que ter alguma esperança de boas noticias, pergunto-lhe se não viu um MP3 azul pelo caminho.
Passou uma noite ao relento, à chuva e na lama, mas de algum modo, o Caminho devolveu-me o conforto auditivo. Bastou um sorriso da parte da Kathrin, para adivinhar a resposta.


16 de Novembro de 2011 - Quem são estas pessoas?!?

Desde que entrámos na Galiza que algo de estranho se passa.
Os albergues passaram a ter um ar arranjado, limpo e organizado. Parecem um hospital. As fronhas higiénicas e descartáveis. A falta de mobília, decoração e o excesso de uniformidade de albergue para albergue. Tudo muito sanitário... De repente os albergues já não são o que eram.
As salas de convívio são reduzidas ou inexistentes. Os hospitaleiros são empregados e tornam tudo muito oficial e regularizado. Algo se passa desde que entramos na Galiza. Os albergues já não têm pulgas, já não são demasiado frios ou demasiado quentes, já não têm cozinhas alternativas ou excessos de comida deixada pela passagem de mil e um peregrinos. Já não têm quartos separados com oito beliches em cada um, ou uma hospitaleira do México que veio ajudar durante duas semanas. Já não têm tachos ou panelas...

Durante os dias nós os três mantemo-nos unidos, mesmo que continuemos a caminhar separados durante grande parte do tempo. Quando nos juntamos para as refeições ou para as compras, vemos passar o Kim e companhia, E mais outro ou outra que já se assomou em algum albergue anterior. Santi, Dani, Kathrin...Já fazem parte da família. Mas há mais. De repente muitas mais pessoas começaram a dar sinal de vida. De repente é normal entrarmos num albergue e vermos um grupo de cinco ou sete espanhóis a ouvir musica do telemóvel, vestidos à bttistas e armados em motociclistas do pedal. Já é normal entrar numa camarata mais militar do que familiar e dormir não com mais dois ou três, mas com mais dez ou vinte. Já é normal não dizer olá quando nos cruzamos, ou partilhar as refeições à mesa.

Todas estas caras novas começam o Caminho a partir de alguma terra de Galiza. O Santi já nos tinha avisado desta peculiaridade. Desta estranha Galiza, entre tanta beleza natural. É esquisito. Parece que não nos conseguimos ligar com esta malta nova.
Quatro semanas de quilómetros nas pernas e toda uma série de sofrimentos e alegrias que nos uniu a todos e o que nos separa do resto.


17 de Novembro de 2011 - O passar dos dias.

É como se já caminhássemos durante toda uma vida. Hoje, apenas foi mais um dia entre muitos.
A música despertadora do telemóvel da Reyn, já nos dá uma sensação de familiaridade e casa, quando acordamos a não sabemos onde estamos. Ouvimos a música e voltamo-nos para o lado durante mais quinze minutos a pensar: "...estou em casa...".
O chá matinal, com pão, marmelada, manteiga e alguma peça de fruta, já são um dos pequenos prazeres do dia, antes de começar a trabalhar. E trabalhar, com as pernas e pés, é o que fazemos durante o dia.

Está neblina e frio de manhã. Veste o poncho. Começamos a subir e descer colinas. Despe o poncho.
Bebe água, faz xixi. Bebe água, faz xixi. Bebe água, faz xixi...
Quando caminho com a Ana, vamos de mão dada. Encontramos a Reyn, começa a galhofa. Passamos pelo Kim, conversamos um pouco sobre Portugal e Coreia. A Reyn e a Ana ficam para trás para mais água e xixi, caminho sozinho. Sem parar, tiro uma maçã da mochila, ou a sandes de marmelada que preparei durante o pequeno-almoço. É assim durante o dia.

Todo o dia a pisar folhas secas. A seguir, já sem pensar, as setas amarelas. Que fácil se torna a vida, quando só temos que seguir setas e sinais.
Quando só temos que caminhar e deixar entrar tudo o que os olhos veem.
Quando já nos sentimos confortáveis em caminhar ao frio e à chuva, com fome ou com sede.
Quando estamos em casa, ao descansar num jardim ou numa pedra debaixo de uma árvore.
Quando pisamos as folhas, as castanhas e os raminhos.
Quando dizemos "bom dia" aos agricultores de cada aldeia que atravessámos.

Mas nada dura, ou pode durar, para sempre. Nada. Nenhum de nós fala muito nisso, mas todos já estão bem conscientes de que o fim se aproxima. Quando olhámos para a folha A4 que nos serviu de guia durante um mês e já apenas resta uma centena de quilómetros. Quatro ou cinco dias...
Mais uns dias e teremos que dizer adeus, a esta vida que assenta a cada um que nem uma luva, e à nossa família do Caminho de Santiago.


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