El Camino de Ana - Last days

18 de Novembro - Palas del Rei - Arzua - 29,7 km

Se tudo corresse bem estaríamos em Santiago em três dias! Desde a entrada na Galiza que os marcos junto ao Caminho assinalavam os quilómetros que faltavam até Santiago, de meio em meio quilómetro. Quanto mais próximos estávamos mais surreal parecia. Saíamos pela manhã cheios de energia, e a cabeça a ecoar "está quase!", "falta pouco","só mais três dias!".
Fiz um terço do Caminho sozinha. De certa forma, já nem havia a sensação de estarmos sozinhos. Era verdade, que sem companhia nos tornamos mais contemplativos e atentos ao que está à nossa volta, mas não chego a ter o sentimento de solidão. Sei que atrás de mim ou à frente vou encontrar sempre alguém.

À hora de almoço perdemo-nos nas compras. Havia supermercados grandes e como tal aproveitámos e enchemo-nos de fruta e provisões para evitar o que já prevíamos e ouvíamos de Santiago, a grande cidade dos peregrinos. Por isso mesmo, os preços estão adequados ao chupismo dos nossos últimos tostões, na esperança que a alegria de chegada abra os cordões à bolsa do peregrino que está tão feliz com a sua realização, que turva o seu bom senso. E se passou trinta dias a poupar,  sendo um peregrino não só por caminhar, ali esbanja como se não houvesse amanhã. Nada mais interessa, já cheguei, já não preciso de contar tudo o que gasto..

Tudo para dizer que a nossa paragem para almoço durou, nada mais, nada menos, que duas horas e meia. Com compras e almoço, propriamente dito. Sentámo-nos no alpendre do albergue da cidade, por ser o sítio mais sossegado que encontrámos e pouco depois, mais uma peregrina nova veio juntar-se a nós. Era siciliana, a sua fisionomia denunciava de imediato as suas origens. Era a segunda vez que fazia o Caminho, tendo sido a primeira feita a partir da Suiça. Desta vez, tomava a Via da Prata, que começa em Sevilha. Há menos aglomerado de pessoas, havendo mesmo hipóteses de caminhar-se sozinho até o Camino se cruzar com o Caminho Francês. A gentileza das pessoas neste Caminho é maior, porque há menos gente a fazê-lo e as distâncias entre albergues é mais longa. As refeições costumam ser donativo, e às vezes até te oferecem comida para o Caminho.
Também ela tinha chinches. Se nós passámos horas a lavar e secar e dá-nos para a paranóia, já ela levava a coisa na descontracção. Tinha, sabia que tinha, e vivia bem assim, em plena comunhão com a bicharada.

 Em Àrzua, o albergue era a excepção ao modelito usado para os restantes albergues da associação. Víamos algumas semelhanças, mas sentíamo-nos mais confortáveis aqui. Convém dizer que desde que entrámos na Galiza deixámo-nos de confraternizar com hospitaleiros, porque já não os havia. Chegávamos e íamos à nossa vida, ninguém queria saber de nós.


Santi: o sábio peregrino. Originário de Madrid, o seu ganha pão eram os camiões. Apesar de estar há mais de um ano no desemprego. Fazia o Caminho pela nona vez. Tinha sempre conversas cheias da mística do Caminho. Graças a ele, quando algo nos acontecia, atribuiamo-lo como algo que o Caminho nos trouxe, como parte fundamental da peregrinação. Sempre de bem com a vida e com os outros.

Annie e François: um casal francês que fez apenas uma parte do Caminho Francês, por não ter mais tempo de férias. Muito tranquilos, seguiam e faziam os mesmo quilómetros que nós, sem os ouvirmos a queixar de dores ou cansaço. Gostavam e conheciam Portugal, dizendo que de todos os países que já visitaram (muitos), Portugal era o país onde podiam comer à vontade e não sentir a tripa às voltas.

19 de Novembro - Arzua - Monte do Gozo - 34,6 km

Um dia esplêndido de sol!
No fim do dia estava estourada com dores aqui, ali e acolá, mas contente, porque praticamente, já estávamos em Santiago.
Com os cálculos feitos uma dezena de vezes, para combinar chegada ao domingo, preços, e quilómetros que nos deixem andar ao fim do dia, pelo menos até à casa de banho, a paragem no Monte do Gozo era quase obrigatória. Se bem que nos desagradava mais que tudo, só pelo facto de saber que tem espaço para dormirem quatrocentos peregrinos.
Nos últimos cinco quilómetros, a Reyn e eu, já deixadas há muito para trás pelo Alexandre, na brincadeira acelerámos o passo ao vermos que duas senhoras mais velhas, no seu suposto circuito de manutenção nos estavam a ultrapassar, frescas que nem alfaces e na converseta. Metemos o turbo, mais uma canção e as senhoras metem conversa connosco. Em segredo sabemos que foram elas que nos encheram de energia para fazer os últimos quilómetros, pois queríamos aguentar o passo umas das outras, de maneira que íamos todas aceleradas. "Vocês têm um bom ritmo! comentavam elas.
Fomos entretidas na conversa as quatro e nem ligámos às dores. O sol já se tinha posto, e o frio instalou-se. Mal olhámos para o grande monumento que simboliza o Monte do Gozo. Ergueram-no ali, aquando das primeiras jornadas das juventude, com a visita do Papa João Paulo II. Dali os peregrinos vêem pela primeira vez a catedral de Santiago ao fundo, daí o nome Monte do Gozo.

O "hospitaleiro" à recepção, era mesmo simpático. Pôs-nos sozinhos num quarto de oito e fazia uma festa a cada pessoa que entrava. No dia antes da grande chegada, soube mesmo bem.


Ivo: um checoslovaco tímido. Ou assim a dificuldade na comunicação nos fazia crer. Era muito generoso e tinha um ar sempre calmo e sorridente. Mal o víamos comer. Passava horas a escrever no seu diário, completando-o com recibos e outros bilhetes e papéis. Usava uma mochilona, toda torta nas costas, e aparecia e desaparecia sem darmos por ele.

Júan Manuel: tinha um fetiche por pés ou bolhas! Digo eu, depois de vê-lo numa constante caça à bolha. "Como estan tus pies?" "Tienes ampollas?"Sempre! Perguntava sempre isto a quem lhe desse um dedito de conversa. Equipado com a sua mala de primeiros socorros, dos seus tempos gloriosos do exército, sentava-se diante do peregrino das bolhas com uma seringa a retirar o líquido e depois a encher com betadine! Ughhhh...

Julio: o conflituoso. Emparelhava, convenientemente, com quem soubesse cozinhar, sendo seu seguidor até o Caminho assim o permitir! Falava muito. Uma voz grossa, a mais grave de todas as que ouvi pelos albergues. Usava um buff vermelho na cabeça. A sua conversa além de ser o julgamento do que via à sua volta, seguia muitas vezes para a comida e de como comia bem (nunca havia comido uma hamburguesa, por exemplo) e de como a sua mulher cozinhava que era uma beleza.

20 de Novembro -Monte do Gozo - Santiago - 4,5 km

Comichão durante a noite, mas manhã demasiado ocupada num turbilhão de emoções que mal prestei atenção às minhas borbulhinhas.

Os últimos quatro quilómetros, fizemo-los sozinhos. Sem ser preciso combinar.
À medida que me aproximava ia pensando como seria o meu dia seguinte. Que todos os dias me queixava de dores, mas todos os dias saboreava o prazer de caminhar, como a única certeza na minha vida.
E as pessoas??! As chegadas gloriosas aos albergues, com sorrisos de recepção que valiam todas as bolhas todas que tínhamos.

A vida da cidade era ainda tranquila. Mesmo assim, aqui ou ali um galego parava a sua rotina e ficava a olhar-nos avançar em direcção à catedral. Sorriam, um sorriso calmo.

Mesmo ao virar da esquina, para entrar na praça, o coração a bater, e eis que uma lágrima escorrega bochecha abaixo. Que era aquilo que estava a sentir.. queria chorar e deixar sair tudo... Num relance reparei que me fotografavam e a expressão endureceu. Um invasão do meu espaço, do que tinha direito a sentir, roubado pelos muitos turistas que por ali cirandavam e que tentavam capturar com fotos o que era ser peregrino e chegar a Santiago.

A praça ampla tinha alguma gente, mas não queria olhar para ninguém, com medo de que voltassem a roubar-me o que sentia. Andei meio perdida sem saber onde ir. Até que avistei, primeiro um e depois outro e mais outro peregrinos. Gente com quem partilhei dias, conversas, comida... Lá me indicaram os últimos metros para carimbar pela última vez a minha credencial e obter a tão desejada Compostela e o diploma.

O Alexandre encontrou-me, encontrámos a Reyn e fomos juntos pela última vez. Sem conseguir gerir muito bem o que acontecia. À saída da oficina do peregrino a Kathrin chegou e mais uma vez surpreendeu-nos, sem nos surpreender, por caminhar maiores distâncias para compensar os dias em que descansava.

Dali fomos para a missa. Ao meio dia, os oito acólitos penduraram o bota fumeiro, e puxaram até o fazer balouçar pelas alas da catedral a uma velocidade assustadora. Conseguimos! Olhava em meu redor, e via caras conhecidas espalhadas pela assembleia. Estávamos todos ali. Uma sensação de paz e uma ternura por todos os peregrinos invadiu-me. No meio dos muitos turistas e dos habituais cristãos senti-nos especiais.

Visitámos a cidade, e pelo fim da tarde, informados por outros peregrinos mais experientes, também nós fomos pôr-nos na fila para termos direito a uma refeição. Podíamos usufrui-las durante os três dias seguintes a contar com o dia da chegada (pequenos-almoços, almoços e jantares), no parador de Santiago. Bastava sermos uns dos dez primeiros a chegar, dez minutos antes da refeição, com o diploma a comprovar. Claro que com tanta gente, havia que gerir, quem já tinha comido, para dar lugar a quem nunca comeu. Ainda assim, os batidos no Caminho, sabiam contornar bem o sistema e acabavam por "tirar" a vez a outros.

Fomos passar tempo para a estação de autocarros. Estávamos como que perdidos sem o Caminho. Sem saber onde dormir, o que fazer e a evitar falar sobre a separação que sabíamos ter de acontecer.
Lá pelas dez a Reyn, que tinha de esperar por uma carta, tal como no dia em que a conhecemos, saiu porta fora, sem dar tempo para mais do que um abraço fugido. Ficámos os dois a olhar para a porta de lágrimas nos olhos a ver a Reyn a esconder as suas...
Se o Caminho me deu chinches porque precisava, ou bolhas, não sei, é possível que sim. Vistas lindíssimas, tempo para pensar, maior empatia com os espanhóis,.... talvez tenha dado! Bastava a Reyn!

Acabámos por voltar ao Monte do Gozo, já o segurança substituía o recepcionista e todos dormiam. Para descansar na cama o grande dia que tínhamos vivido.

Kim (Honggoo): o peregrino do ano! Assim lhe começámos a chamar. Tinha vindo para Espanha viajar e conhecer o país, mas ao perder o seu iPhone, entrou em pânico, sem saber por onde se guiar e decidiu investir o seu dinheiro na compra de um iPad, restando-lhe apenas suficiente para uma humildes férias por Espanha. E foi assim que se fez ao Caminho. Apesar de ter queimado esparguete, era o  meu cozinheiro de arroz preferido.

Jooyeon Jo: estava sempre a sorrir. Queria viajar até oPorto depois do Caminho, por isso estava sempre a pedir informações sobre Portugal - Porto. Era quase arquitecta e a partir de metade do caminho, andava sempre com o Kim.

Shin Ook Li: foi ela que nos contou, que os bébés coreanos já nascem com um ano, e quando passam o ano todos ficam um ano mais, velhos. No seu caso, por ter nascido em Dezembro, nasceu com um ano e um mês depois já tinha dois!! Queixava-se muito dos pés, e apanhou o autocarro algumas vezes.

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