El Camino de Alexandre - Third Week

04 de Novembro de 2011 - A dor a cada passo

Aquela dor de ontem... Hoje de manhã, um arrepio subiu-me pela espinha acima, ao sair do beliche e pôr os pés no chão. E não foi de frio. Foi de medo. Que dor é esta?

Uma nova realidade. Algo tão simples e fundamental, tão essencial e tão básico para o ser humano. Caminhar. Algo de novo para mim. Porque a cada passo que dou, cada vez que me apoio no pé esquerdo, umas golfadas e bombas de dor. Como é que vou conseguir sair desta? E se a situação não chegasse para se instalar o desespero, a chuva, o frio e o vento, continuam a não dar misericórdia.
Não é só o facto de tomar consciência que a possibilidade de desistir se tornou bem presente, é o dizer adeus a todo o trajecto até aqui e às pessoas que conhecemos.

A estrada é longa e sempre em frente. Nada para nos distrairmos a não ser a chuva que muda com o mudar do vento. E a dor... Essa sim é uma tremenda distracção. A dor a cada passo, durante uns longos dezanove quilómetros.


05 de Novembro de 2011 - ...17,2km...

Na folha A4 que nos serve de guia, podíamos ler: 17,2km até à próxima povoação. No livreco/guia da Reyn, a mesma coisa. Não são montanhas, são planícies e as intempéries continuam a tornar a nossa vida miserável. Nada de quintas, aldeias, chafarizes ou estradas com carros. Nada de nada! Se em média fazemos cinco quilómetros por hora, pelo menos umas longas três horas e meia de absolutamente nada teríamos de enfrentar.
Fui devagar. Muito devagar e com passos curtos. Apoiado no meu bastão/bengala, para minguar o meu novo companheiro: tendinite no pé esquerdo!

Está a chover. Esta e o vento, tornam qualquer evento social ao caminhar impossível. Passados poucos metros já todos caminham com uma distância crescente de vários metros. É cada um por si e virados para dentro de si. Se não consegues estar contigo mesmo durante tanto tempo, vêm fazer o Caminho e talvez aprendas algo sobre ti nesta etapa.

Uns quilómetros de caminhada, e sabes que és o ultimo. Que ficaste para trás porque vais devagar, que não te podes valer de ajudas se te acontecer algo, que não podes esperar que alguém apareça. São 17,2km a caminhar contigo.


06 de Novembro de 2011 - Pôr do sol

As dores ainda lá estão, mas lá se vai aprendendo a dominar uma ou outra técnica para que não doam tanto. Passos curtos, devagarinho e sem pressas. Mais peso aqui e menos ali. Evitar as descidas e carregar nas subidas. Por muito poucas que estas sejam.

Foi um dia assim, até decidirmos virar para uma via alternativa ao Caminho. A Via Romana. Não temos informação de quantos quilómetros são ao certo até ao albergue que vem na lista, mas não pareciam ser muitos. Até que viramos para uma estrada larga de terra batida que aponta para uma floresta. No ultimo troço de alcatrão, alguém escreveu: 8km até Calzadilla de Hermanillos. Oito quilómetros não é de assustar, mas depois de mais um longo dia, com o sol a pôr-se em menos nada e um vento frio a aumentar, tornou, mais uma vez, a tarde interessante!

Vais sozinho, está a ficar escuro. A fome é algo tão normal e familiar que já te esqueceste que ela está lá. Os tremores de frio nas mãos a descoberto, que seguram o cantil e o bastão, já nem os notas.A dor no pé...pfpff. Esquece lá isso! A bexiga que incha com cada golo que dás no cantil e te obriga a demorosas e aparatosas paragens, uma rotina.

O que é incrível, não é o que cada pessoa é capaz, quando confrontada com situações fora do vulgar e do seu campo de conforto. O incrível é, a capacidade de ainda, apesar de todos os obstáculos conseguir apreciar o facto de estar a caminhar numa floresta, sem nada à minha volta enquanto vejo um magnifico pôr do sol, e acreditar que se continuar a caminhar, pessoas que te querem vão estar à tua espera e que de uma forma ou doutra, nada de mal te irá acontecer.


07 de Novembro de 2011 - O passar dos dias

Os dias no Caminho começam para nós com o som do despertador da Reyn a tocar. Depois disso, ainda ficamos mais uns minutos na cama, até que a realidade se instala. Juntamo-nos na cozinha se houver, mas o hall também serve para tomar o pequeno-almoço antes de ir lá para fora. Cada um vai saindo ao seu ritmo. De vez em quando a Reyn despacha-se primeiro e sai a correr, outras vezes fica para trás. Antes de nos separarmos, combinamos mais ou menos o sitio onde almoçar todos juntos. Eu e a Ana saímos juntos, mas depressa os ritmos, as paragens e as vontades fazem que cada um caminhe o seu próprio caminho. Podemos ficar sem nos ver durante horas, mas não estamos muito preocupados. Estamos todos em casa. Estamos todos no Caminho de Santiago, a seguir as setas amarelas.

O almoço, costuma ser pão. Pão com marmelada é o menu do dia, quase todos os dias. Com algumas variantes (manteiga, chouriço, queijo, banana) mas a marmelada em si, está sempre lá perto. Por enquanto, ainda não estamos enjoados desta fantástica combinação preço/quantidade! Quando temos sorte e apanhamos uma cozinha no albergue anterior, cozinhamos a dobrar e metemos o resto nos tupperwares. É melhor um arroz frio de feijão, ou massa com legumes colados uns aos outros do que pão espanhol todos os dias. Não há forma de nos habituarmos a este pão.

A caminhada continua, um pouco mais molenga pela tarde. Se estiver dia de chuva, caminhamos em silêncio. Se estiver sol, acabamos por ir a conversar por esse caminho fora até ao albergue. Seja como for, é no albergue que todos se encontram e é nos albergues que temos o momento surpresa de cada dia. Com quem será que vou dormir hoje?

Se não tivermos já parado num supermercado antes, ainda temos que adiar o descalçar das botas e o descanso dos pés massacrados, para mais uma visita à terra em busca de provisões.
Depois de marcar território estendendo o saco-cama nos beliches, e fixar a bandeira na cozinha, é nesta que passamos a maior parte do restante tempo. O descanso é sagrado e todo o tempo é pouco para dormir e estar sossegados na cama.
Ás vezes estamos sozinhos os três, outras vezes são mais uns quantos, outras (poucas felizmente) são demasiados. Ainda ficamos abismados quando encontramos salas com colchões armazenados e à espera da invasão de peregrinos de Verão. É assustador pensar nestes locais com centenas de pessoas ao mesmo tempo.

Depois da paparoca e de momentos de converseta e risota à mesa, retiramo-nos para os aposentos privados.
O normal e dormir no beliche de cima e a Ana no de baixo, com a Reyn numa cama junto à nossa. Mas por vezes não acontece assim, e lá temos espanholas, coreanos, suíços e francesas como peluches de dormir.
É aos sons corporais deles que adormecemos e tirando um dia ou outro, durmo que nem uma pedra.


08 de Novembro de 2011 - O dia do autocarro

Não há mais volta a dar. Ontem no albergue quando tirei as botas e tentei massajar o pé e fazer uns tímidos alongamentos, um ruidoso som saiu das entranhas desconhecidas desta parte do corpo. Soava como uma velha porta a necessitar desesperadamente de óleo e cujo som atravessa paredes. Foram demasiados decibéis estranhos para continuar com isto e arriscar sequelas e problemas piores futuros.
Hoje vou de autocarro.

Ainda tive que caminhar seis quilómetros até ele, mas foram bem saboreados por serem os últimos durante os próximos dias. A Reyn e a Ana, seguiram caminho. Para elas seria um longo dia até Leon.
Enquanto esperava pelo autocarro, um outro para largar mais passageiros. Deste, sai a coreana que conheci em Tosantos e uma amiga. Olhamos os dois ao mesmo tempo um para o outro e apontamos para as nossas dores. Pelo menos, não me senti tão só.

O caminhar até ao autocarro, foi fácil, o ficar à espera deste também. Pôr a mochila no porão uma canja, comprar o bilhete ao motorista e sentar-me, foi num ápice. Mas assim que o autocarro começa a andar, tudo me cai. A realidade de que não consegui caminhar todos os quilómetros até Santiago. O saudoso adeus às dores do dia que tanta felicidade trazem quando a noite chega e a realização de mais uma etapa conquistada. Tudo esfumado ao ouvir o motor do autocarro.
Ainda tentei ver pela janela tudo o que estava a perder, mas não ajudava a levantar a moral.


09 de Novembro de 2011 - A perca do espírito

Não é a mesma coisa. Nem de longe. Hoje tive que apanhar outro autocarro. Decidimos que enquanto o pé fizesse sons tenebrosos ao mexer, iria ser assim. E quando as dores parassem teria que esperar mais dois dias, pelo sim e pelo não!

Passei a manhã em Leon, com a Kathrin e a Karine. A primeira apareceu de surpresa ontem em Leon. Conseguiu "apanhar-nos" mesmo ficando um dia a descansar em Burgos. Karine, apareceu às portas do albergue, armada com alforges na bicicleta, à frente e atrás! Não descansámos enquanto não lhe cilindrámos com perguntas sobre a sua viagem, numa tentativa de curar saudades das nossas meninas. Mas isto foi ontem... Hoje, acordei sem a pressa habitua num albergue a fervilhar de agitação. Não há pressas quando se viaja de autocarro. Trinta quilómetros, são trinta minutos se tanto e não um dia inteiro a caminhar.

Passei um pouco com a Kathrin e a Karine pelo centro histórico, bebemos um café com leite. Tentei ser útil ensinado-lhes o que aprendi ontem. Onde era a biblioteca, onde eram os supermercados. Quais os caminhos para chegarem ao albergue. Elas vão ficar mais um dia em Leon para descansar. Eu meti-me num autocarro, para sair num vilarejo igual a outros tantos e entrei num albergue deserto. Os peregrinos não costumam chegar tão cedo. Se calhar, já não sou um peregrino...


10 de Novembro de 2011 - ...sobre não caminhar...

Mais um dia, mais outro autocarro. Já não sei o que estou a fazer. A intensidade dos dias a caminhar (e até os da bicicleta!) estão a esfumar-se num pesadelo rodoviário. Estou a ver o mundo através de um vidro e sentadinho da silva numa poltrona. Qual é a piada?

Voltei a chegar cedo de mais ao albergue de Astorga. Ainda a senhora andava em limpezas, por isso fui dar uma volta. Mas não muito longe, porque senão este descanso médico perde o sentido e torna a situação ainda mais intolerável. Por isso, fui ao jardim ao lado do albergue, onde uma exposição fotográfica ao ar livre sobre os últimos cem anos de Espanha, me entretiveram e ensinaram, muito sobre este país vizinho que só agora estou a começar a conhecer.

Os dias são passados, na cama. Deitado a olhar para o tecto enquanto oiço um livro nos fones. A dormitar e a beber chá e água.
O momento alto do dia, é quando a Ana e a Reyn, chegam esbaforidas e massacradas ao albergue. Durante o jantar elas contam-me as aventuras do dia. O brilho nos olhos delas ainda está lá, tal como o Santi nos explicou. O meu brilho, foi dar uma volta e ainda não voltou.


1 comentário:

Nuno Cândido Vieira disse...

..."momento surpresa de cada dia. Com quem será que vou dormir hoje?" Ah, Alexandre, meu menino inocente! Dás de mão beijada a um tipo como eu galhofa fácil desta? Excepcionalmente, contrariando o meu âmago, vou manter a elegância.