...o dia a seguir.

As bicicletas estão arrumadas sob a janela, dentro de casa, a descansar.
E nós também. ...continua a sensação de deslocado. A viagem já acabou, mas as nossas mentes e corpo ainda não se acomodaram ao sedentarismo. Não queremos acreditar que já tudo acabou, e tentamos não nos focar nisso.


São as férias de Natal para o Miguel. É ele que toma conta e vigia as nossas meninas no escritório, enquanto divide a sua atenção entre as batalhas míticas e fantásticas contra dragões, anões, duendes, fantasmas e outras criaturas cósmicas, e olha para a TV, que cospe qualquer programa. Dois olhos, dois ecrãs.
Nós apenas tivemos olhos para um ecrã. O ecrã do portátil, onde atualizamos e escrevemos no atrasado blogue. O nosso "eu" digital, ainda está a labutar de mochila às costas, em La Rioja, acabou de conhecer a Reyn, e a tendinite é uma palavra que pouco ouvimos ainda. Temos que trazer a história ao nosso encontro.

Com tudo espalhado na bancada do quarto, deixámos as arrumações para mais tarde e fomos para a rua. Fomos dar uma volta. Caminhar pela cidade como se fosse a primeira vez. Como se fosse uma cidade que estivéssemos a visitar e que amanhã disséssemos adeus. São as mesmas silhuetas de sempre, o mesmo "ambiente", mas a maneira de olhar é outra.


Na estação dos caminhos de ferro, colocamos questões sobre as facilidades de transportar as bicicletas no comboio, nas viagens para Lisboa. Facilidades? Não existem. Se quisermos entrar no "pouca-terra", temos que desmontar e empacotar as bicicletas. Pelo menos, é grátis, todo este aparatoso trabalho de desmonta-monta, empacota, desempacota. Nos autocarros, não temos tanta sorte. Para colocar o velocípede na bagageira, temos que o enquadrar na categoria das encomendas e aí, pagamos ao quilo! Depois de desmontar e montar tudo, claro. Isto, para fazer tudo dentro dos trâmites.
Se não "declararmos" que é uma bicicleta e a caixa onde ela se aperta, não der insinuações do que está lá dentro, talvez toda a gente desvie o olhar e não nos cobre uma multa. É assim, levar as bicicletas nos transportes públicos de Portugal. Pelo menos, se as quisermos tirar de Tavira. Um enredo...


Ao caminhar pela rua principal da cidade, uma velha conhecida escondia-se dos olhares de rotina dos transeuntes, assomando-se e deixando-se ver apenas por quem a conhece. A seta amarela! O Caminho de Santiago, também começa aqui e sítios que passámos vezes sem conta, durante uma vida inteira, ganham outro significado quando pensamos que está aqui um trilho que nos levará a Santiago, com outros peregrinos e experiências novas à mistura. Traz-nos uma sensação reconfortante, uma vez que os nossos corações ainda não chegaram aqui por completo. Vagueiam algures pelo que passou, entrando acanhados e cautelosos no que é e será a nossa vida até uma próxima aventura.


Fomos, timidamente, dizer olá aos nossos amigos que aqui vivem. Todos ao mesmo tempo, não, pois já percebemos que quando estamos entre muita familiaridade e caras conhecidas, o sentimento de deslocação sai reforçado e ficamos assustados. Deve ser assim, o bicho do mato das viagens...
Mas nem todos estão cá. Uns já se foram embora, outros para lá caminham, outros são mais difíceis de encontrar. Foi bom dizer olá, mas foi suficiente. Voltámos para casa, cabisbaixos, com a sensação de que nós voltamos e todos se estão a ir embora.


...há um ano atrás: Gonfaron

Mértola - Tavira

As primeiras luzes a entrar no salão de festas, pelas pequenas janelas, a imensidão do espaço onde passámos a noite. Ficámos alguns minutos deitados, no conforto do saco-cama, a saborear o nossa última manhã de viagem.
Ficámos com o nervosismo pré-partida. Encafuamos tudo dentro do alforges e encaixámo-los na bicicleta mais uma vez. Só mais esta vez...


Dissemos adeus ao pessoal que estava de serviço no quartel e agradecemos. Eles contaram-nos que de vez em quando um peregrino passava por ali e pedia pernoita. O pessoal encarregue de tomar conta do Caminho Português, veio há coisa de três ou quatro anos, pedir-lhes para ajudar os peregrinos que ali passassem. Talvez um dia voltemos aqui de mochila.
O dia mal começara e o frio apertava durante as primeiras pedaladas. Não demorou muito até pararmos para tomar o pequeno-almoço, com o nascer do sol sobre a cidade de Mértola.

Duas hipóteses para os últimos quilómetros.
Seguirmos a estrada principal, que nos levaria até uma IP, que rapidamente nos poria em Castro Marim e Vila Real de Santo António, onde a N125 nos esperava com o seu habitual tráfego. São pelo menos noventa quilómetros de estrada recta, sem grandes declives e sem muito para ver, além dos camiões de segunda-feira a razarem-nos as orelhas.
A segunda alternativa, seria virar daqui a sete quilómetros nesta estrada, após Mértola, e enfrentar a Serra do Caldeirão de cabeça e peito erguido, pela estraditas secundárias, as longas e impossíveis subidas, os buracos e a pouca sinalização, na esperança de encontrar o caminho mais directo e curto até Tavira. E também o mais bonito.


Virámos à direita, e deixámos para trás o crescente tráfego. Deixámos para trás os dias de barulho, buzinadelas e razantes bamboleantes. Deixámos para trás a certeza, e encarámos de frente a incerteza que apenas uma estrada nova consegue proporcionar. A partir de hoje, vamos ter que reaprender tudo de novo.

A bicicleta tremelica mais, quando em estradas esburacadas e mal remendadas. Mas os sorrisos que ganhámos, valem mais do que uns braços dormentes. Foi sobe e desce, sobe e desce, sobe e desce. Todo o dia nisto.


Quase sem darmos por isso, atravessámos do Alentejo para o Algarve ao passar sobre a ponte de mais um rio, que por esta serra corre. Não vimos placas a sinalizar nada, mas o mapa indicava a mudança de região.
Quando chegámos a Martim Longo, procurámos o caminho que se embrenhava ainda mais para dentro da serra e em Vaqueiros, saímos dos selins para almoçar. Ainda não tínhamos parado por um momento que fosse. Como se sentíssemos que durante muito tempo não voltássemos a ter umas sessões de serra acima de malas carregadas e quiséssemos por isso estender a sensação.
A aldeia parecia deserta, embora fosse segunda-feira. Mas não nos aborrecemos e comemos o arroz de pato que a mãe Mónica nos trouxe ontem, ao solinho da paragem das camionetas.


As subidas silenciosas, por entre o mato da serra. A ave de rapina a caçar nas encostas. A aldeia de casas brancas que espreita por entre os vales. O desenho das estradas e caminhos a meandrar pelas colinas. O suor que escorre quando estamos ao sol e se torna um fio gelado pelas costas ao cruzarmos sombras. As paragens para tudo isto apreciar enquanto se bebe do amigo cantil... 


Quando demos por nós, o azul do céu encontrou o azul do oceano. Aproximava-se o fim.
Parámos no topo mais alto do dia e sentámo-nos a observar e a reflectir...


Sobre este estilo de vida que não esperávamos gostar tanto, e sentir, já, tanto a falta. Os 505 dias em cima do selim, que nos obrigaram a mudar de maneira de pensar, de modo a pedalar dia após dia, apesar das adversidades e dos momentos mais em baixo. Desde as pequenas coisas do dia a dia, à consciência do nosso lugar no mundo e o que andamos aqui a fazer.
Ainda ficámos ali sentados bastante tempo. Acho que queríamos que a viagem perdurasse mais um pouco.

Mas o sol não espera, e antes que ele se escondesse atrás dos montes, puxámos os descansos para trás, levantámos a perna, ajeitámos o casaco e a badana, pusemos um pé no pedal e deixámo-nos levar pela descida da Serra de Mu até Tavira.


Tocámos à campainha, enquanto desmontávamos o estaminé. O meu irmão assoma-se à varanda, como se o primeiro dia da viagem se tratasse.



...há um ano atrás: Gonfaron

Serpa - Mértola

O tão temido frio de Dezembro, não chegou a entrar na tenda. Foi a "última" vez que dormimos na nossa tenducha, nesta viagem, e mesmo com uma vareta partida, uns fechos a ameaçarem falhar, alguns sinais de desgaste no interior e um carunchoso avançado, portou-se à altura das melhores. Não nos deixou ficar mal.


Como o dia iria ser pacífico e as distâncias não muito longas, demorámos o pequeno-almoço. Nas calmas e a aproveitar ao máximo o sol, deixámos Serpa por volta das nove e meia. Seguimos as placas a indicarem Mértola e Mina de São Domingos e durante trinta e sete quilómetros, tivemos a estrada por nossa conta, num Alentejo diferente do que vêem nos postais. O Alentejo do Guadiana.


Aqui, as planícies são escassas, mas nem por isso sentimos que andamos a queimar combustível com subidas e descidas. São calmas, e suaves. Sem stress. A estrada meandra por entre vales e cerros, montes e colinas por ela cortadas. Quando o horizonte se assoma, é um sem fim de mais montes pacatos e verdes. Sobreiros, azinheiras e oliveiras, polvilham a paisagem, sem nunca a dominar. Sente-se o espaço.
De vez em quando, passamos ao lado de uma vila ou aldeia. Perdidas e isoladas neste mar de colinas, o habitual branco e azul. Tudo é calmo e tranquilo. É domingo e as poucas pessoas que vemos, estão sentadas às suas portas, a descansar e a aproveitar o não usual sol e calor de Dezembro.


Pintada na estrada, a intervalos regulares, uma velha conhecida nossa. Os olhos já estão treinados para ver a seta amarela, e foi com agrado que a seguimos, na direcção oposta. O Caminho de Santiago.
Este, deve ser um dos caminhos menos usado. O Caminho Português do Este, que inicia em Tavira, onde a nossa viagem acaba, e atravessa Alcoutim, Mértola, Serpa, Moura e por esse lado do país segue sempre para Norte, até se juntar em Espanha, a outro Caminho. Mais uma vez, imaginámos como seria caminhar por aqui.


Virámos para a Corte do Pinto. Uma aldeia, escondida mas não sem vida, no Alentejo profundo. Tal como o pai, também a mãe do Alexandre não quis esperar que o filho chegasse a Tavira para o ver. Marcámos encontro na aldeia, onde familiares ainda vivem. Desta forma, podemos visitar todas as nossas origens nesta viagem. Bairrada, Atouguia da Baleia, Forte da Casa, Corte do Pinto e Tavira.
A casa da tia Maria e do tio Manuel, fica no centro e quando estacionámos os nossos camiões a pedal, os caçadores e nativos que conversavam no café em frente, pararam tudo e ficaram especados a olhar para nós a bater à porta. De lá saiu a mãe do Alexandre, e após cumprimentá-la e aos donos da casa, ficámos nós especados a olhar para o Miguel. O tempo também passou por aqui, durante o ano que andamos lá fora. Não parece muito, um ano... Mas parece que foi há uma vida atrás, que o Miguel era um fusili de treze anos. Agora virou spaguetti de voz grossa, com quatorze!
Estamos em família, mas também no Alentejo. Comprovámo-lo ao almoçar um ensopado de borrego, umas azeitonas e uma chouriça assada. Tudo com o belo do pão alentejano ao lado.
Com Mértola a poucos quilómetros dali, não tivemos pressa. Com calma e sossego, almoçámos e conversámos, no quintal. Abrigados do vento e ao sol, enquanto observávamos o Miguel a construir uma fisga de uns ramos de azinheira.


Dissemos os até manhãs, pois esperamos chegar a Tavira amanhã, e antes do sol se pôr, cruzámos as colinas que restavam até Mértola.
Mais uma vez nos lembramos de como a nossa época favorita para viajar é longe do Verão e aos domingos de preferência. Depois de irmos pedir aos bombeiros se nos podiam acolher, fomos cirandar pela cidade, até fazer tempo para a miudagem que ocupava o espaço onde iríamos dormir abalasse.
Com a luz mágica no ar, passeámos pelas ruas desertas, imaginado como seria viver por aqui.


Voltámos ao quartel, quando o frio se instalou no ar, vimos um pouco do filme da TVI de domingo, com uns robôs a destruir todo o mundo com pipocas e efeitos especiais a saltar por todo o lado. Quando nos cansámos, retirámo-nos para os nossos aposentos de quinze metros quadrados! Acho que podemos riscar da lista, que nesta nossa viagem pela Europa, já dormimos num salão de festas.


...há um ano atrás: Gonfaron

Viana do Alentejo - Serpa

Não tivemos frio, nem ficamos molhados do orvalho matinal. Até dormimos num colchão, dentro de quatro paredes. Mas esta combinação, não é remédio santo para uma noite descansada.
As janelas do quarto, ficam junto a uma das lâmpadas do quartel que ficam acesas toda a noite. Além da luz que não deixava a noite chegar ao nosso quarto, a sacana da lâmpada devia ter um problema de saúde qualquer, porque durante toda a noite, não conseguimos pregar olho, com o barulho que ela fazia! Por muitas voltas que déssemos, por muito que nos enfiássemos no saco-cama, por muito que tentássemos imaginar que o zumbido era um tantra budista de meditação, não houve forma. O zumbido estava um decibel acima do suficiente para adormecer.


Quando o relógio chegou às sete, desistimos e saímos da cama, com os olhos raiados e uma dor de cabeça. Vamos lá pedalar então. Dissémos adeus ao cão do quartel, Lume, e adeus a Viana do Alentejo.

O fresco da manhã e a boa disposição que apenas uma bicicleta e um dia pela frente conseguem proporcionar, depressa afastaram o cansaço da noite. Há que aproveitar o dia! Estamos no Alentejo e ao passar o monte de Viana, ficámos logo a ver o que nos esperava. Um dia de horizontes até onde a vista alcança, de montes alentejanos suaves a subir e a descer. Quintas e herdades, com vacas, cabras e ovelhas. Campos acabados de semear e outros já com o verde de uma nova vida. Oliveiras, azinheiras e sobreiros. Céu azul e pouco trânsito nas estradas secundárias... É bom viajar por aqui em finais de Outono.


Como a ponte de Alvito estava cortada, trocámos as voltas ao plano e fomos dar uma volta maior, por Cuba e Beja. Nesta ultima, subimos até ao castelo e à praça, encostámos as meninas num banco junto ao mercado que começava a fechar a loja, e comemos umas sandocas. De vez em quando, um grupo de senhores, que ficaram para trás nas arrumações do mercado, paravam a conversa animada, o picar o queijinho e o golo de vinho tinto da terra, para uma melodia melancólica de cânticos alentejanos.


Quando chegámos a Serpa, fizemos a rotina do costume nestes dias que correm. Fomos ao super, abastecer antes de ir visitar os bombeiros. Um pouco confiantes talvez, que teríamos esta noite uma noite repousada no quartel de Serpa, foi com surpresa que o senhor comandante disse que não podia receber-nos,e não perdeu muito tempo para arranjar alternativas. O local onde costuma acolher, estava hoje reservado para a festa de natal da câmara, e por muito que insistíssemos que ficávamos contentes com um pedaço de chão para os sacos-cama, não houve reviravolta de ideias.
E agora?

Sem muita vontade para procurar campismo selvagem, já a ficar de noite e com o frio a rodear-nos, voltámos ao centro de Serpa e montámos a tenda no parque de campismo municipal.


...há um ano atrás: Gonfaron

Vendas Novas - Viana do Alentejo

Dormimos tão bem quanto se podia esperar, por dormir dentro de quatro paredes. Às oito saímos do quarto, despedimo-nos dos bombeiros e montámos nas bicicletas, para mais um dia de viagem. Este, avizinhava-se cinzento.


Chegámos a Montemor-o-Novo e depois de um prolongado pequeno-almoço, regressámos à nossa amiga nacional dois, que nestas bandas ainda não foi promovida e mantém-se, regional.
Algures, numa vida atrás, atravessámos esta mesma serra, a Serra de Monfurado, de Verão mas fresquinhos no que toca a fazer viagens de bicicleta. Sempre nas mudanças mais baixas, sempre a suor por todos os poros e se bem me lembro, de vez em quando lá tinha que ser de empurrão.
Hoje, temos um dia de Inverno em Portugal. Cinzento, com chuva molha parvos e um frio de fim de Verão, mais do que de início de Inverno. As mudanças desta vez mantiveram-se acima, o suor nem chegou a vir. Mas a paisagem não mudou, apesar de agora não estar tão seca. Nem a sensação de vitória e bem estar quando damos conta que chegámos ao topo e temos à nossa frente a imensidão do Alentejo. Um olhar abarcava o vale de vinte quilómetros que nos separava de Alcáçovas.

Ao entrar em Alcáçovas, decidimos repousar e aproveitar a aberta na chuva, para enfiar algum combustível cá para dentro. Foi enquanto estávamos sentados na Praça da República, que começamos a olhar ao nosso redor e a reparar nos detalhes. Por estas bandas, as cores predominantes das casa são o branco com azul a rodear portas janelas e nos rodapés. Já não me lembrava que no Alentejo as cores são assim, e tão pouco me lembrei delas quando as vi num outro local, bem longe daqui e sob um céu mais soalheiro. O estilo das Ilhas Cíclades, nas construções das ilhas gregas. Pelos vistos o sol, a modos que "forçou" a arquitectura e as cores mais adequadas. Independentemente se as pessoas são gregas ou portuguesas. O estilo cíclades no Alentejo, ou o alentejano do Mediterrâneo?


Nós já raramente metemos conversa com os nativos, preferindo mais a paz e sossego nos nossos dias. Como David, o hospitaleiro de Tosantos. Ainda assim, uma senhora veio ter connosco com sinalética gestual a constatar que estávamos a comer. Quando lhe dissemos que: "...somos portugueses..." e "...viemos de Vendas Novas hoje e vamos para Tavira...", pareceu-nos a nós que a senhora perdeu o interesse. Como se por sermos portugueses a viajar de bicicleta, já não fossemos "interessantes". Será, que a interpretámos bem?
Não seria a última, hoje, a tomar-nos por estrangeiros.
Em Viana do Alentejo, enquanto a Ana foi ao Minipreço, um senhor de cabelo comprido grisalho, na casa dos quarenta e muitos, óculos e com ar de professor universitário, veio ter comigo e começou: "Do you speak English?". Á cabeça, só me vieram respostas de "Sou português!", "Falo português!" ou "Não sou inglês!" (sinónimo de estrangeiro)". Mas o tom não seria o correcto e não queria ofende-lo. Entrei no jogo.
"Yes, I speak English! Are you Portuguese?, ao que ele responde com um sorriso, "Yes, I am!". "Good! So am I!", retribuo. A risota esperada veio logo a seguir. A conversa ainda resistiu mais do que um minuto.
Viana do Alentejo está a tornar-se num dormitório de Évora... Alvito é mais bonito... A ponte para Vidigueira está em obras... Por aí... Mas ao despedir-se, fiquei de novo com a impressão de que se fosse de facto um estrangeiro a viajar de bicicleta em Portugal, muitos mais frutos teriam advindo da conversa.

Porque nos tomarão sempre por alemães, ingleses ou de outro qualquer país? Porque não pode um português a viajar de bicicleta, na sua própria terra, ser uma visão mais normal e acalentada pelos nossos?

Já nos Bombeiros Voluntários de Viana do Alentejo, a hospitalidade do costume, não nos deixou ficar mal. Sempre com boa disposição lá nos indicaram o quarto onde podíamos dormir e até nos facilitaram a chave do mesmo, caso quiséssemos ir ar um volta, mais descansados!

Ao adormecer, um zumbido artificial inundava o quarto no silêncio da noite...



...há um ano atrás: Gonfaron

Forte da Casa - Vendas Novas

É o principio do fim da viagem, ou o início de mais uma? É a questão que não me sai da cabeça, ao acordar e ter a consciência, que hoje, é dia de bicicleta!


Do Forte da Casa para a frente, temos o vasto Alentejo para atravessar. A maior região de Portugal e um pedaço do Algarve até Tavira. Quase trezentos e cinquenta quilómetros ou o equivalente a quatro ou cinco dias de pedal. É o que nos propomos a fazer, de modo a fechar o círculo. Já há muito que sentimos que a viagem terminou, ou anda a terminar aos bocados.
É altura de sentirmos aquela coisa de "agora sim, terminou".

Depois de um descansado pequeno-almoço em família, montámos nos selins à confortável hora de onze da manhã, para um começo barulhento na Nacional 10. E que bem que soube! Assim que o selim e as nádegas disseram "olá", foi uma sensação de bem estar e um relembrar de boas memórias. Depois de dias a sentir-me inadaptado com o que me rodeia, sem saber o que dizer às pessoas e às aranhas sem saber o que fazer, isto pelo menos já me é natural. Isto eu sei que sei fazer e que gosto. Venham lá os camiões!

Em menos nada chegámos a Vila Franca de Xira e atravessámos o rio Tejo pela ponte. A lezíria, Porto Alto e mais três ou quatro terreolas perdidas na despovoada estrada, pintaram o cenário para a nossa manhã.
Sem sítio onde almoçar, empurrámos as biclas para o meio do mato, não muito longe da estrada, mas o suficiente para podermos descansar dos incessantes carros e camiões.

Nestes dias que correm, o sol corre rápido e nós atrás dele temos que ir, para não ficar apeados em campismos selvagens gelados e molhados do orvalho! Por isso, após um dia inteiro de pedaleio non stop, em Vendas Novas, fomos experimentar pedir ajuda aos bombeiros, de novo. E de novo, para nosso alivio, não nos foi negada pernoita.



...há um ano atrás: Gonfaron

Forte da Casa

O dia de chegada ao Forte da Casa, entre tanto cimento, ambiente cinzento e excesso automobilístico, assustou-nos e com o convite do Pedro e da Beatriz para passar o fim-de-semana na terra, não pensámos duas vezes. Sábado de manhã, lá fomos a caminho da Bairrada, a cinco quilómetros de Tomar. Um vilarejo, como milhentos outros que atravessámos de bicicleta e que aprendemos a gostar e a apreciar.


Depois de duas horas sentados no carro, saímos para uma lufada de ar fresco e frio. Paz e sossego.
Preparou-se o carapau assado com batatas e grelos. Carapau grelhado!! Que bom que é ser português!
Fez-se as lidas à casa, visitou-se o resta da família, logo ali ao lado. É só atravessar a horta e tornear as oliveiras. Por aqui, assim como na Atouguia da Baleia, tudo permanece imutável. O avô continua a sentar-se à cabeça da mesa, no mesmo banco, junto do mesmo canivete e sob o mesmo relógio com mais de cem anos.
As sobrinhas, Maria e Catarina, mostraram-nos os seus tabuleiros da tradicional Festa dos Tabuleiros, para nos porem a par do que por cá se tem passado. De quatro em quatro anos, agora temos longa espera até ao próximo.


Falámos com toda a família, durante o fim-de-semana, às vezes à lareira com aroma de castanha assada, outras ao pequeno-almoço, entre torradas, café e papas de aveia! Contamos-lhes as histórias e desventuras, que não vêem no blogue, de alguns hábitos nutritivos estranhos dos nosso vizinhos europeus. Batatas cozidas ao pequeno-almoço ucraniano, favas cruas em vez de amendoins nos bares de Creta, dez ovos mexidos e salsichas fritas com fartura no despertar polaco, alface com queijo em França. Todos sorriem e a avó exclama "Ai filha!" ao ouvir tais circunstâncias estranhas por que passámos.

De regresso aos subúrbios lisboetas, arriscámos tirar um dia para resolver assuntos pendentes na capital. Apenas um. Por enquanto, chega e sobra.
A loucura do Natal no Centro Comercial Vasco da Gama, empurrou-nos para um almoço ao ar livre nas escadas do Pavilhão Atlântico. Uma viagem no autocarro cinquenta serviu para fugirmos aos transportes públicos e caminhar o resto do dia. Tudo parece terrivelmente familiar e assustador. Todo este consumismo desenfreado. Todo este stress citadino, toda esta múltiplicidade de estímulos sensoriais. Buzinadelas, telemóveis, semáforos, pessoas aos berros, aviões a razar e comboios a travar. Publicidade por todo o lado. Compra! Compra! Compra!


Fugimos.... e entrámos num sítio, junto à nossa antiga casa, onde nos pudéssemos sentir "normais" de novo. Entrámos num supermercado ucraniano. Tinha pouca gente e a que tinha, não era portuguesa. Os produtos e os preços, assinalados em cirílico. Peixe em conserva por todo o lado, centenas de frascos gigantes de pickles, tomates pelados e molhos. Uma prateleira reservada para os rebuçados e doces ao quilo. E, pufuletis! O nosso snack favorito na Roménia, quando saíamos da estrada...
Foi a realização do quão diferente nos sentimos por estar em casa. Do quanto tempo passámos fora e do quão diferente foi a nossa realidade durante esse tempo.
Talvez tenha sido por isso, que passámos a maior parte dos dias, escondidos em casa. Longe do papão da familiaridade.



Atouguia da Baleia - Forte da Casa

Da Atouguia da Baleia para o Forte da Casa foi difícil sair. A avó do Alexandre encheu-nos os sacos de comida e as despedidas estenderam-se mais que os planos. Parecia que iamos atravessar um deserto de quinhentos quilómetros! Vá de carregar maçãs, caixas com fatias douradas, bananas, sandes de carne assada, doces de abóbora, bolo doce... Ufa! "São só oitenta quilómetros e chegamos a casa. Não é preciso tanto!", eram frases que soavam na cozinha e saiam pela porta da garagem...


Mais uma fotos e de novo nos fizemos à estrada. Nada que não tenhamos já feito. Fizemos este mesmo trajecto, mas no sentido inverso. Já lá vai um ano!

Assim como o trajecto da casa da Annie até à Atouguia da Baleia, hoje foi um relembrar de velhas estradas.
A paisagem e a estrada foram surgindo nas nossas memórias. "Ahh! Lembro-me desta estrada!", "Parámos aqui para fazer xixi!". Uma sensação estranha, esta vividez de lembranças tão forte.


O trânsito estava intenso. De certo modo ainda nos aborrece, mas já o encaramos como ossos do ofício. Estávamos a tomar a direcção de Lisboa! Mais ou menos. Nem de longe é Lisboa, o Forte da Casa, mas é um dos grandes dormitórios da capital. A interrupção do Caminho de Santiago, os dias precedentes de Verão nas planícies espanholas e os parcos dias de pedal em Portugal por aldeias, vilas e cidades mais tranquilas. Saudades...

A  partir do momento em que saímos de Torres Vedras a estrada tornou-se mais calma, não a mais calma, mas razoável. Estreita e às vezes o alcatrão tem demasiados remendos. Não impediu que aproveitássemos o solinho e a vista dos topos. Sobral de Monte Agraço e Arruda dos Vinhos ficam nas alturas dos montes e lá nos divertimos a suar que nem Agosto, para chegar a estas cidades.

Mas ao entrar no Vale do Tejo... PUM! Foi como se tivéssemos atravessado algum portal mágico para a dimensão do smog, neblina e do cimento, com uma estrada a ligar tudo isto e a manter reféns nas suas prisões de metal com rodas, centenas de automobilistas no seu regresso a casa. A N10!

Voltámos a vestir os casacos. Pelo aspecto da coisa, o sol ainda não brilhou aqui hoje. O que não ajudou a dar cor ao cenário. Fábricas, armazéns, encafuados uns nos outros. Prédios, vivendas e construções sujas de anos e anos de tubo de escape. Tínhamos esperança de ver o Tejo, mas hoje ficou-se pela ilusão. O que se passa aqui? Nós já vivemos aqui... Como?

A poucos quilómetros de casa, parámos para comprar uns pacotes de aveia e assegurar os bons hábitos matinais ensinados pelo Keith e pela Cathy, em Ostuni. Enquanto um se enfiou no supermercado alemão, o outro ficou, como sempre de guarda às meninas. Um senhor, já de certa idade, que se preparava para subir para a sua lambreta, começa a falar comigo num português estranjeirado. "É alemão? Vêm de Inglaterra". Tive alguma vontade de responder: "Venho do Forte da Casa, a três quilómetros daqui! Existem portugueses a viajar de bicicleta e às vezes moram mais perto de si do que pensa!"
Mas não... fiquei pelo: "sou português" e bastou-me o ar de dúvida e de desconfiança que se segui no senhor, para ter a certeza de que fiz bem em não prolongar a conversa.


Ultrapassámos mais uma dezena de carros, entalados na hora de ponta, virámos para o Forte e entrámos na Praça das Flores. De flores, já não tem nada. Será que alguma vez teve?
Rapidamente, encostámos as bicicletas, tirámos os alforges, enfiámos tudo dentro do prédio e até à porta de casa.
A Ana toca à campainha, ouve-se uns passos e um ladrar, e logo a seguir, a mãe abre a porta à sua filha. Um ano depois...

Estamos de novo em casa.


...há um ano atrás: Palavas-les-Flots – Générac

Atouguia da Baleia

Tudo permanece igual após um ano. E ainda bem!


As sopas de feijão, grão, feijão verde e canjas que a avó faz, continuam saborosas como sempre. Para não falar do fatias douradas, das feijoadas, das carnes e dos enchidos assados. Uma pequena maravilha de cheiros e sabores a sair da cozinha que o avô construiu com as suas próprias mãos.
Esse aspecto é outro que permanece igual. A mutabilidade da casa. Se já mudava com as visitas de mês a mês, depois de um ano, a casa dividiu-se em duas. Paredes nasceram, outras caíram. Janelas interiores e portas escondidas.
A construção de novas ideias não tem fim nesta casa da Rua Direita da Atouguia da Baleia.

Nós... Nós encontrámos o nosso lugar à mesa, e rapidamente nos sentimos como se nunca daqui tivéssemos saído. Como se apenas um mês tivesse passado. Estivemos mesmo a acampar no topo dos Cárpatos Ucranianos? Parece difícil de acreditar, quando se está enfiado na cama familiar com lã de cordeiro, com a barriga cheia de fatias douradas e o descanso de saber que amanhã não temos que pedalar para lado nenhum.


Mas ainda assim, tentámos não amolecer, muito, pois a viagem ainda não terminou.

Marcámos uma consulta no médico de família das nossas meninas. Na quarta-feira, desmontámo-las, enfiámo-las no carro e fomos com elas até Lavos. Terra do seu criador. Ciclo Cross Julinho. Com quatorze mil quilómetros de viagem e pelo menos três mil antes antes de a iniciar, sem nunca ter mudado de cassetes ou rolamentos, já estava na altura de uma mudança.
Ficámos contentes por voltar a ver o nosso mecânico favorito e por saber que o negócio corre bem em tempos de crise. Pode ser que a malta comece a trocar o carro pela bicicleta.


No dia seguinte à consulta, acordámos cedo e desemperrámos as pernas. Fomos passear até Óbidos de bicicleta, felizes e contentes que nem peixe dentro de água, com o nariz a pingar e as mãos a enregelarem do frio que fazia.
Apanhámos o início de mais uma Feira de qualquer coisa lá na vila. Pelo número de árvores de Natal, devia ter a ver com a época. Deambulámos um pouco pelas ruelas e tirámos fotos, antes de voltar para casa, com o apetite pronto para mais uma refeição d'avó.


Carreira - Atouguia da Baleia

Excesso de confiança.
É a característica que está a sobressair em nós, no que toca a andar de bicicleta e atravessar grandes distâncias. De que forma se explica que nos propuséssemos a fazer mais de oitenta quilómetros e apenas tivéssemos saído de casa às onze?! Seja o que for, foi isso que aconteceu.


Depois de um belo pequeno-almoço na companhia da Mónica e da Annie, dissemos os adeuses. Ou até logo!

A estrada já era para nós uma conhecida. Já a fizemos umas quantas vezes no passado, nos dois sentidos. Mais do que um desenrolar de novas paisagens, passámos o dia a relembrar velhas imagens.
Não parámos. Até chegar à Nazaré, e enganar os estômagos durante meia hora, não parámos. Fizemos Carreira, Amor, Marinha Grande, Nazaré, São Martinho do Porto, Caldas da Rainha, Óbidos e Atouguia da Baleia numa monumental pedalada non stop de seis horas. E ainda assim, já era de noite quando subimos a Rua Direita da vila final. Batemos o record de velocidade média, uns dezasseis quilómetros por hora.


Talvez também seja a falta de desafio.
Já estamos em casa, as estradas não são novas, pedalamos de casas de amigos para casas de família. Algo está a faltar. O factor desconhecido e surpresa. Já não fazemos campismo há algum tempo e sentimos falta. A última vez que montámos a tenda foi em Espanha, antes de começar a fazer o Caminho de Santiago. Já não usamos o fogão para cozinhar, ou temos a preocupação, sempre presente, de ter comida nos alforges ou refeições mais compostas.
Sentimo-nos a amolecer e a abrandar e puxamos os nossos limites um pouco mais em busca de novidade.

O pai do Alexandre não resistiu. Quando parámos para beber água, à saída de Óbidos, um carro parou à nossa frente e de lá saiu uma cara conhecida. Demos os abraços e beijinhos à pressa, pois não havia tempo para grandes conversas. A noite estava a chegar rápida e ainda nos faltava uma hora de selim.

Até a Serra d'el Rei perdeu o encanto. Lembrávamo-nos de uma grande subida a certa altura. Uma longa estrada que nos levava ao topo e nos roubava o fôlego. Já não. Serviu para aquecer e pouco mais.

Passámos a barreira dos quatorze mil quilómetros no topo, já de noite, e descemos os restantes oito quilómetros até à Atouguia da Baleia, com as luzes de Peniche a dominar a escuridão.
E chegámos. Estávamos na Rua Direita mais uma vez. Tudo parece igual e imutável. Tocámos o sino,e o avô Mayer veio abrir a porta com um sorriso e uns grandes abraços. Minutos depois a avó Lisete também nos veio receber, e sem darmos por isso, seguimos a corrente e encontrámos de novo o lugar à mesa da cozinha.

Tudo é bom e estranho ao mesmo tempo. Tentámos não dar muita atenção à estranheza. São os últimos esforços da "viagem" a tentar não ser posta porta fora dos nossos "eus".
Há dias que viajámos em território familiar, entre amigos e família. Mas ainda vai demorar tempo até nos sentirmos em casa. Até lá, deliciamo-nos com as comidas d'Avó e com o redescobrir de velhas indumentárias no armário. Roupa nova! Depois de uma ano com as mesmas roupas, já estão tão gastas que todos os dias temos um buraquinho novo. E o que dizer das cores  comidas pelo sol! Qualquer par de calças e t-shirts deixadas para trás, são um presente de Natal!


...há um ano atrás: Carcassonne – Narbonne

Carreira

Quando é que podemos dizer que a viagem acabou? Quando começarmos a atravessar estradas conhecidas? Quando chegarmos à primeira casa de amigos ou família? Passámos dois dias entre amigos, mas continuamos a sentir-nos estranhos numa terra estranha...
Fomos de bicicleta ao supermercado e imaginamos que a nossa indumentária gasta, as cabeleiras sem penteado, e uma barba farta tipo matagal nos façam parecer um pouco "alternativos". De modo que onde quer que estivéssemos, tínhamos um senhor que, coincidência das coincidências, tinha sempre que fazer pelos nossos lados. Até nos divertiu, mas é ridículo como o aspecto físico é tudo no mundo ocidental!


Sexta-feira, dois de Dezembro! A Annie trabalhou e nós ficámos por sua casa, a dormir e a comer. Fizemos o jantar: caldo verde, paté e pasta. Caldo Verde!!!
Seríamos cinco à mesa: a Annie, a Marta, uma amiga da Annie e e nós. Tínhamos castanhas salteadas com cogumelos planeadas, mas uma avaria técnica com as castanhas, alterou-nos os planos.
Estávamos nós a braços com a janta, quando chega a Annie. Continuámos pela cozinha até ela nos chamar à sala, " venham cá ver isto!". O que seria? Tínhamos um "presente" cheio de fitas e laços sentado no sofá. Mais uma amiga, de terras algarvias que se juntou à festa! A Mónica que veio de Lisboa para passar o fim de semana com a Annie, mas que por acaso coincidiu com o fim de semana em que nós lhe anunciámos a nossa chegada. Nem combinado teria resultado melhor!
E assim foi, o nosso jantar a cinco, com a Marta que chegou pouco depois. Muita conversa, que nunca é suficiente para pôr em dia, os anos, meses e vidas que passamos sem estar juntos. Mesmo assim ajuda a matar saudades e reconforta-nos ter amigos de quem gostamos tanto junto a nós, pelo menos por um fim de semana. Há que aproveitar.
Deitámo-nos depois da uma da manhã. Ei, bem bom! À conversa, com filmes ou vídeos populares do que se passou em Portugal! É bom, mas continua a ser esquisito...


Pela tarde, fomos ver o Atlântico! Ironia das ironias...
Terminámos o Caminho de Santiago em Santiago, quando havia a possibilidade de continuar até ao oceano, se seguíssemos para Fisterra. Nesta tarde, vimos o oceano de novo, após um ano, na Praia da Vieira!! ...da Vieira...

Na noite de sábado, tivemos mais uma surpresa. Uma surpresa da Marta e uma noite por conta da Annie, disse-nos ela. Saímos de carro e parámos junto à igreja, num salão de festas! Escuteiros! Muitos escuteiros. Fizemos a fila para entrar com uma tigela e um colher na mão. Sopas! Já parecia bem! Quando nos fizeram reparar bem na decoração das paredes adivinhámos os fados!
Uma mesa corrida com nove sopeiras cada qual com sua sopa, que podíamos experimentar e repetir à nossa vontade! Mais umas taças de 'zeitonas, pão e broa de milho, e uns jarrinhos de vinho tinto!
Ficámos numa mesa com mais uns amigos da Annie e da Marta, que andava pelo meio da confusão a tentar organizar e orientar os escuteiros mais jovens.
Os Entre Linhas chegaram para animar a malta e começaram o repertório. "Vou dar de beber à dor", "Fui à feira de Castro", "Senhor Vinho" e mais fados conhecidos que a jovem fadista nos pediu para cantar com eles enquanto batíamos as palminhas. Enquanto as luzes estavam apagadas não podíamos ir às sopas, pelo que o Alexandre só completou as nove sopas depois do primeiro intervalo. Uma barrigada à portuguesa com sopa e fados pela noite fora.


Alguém atirou para o ar, "vamos ver um filme!" Depois das três da manhã, quando o filme acabou, é que fomos todos dormir!
Foi assim na casa da Annie. Um fim-de-semana de reecontros com amigos e com a nossa cultura e gastronomia portuguesa.


Arganil - Carreira

Chegámos a Dezembro, e ainda andamos em cima da bicicleta.

Tivemos mais uma noite tranquila no quartel dos bombeiros, com uma camarata só para nós. Despachámo-nos rápido, dissemos adeus à Dona Teresa. "Por detrás de uns grandes bombeiros há sempre uma grande mulher, neste caso a Dona Teresa". O que deixámos escrito.


Arganil, enfiado num vale profundo da serra, estava coberto de neblina. Deve ser assim a maior parte dos dias. Cada dia que passa temos menos frio de manhã, pois estamos cada vez mais a sul. Subir serras ao despertar também ajuda a ficar quentinho. E destas, não sei quantas atravessámos hoje. Andámos pela Lousã, Miranda do Corvo, Condeixa-a Nova, Louriçal... Um sem número de terras, em que dizíamos a nós próprios: "Só mais esta. Só mais esta". Subíamos e descíamos como se não houvesse amanhã. Foi divertido, mas cansativo.


Não tínhamos planeado isto, mas quando chegámos a Condeixa, já com sessenta quilómetros nas pernas, e com o sol a começar a descer, deu-nos na cabeça, e decidimos não ficar a conhecer os bombeiros de Soure, mas sim seguir em frente até à casa da Annie, na Carreia. Nem sei como o fizemos.

A estratégia seria chegar até à nacional cento e nove, antes que a luz do dia se esfumasse de vez. Esta parte conseguimos, mas o que veio a seguir, não é para repetir.
Uma coisa, é fazer mais de cento e doze quilómetros na Alemanha, onde os últimos dez, são pedalados ao longo de uma grande cidade, totalmente preparada e iluminada para os velocípedes. Outra é fazer cento e treze na nacional cento e nove. Carros por todo o lado, camiões a abrir, obras ao longo da estrada, troços de estrada completamente às escuras. Será que aprendemos algo neste ano de viagem? É a pergunta que nos invade a cabeça, quando depois de meses temos um comportamento destes!
Fomos ambiciosos. Arriscámos e tivemos sorte, armados com um colete reflector, duas luzinhas vermelhas a piscar atrás e uma quinta-feira feriado que, provavelmente ,fez diminuir o volume de trânsito.
Mas conseguimos. Chegámos dez minutos antes das sete, hora em que a Annie planeava sair de casa para os seus compromissos.

De alguma forma, senti que esta chegada, foi mais um prego no caixão da viagem. Atravessámos um pouco do Norte frio de Portugal, sem nunca ter que acampar ou chegar a sentir frio a sério. Agora estamos numa casa de amigos de longa data. A partir daqui, as etapas serão de família em família. Acabou-se, por enquanto, o factor surpresa. O começar o dia, sem saber onde vamos dormir...Acabou de acabar-se, e já estou a sentir-lhe a falta.


A Annie e a Marta, foram ao teatro. Nós... Ficámos por casa, e fizemos o nosso "teatro" com um frango e meio assado, acabadinho de sair da churrasqueira da zona. Para muita gente seria apenas mais um. Para nós, o primeiro depois de um ano de ramadão! Soube a pato!


...há um ano atrás: Monfta – La Bastide de Besplas

Celorico da Beira - Arganil

Apertámos a mão ao bombeiro que lá estava e saímos. Os planos eram chegar até aos próximos bombeiros, que podiam ser de Oliveira do Hospital, Tábua ou Arganil, consoante o nosso humor e cansaço.


Passámos mesmo ao lado de Gouveia e Seia. A Serra da Estrela foi companhia durante todo o dia, sempre a "direito"pela nacional dezassete. Bastante mais tranquila do que esperávamos. À nossa esquerda as montanhas e os picos erguiam-se altos e cheios de neblina. Tivemos nevoeiro até à uma e meia da tarde, e por isso vimos pouco da maravilhosa paisagem que nos envolvia.
Almoçámos em Póvoa das Quartas, numas mesas de jardim de uma colectividade desportiva. Com o pessoal da vila sempre a espreitar o que fazíamos.

Quando chegámos a Arganil, fomos primeiro às compras! Os bombeiros não são nenhum albergue e por isso longe de nós sequer pensar em cozinhar. Vamos preparados com comida para sandes. Quando encontrámos o quartel, primeiro parecia um edifício pequeno, mas assim que passámos a garagem entrámos num pátio rodeado por um prédio. Tudo pertencia aos  bombeiros, que nos explicaram que tinham muitos quartos a alugar a professores, por exemplo. Por sorte o comandante estava por ali e ligou logo à direcção. Pedimos só um sítio para estender os sacos cama e por pouco parecia que era mesmo isso, que íamos ter. Até que foram falar com a encarregada da roupa e das camas, a Dona Teresa. Veio conhecer-nos e dizer-nos que iria preparar as nossas camas. Apesar de termos insistido que não queríamos dar mais trabalho e que podíamos muito bem dormir nos sacos cama, a Dona Teresa passou a ferro mais os nossos lençóis e toalhas e deixou-nos tudo preparado, juntamente, com os bombeiros do turno das emergências que dormiam ali ao lado, num quarto só de duas camas.


Puseram-nos à vontade, depois de nos apresentarem as instalações comuns e a camarata. Cada qual foi ao seu trabalho. Isto não era couchsurfing, para ficarmos à espera de que alguém ficasse connosco. Sabíamos isso. Também não era um albergue onde pagamos e vamos à nossa vida. Sabíamos isto tudo. O que não impedia que o sentimento de querer partilhar ao menos uma conversa com alguém surgisse. Estamos cansados ao fim de uma dia a pedalar, mas tanto tempo de convívio com os nativos da região, já nos habituou ao conforto de uma noite tranquila à conversa com anfitriões antes de irmos dormir.
Por isso, enquanto achámos cedo demais para nos retirarmos para o quarto, mantivemos-nos pela sala de convívio a levar com o zaping e o filme que o jovem David escolhia, enquanto consultávamos à vez a internet, uma vez que ali tínhamos wifi gratuito e desbloqueado. Esperando encontrar um equilíbrio entre o socializar e o descansar.

A Dona Teresa passava atarefada de um lado para o outro e justificou-se ela pela sala de convívio, que ainda não tinha voltado ao que era, depois da festa de aniversário dos bombeiros, de à dois dias. A certa altura, veio ter comigo, dizer-me que se quiséssemos dormir ali, por causa de termos o calor da salamandra, que podíamos.

Mas preferimos dormir mais sossegados e com mais privacidade. Subimos mais um lance de escadas e fomos dormir, nas camas que a Dona Teresa tinha feito para nós, mas dentro dos sacos cama.


...há um ano atrás: Monfta

Almeida - Celorico da Beira

Será que a neblina se vai repetir esta manhã? Dentro do conforto do quente saco-cama, entre quatro paredes de pedra do tempo das invasões Napoleónicas, o dia não deixava adivinhar.
Abrimos a porta e recebemos uma lufada de ar fresco e céu azul! Viva ao sol Invernal!


Saímos da vila, não sem antes entregar a chave ao chefe dos escuteiros. Estava a tomar um café. Convidou-nos para um também, mas queríamos aproveitar o bom tempo. Por momentos lembrei-me do casal grego que nos convidou para um café, numa manhã chuvosa...

Seguimos as placas para Pinhel. Descemos até ao Côa, cheios de frio na carola, com o vento a raziar nas orelhas. Durante a subida, vá de largar camisolas, luvas e gorros. Na descida seguinte, vá de vesti-los de novo. É assim andar de bicicleta no Inverno. É fixe, porque de certa forma, está-se melhor a pedalar, do que parado. Por muito frio que esteja no ar.

O mapa da Repsol, indica que as estradas que atravessámos hoje, seriam bonitas e imersas na Natureza. Nós não a vimos. Ao sair do rio Côa, a neblina cobriu as serras de novo e passámos o resto da manhã "nas nuvens".

Ainda nos custa acreditar que estamos em Portugal. Olhamos para as coisas com olhos habituados a receber novas imagens e a procurar pequenas diferenças. Ao sair de Portugal, não o fazíamos, mas agora sim. É como se estivéssemos a pedalar por outro novo país. Ainda não saímos das rotinas da bicicleta, mesmo que estejamos em casa.
Ainda nos sentimos como estranhos no nosso próprio país. As nossas conversas em português iam desde o mais básico monossílabo, até às rotinas da viagem. Agora entram-nos nos ouvidos frases como " Está com pressinha?", ou " Diga lá dona!", ou "Quer um saquinho?" que por muito portuguesas que sejam, soam a forçado, como uma nova língua que escutamos!


Chegamos a Celorico da Beira às quatro da tarde. Parecia muito cedo para pedir guarida, só que o frio e o manto da noite chegam entre as cinco e as seis. Precavemo-nos com comida para sandes, e seguimos à procura dos bombeiros locais. Seguindo a estrada principal de pedra encontrava-se do nosso lado esquerdo. Chamamos por alguém com "boa tarde" (até isto nos soa esquisito, já lá vai tanto tempo desde que o utilizávamos) e aparece um senhor bombeiro. Pedimos para pernoitar, telefona ao chefe que telefona à direcção e sim, podemos ficar. Por momentos o bombeiro que nos recebeu olha-nos com ar de quem já nos viu antes. Pergunta se é a primeira vez que aqui estamos. Para nós é, mas depois de alguma conversa, percebemos com quem nos confundiu. Pelos vistos o Rafael e a Tanya (2numundo) também pernoitaram com os Bombeiros Voluntários de Celorico da Beira o ano passado, logo ao início da sua viagem de bicicleta, de Ovar até Macau.
Arrumamos as bicicletas, o senhor bombeiro mostra-nos a camarata, dá-nos toalhas e indica onde estão os lençóis. Muito mais do que pedimos e esperávamos. Um luxo! Com estas temperaturas frias, só não queremos é dormir lá fora!

Ainda é cedo, mas estamos cansados. Ouvimos os bombeiros nos corredores. Se pudéssemos íamos já dormir. Andar todo o dia a subir e a descer dá-nos conta do corpinho...


...há um ano atrás: Villeuve-de-Riviére – Monfta

Vitigudino - Almeida

Neblina....
A Ana Rita saiu cedissímo para conseguir entrar ao trabalho na capital de Portugal a horas. Nós fizemos-lhe companhia no despertar e até ser a vez do Nuno entrar ao serviço, preparámos as alforges, mais uma vez. Eram nove quando começámos a pedalar. Durante toda a manhã, uma constante: neblina. Não levantou, por mais que pedalássemos. Quer subíssemos colinas ou atravessássemos vales, a neblina manteve-se e tornou a maior parte do dia frio e molhado. Em especial na farta barba que apanha nas suas pontas as gotículas de água que pairam no ar. De vez em quando, tinha que limpar a cara para que não enregelasse.


Não conseguimos ver nada da paisagem e ainda chegámos a andar às voltas em estraditas secundárias sem sinalização ou direções, um pouco perdidos na neblina.
Quando finalmente parámos para almoçar, à uma e meia, numa terreola perdida, as nuvens subiram o suficiente e dispersaram, deixando o pouco calor do sol chegar até nós. A Ana dormitou dez minutos, pois estava a cair de sono. As horas de deitar do fim de semana a fazerem-se sentir!

Um passeiozito entre as aldeias de Espanha e quase sem darmos por isso, chegámos. Fiquei com a sensação de estar a entrar pelas portas das traseiras de Portugal. Antes de chegar à aldeia do Vale das Mulas, dentro de uma horta, uma tímida placa azul com umas estrelinhas amarelas, e a palavra Portugal. Conseguimos... Finalmente conseguimos regressar...


A lágrima veio ao olho e o beijinho prometido no asfalto português, assim como na humilde placa. Foi das sensações mais estranhas que alguma vez experimentei. Contente e triste ao mesmo tempo. A última fronteira e o destino tão ansiado. Estamos de regresso, mas também estamos a dizer adeus. Adeus às pequenas diferenças e hábitos que construíram casa em nós no último ano.
Adeus às dúvidas de leitura nos supermercados ou nas placas de sinalização.
Adeus aos sons diferentes de outras línguas.
Adeus às sabores de cada país, às imagens de diferentes construções.
Adeus às taxas extra sempre que telefonamos ou usamos o multibanco.
Adeus às feições diferentes das diferentes nações.
Adeus aos outros fusos horários.
Adeus às pequenas diferenças que se tornam familiares e bem vindas depois de passarmos algum tempo noutro país.
Adeus ao não nos fazermos entender.
Adeus...

Entrámos lentamente na aldeia... Parámos numa fonte à entrada da localidade e ouvimos umas pessoas a falar. Suou estranho ao início, mas reconhecível. Como algo que sempre soubemos, mas que esquecemos que sabíamos. A primeira pessoa que vimos, um pedreiro a trabalhar naquilo que nos pareceu ser a sua casa.
Dizemos boa tarde e apesar dos olhares estranhos (estamos de biclas carregadas), as pessoas respondem de volta.

Terminamos os quilómetros que faltavam até Almeida. Também não esperávamos isto, embora o Nuno já nos tivesse avisado. Dois conjuntos de muralhas em forma de estrela, rodeiam a cidade. Ainda um pouco atordoados, como se fosse um monumental "jet lag" de viagem, estacionamos na Praça da República. A Ana vai a uma mini-mercado. Estamos habituados a comprar pão nos mercaditos de aldeia. Aqui não. Somos encaminhados para a padeira da cidade. Enquanto vamos para lá, olhamos para os transeuntes. São mais morenos. São familiares e estranhos ao mesmo tempo. Quando falamos com a padeira e a senhora do posto de turismo, o sotaque relembra-nos o quão ao Norte nos encontrámos.

Mas o sol não liga às horas, embora tenhamos "ganho" mais uma ao mudar de país. Depressa a luz se esvai. Tentamos a nossa sorte nos bombeiros, com palavras em português tímido. É de loucos pensar em acampar nos campos e florestas com um frio destes. Mas eles estão em fase de mudança de instalações e por isso não podem receber-nos. Mas prontamente telefonam ao encarregado das instalações dos escuteiros e em menos nada, estamos a seguir um carro na neblina cerrada que se instalou entre as duas muralhas.


Carregamos as meninas para o antigo paiol, remodelado para receber grandes grupos, escuteiros ou viajantes extraviados de bicicleta que há mais de um ano que não pisavam a sua pátria.
O nosso cantinho...


...há um ano atrás: Tarasteix - Villeuve-de-Riviére