Boisse – Mondonville

Nós tentamos. A sério que tentámos. Não são dos nossos dias favoritos, aqueles que prometem pedaleio desenfreado para chegar a uma casa. Quando juntava as fotocópias que compõem o nosso mapa, teríamos que atravessar três folhas A4 para chegar a casa da família Même.

Vamos lá então, que não há tempo a perder!


Saímos da colina o mais depressa possível. Embalados com os altos e baixos, as estratégias de comer pouco, mas em várias vezes, de forma a poupar tempo e a nossa energia em alta, agouravam sucesso às nossas pretensões ciclistas. Mais de cem quilómetros! Muitos mais!

Mas...

Assim que começa o calor, chegamos a um topo com miradouro. Daqui podíamos ver que se acabavam as bonitas colinas e verdes pastos. À nossa frente um imensa planície até onde o horizonte deixava. E como qualquer planície que se prese em dia de calor, trás com ela em modo de bónus, o vento. Que já passou tanto tempo que lutámos contra ele que já nem nos lembrámos de como fazer. Esse foi o primeiro obstáculo.

O segundo, não foi um obstáculo. Foi um rapaz de dezasseis anos que mais parecia ter dez! Vinha do trabalho de bicicleta quando o começámos a ultrapassar. Ele meteu conversa, e nós demos-lhe trela. Ele indicou-nos um "atalho" e nós continuamos com ele, ao som da pimbalhada de rap francês que saia do seu telemóvel. Apreciámos a conversa e os quilómetros que pedalámos com ele. Mas quando dissemos adeus, tivemos que refazer mais estrada para repor o "atanho".


Por esta altura, já devíamos ter pensado duas vezes se conseguiríamos ou não, se valeria a pena ou não. Mas a energia e a vontade ainda cá estavam. E não apetecia muito acampar mais um dia, em especial numa zona que se avizinhava industrial e difícil.
Pedalámos até o sol tocar na terra. Andámos às voltas em busca da estrada certa, até que nos aparece um Carrefour à frente que nos chama à razão. Está a ficar de noite, não temos comida e ainda faltam vinte e tal quilómetros por estraditas que se têm revelado mais difíceis do que o esperado.

Desistimos de tentar chegar a Fonsorbes, comprámos uma pasta rápida para o jantar e lá encontrámos um camping, longe do ideal, junto a uma central eléctrica. Fica para amanhã o resto.

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Le Treil - Boisse

Queríamos sair dali o mais depressa possível. Ramos secos, cheiro a queimado, carros a passar a metros acima das nossas cabeças... Más vibrações.

O sol anunciado para o resto da semana, o Verão que finalmente nos calhou, não começa antes das 9:30. Até lá, foi dor nos pés e nas mãos, ar gélido a entrar nos pulmões e nós sempre a rezar por uma subidita que fosse para poder por o termostato a subir também.

Aos poucos a coisa lá aqueceu. Começámos a deixar de ver com mais frequência as nogueiras. Ao longe umas colinas prometiam outro grande vale. Do género do vale do rio  Dordogne, no dia anterior.


Toca subir e a descer por entre as florestas e as aldeias francesas, com a temperatura sempre a subir, lá chegámos a Luzech. Uma vila situada numa língua de terra que os meandros do rio Lot cavaram durante muito tempo. Ficámos por ali a almoçar sandocas e a partir as nozes da região anterior. Agora temos que as pôr a secar enquanto pedalamos.

A sério que parece Verão. Até tive que usar a estratégia de ensopar o lenço que protege a mioleira do sol. Na Turquia, era a Ana que pedalava com botas em temperaturas acima dos 30ªC. Agora calha-me a dose de pés quentes e peúgas fedorentas. Nostalgia por umas chanatas...

A pedalada da tarde, foi a fugir às estradas secundárias. Desta vez, fomos pelas terciárias ou caminhos alcatroados que apenas o pessoal de tractor conhece. É de facto, o caminho mais recto para chegar a Toulouse. Mas implica não tornear serras, em busca de inclinações mais suaves, mas sim, atacá-las de frente, com as mudanças mais baixas e muito suor para as ultrapassar. Foi devagar, que fomos avançando, mas valeu a pena.
Valeu a penas pelas vistas, quando chegávamos a um topo deserto e só nosso. Valeu a pena quando sentíamos o cheiro do mosto da vindima que decorre agora nesta região. É daqui que vem o vinho de Cahors e nós atravessávamos a região que lhe dá sabor, mesmo pelas estradas mais perdidas, apenas com vinhas de perder de vista por todo o lado e mansões e casarões no centro destes cultivos. Estamos em França, na época das vindimas. Não arriscámos provar as uvas que ainda pendiam, não fosse a cura um processo recente.


Sempre a descer, sempre a subir, de vez em quando lá cruzávamos uma estrada mais movimentada, mas fugíamos logo para uma via só nossa. Ás 18:30, fechámos a loja e no topo da colina, montámos mais uma vez a casa, que por estes dias é branca. Mais uma vez adormecemos a ver as estrelas, o sabor de uma brisa de Verão Outonal, ao som de um qualquer animal que ronda a nossa tenda...


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Badefols d'Ans – Le Treil

O silêncio da pequena vila no topo da colina, apenas era interrompido pelo sino a avisar das horas e pelos mochos que às vezes pareciam que andavam à luta uns com os outros. Mas ainda assim, foi uma noite descansada.

Francoi e a mais pequena acordaram primeiro. Não chegámos a dizer adeus à Ilaria e à sua filha mais velha, que ainda dormiam. Mas não nos incomodamos muito. Trocámos contactos e Francois avisou.nos que eles eram daqueles que iam mesmo visitar, e não diziam que iam só por dizer. Nós acreditámos nele.


O resto do dia, foi apenas mais um numa longa série de dias quase perfeitos de pedal pela França. Continua o bom tempo. Continua as paisagens deslumbrantes e a pacatez que apenas a visão de um rebanho de ovelhas consegue proporcionar. Não fosse a chanatas que se rompessem com o uso até ao fisicamente possível, tudo estaria bem. Porque a partir de agora, com calor ou não, é botas e mais nada!

Em Sarlat, parámos para almoçar e McComunicar.

Sarlat é conhecida pelas construções e vilarejos que estão próximos desta, mas construídos na rocha e nos penhascos que o rio escavou durante milénios. Nós não os vimos. Enganamo-nos na ponte e seguimos por mais uma secundária até nos apercebermos do erro tarde de mais. E depois de sair do vale do rio, já não nos apetecia voltar para trás. Mas não faz mal. Já que chegámos ao topo, nem mais um vilarejo completamente lindo e antigo, podemos ver as vistas.


Nem nos apercebemos das horas quando saímos das alturas. Deveríamos ter parado e começado a procurar sitio para dormir. Deveríamos ter procurado água. Feito comida. Mas não. Que nem uns principiantes com excesso de segurança, seguimos caminho até aos limites da fome, sede e exaustão. E para isso, não existe boniteza circundante que nos levante a moral.

Já tarde conseguimos encontrar água. Ainda mais tarde descobrimos um spot, que há falta de melhor teve que ser. Uma semi-floresta, junto à estrada, cheia de ramos, espinhos e pó. Ás vezes é assim.


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Saint Yrieix la Perche - Badefols d'Ans

Já sabemos o que a casa gasta no que toca aos mecânicos de bicicletas. Em especial se são os únicos das redondezas. Ainda com a neblina sobre o lago silencioso, arrumámos e despachámos tudo. Vá de empurrar a bicicleta até à loja.
 

Depois do azar de ontem, a nossa sorte começou a sorrir de novo. E de que forma. O mecânico acabava de voltar de férias. Frequinho que nem uma alface e pronto para o trabalho, despreocupou-nos logo ao avisar que não era um problema muito grave. O cabo das mudanças partiu-se e seria de rápida resolução. O resto da transmissão é que já acusa desgaste e pede substituição. Já está quase bicicletazinha. Mais um pouco e chegamos a casa.

Com a loja a encher em pouco tempo, conseguimos sair dali em menos nada, a pôr e tirar mudanças como se não houvesse amanhã. É dia de Verão! 33ºC, com pequenas serras, altos e baixos divertidos, vilas floridas e pitorescas por todo o lado, castelos no horizonte, ovelhas divertidas e vacas pastoras! AAAAaaaaaaa.... mais um belo dia na França. Pedalamos de sorriso na cara, cada vez mais para sul, até ficarmos exaustos.

Descansamos um pouco enquanto conversámos com um homem de uma pequeníssima gasolineira. Muito simpático e rijo, até nos ofertou água fresca do garrafão. Por aqui, não havia spot para parar,. Seguimos até à próxima vila e respectiva Marie.

Esta aldeola, era completamente dominada por um alto e imponente castelo e ao perguntar na Maire, dirigiram-nos para um miradouro com vistas deslumbrantes. Mas ainda faltava a água, para um final de dia descansado. Rumo ao alto, sorridentes mas exaustos, vimos um jovem casal a brincar com os dois filhos. Pedimos água. Cinco minutos depois, estávamos a montar a tenda no quintal deles, a receber tomates e pimentos da sua horta, a conversar com o Francois e a Ilaria, de Itália.


O sol a pôr-se, sentados a uma mesa com aperitivos e snacks antes do jantar. Um final de dia a lembrar um dia de Verão. Mas não era para o sol que olhávamos de boca aberta. Era para o tamanho da generosidade de estranhos e para o gigantesco castelo que ficava a poucos metros de nós.


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Les Cars - Saint Yrieix la Perche

Estava um frio tremendo de manhã! De não querer sair da tenda. De querer ficar mais um pouco e esperar pelo sol. A nossa safa, foi ter montado a tenda no alpendre da casa. Toda a relva e espaço circundante do parque estava carregado de orvalho gelado.

Com uma serra para ultrapassar, o briol desapareceu em menos nada, e podemos apreciar as vistas do topo. Os vales que se perdiam no horizonte, cobertos com uma neblina.


Continuamos na paz e sossego das estradas secundárias, até a Ana começar a notar algo de estranho com as suas mudanças. Não havia maneira de entrarem como deve ser. Parámos e tentamos perceber o que se passava, mas nada. Seguimos caminho. Elas iam entrando, mas mal. E quando chegámos a uma subida, que por acaso estava em obras e com o trânsito alternado por um semáforo, paramos e esperamos pelo verde. No meio da serra.... Numa subida....
O sinal verde aparece, pedalamos meia dúzia de metros, com bastantes carros atrás de nós, sem poderem passar, até que as mudanças da Ana encravam de vez! Na mais pesada! Não dava para sair da estrada e empurrar. De um lado alcatrão fresquinho, do outro uma valeta profunda. Atrás de nós, automóveis impacientes. Foi devagarinho, mas foi. A passo de caracol, lá chegámos ao fim do troço em construção e saímos da estrada para constatar que as mudanças não entravam.

A nossa sorte é que viajamos na Europa. Aqui é fácil. Uma cidade média mais à frente, teria de certeza algum entendido em bicicletas. só teríamos que perguntar até o encontrar. E foi cqui que a sorte acabou. É segunda-feira. Em França, é sinónimo de estar tudo fechado, incluindo a única loja de bicicletas da cidade. Só amanhã. Fomos então procurar um parque de campismo.

Saímos um pouco da cidade, seguindo algumas placas, até encontrarmos um lago. Pequeno, mas bonito. Estático. Um verdadeiro espelho, neste dia de calor, que mais parece Verão. O campismo, ficava mesmo junto a o lago, mas a estação alta acabou e agora só pró ano é que abria. Para nós tudo bem. O sitio, ficava suficientemente longe da cidade para nos sentirmos à vontade em acampar em qualquer sitio e esperar pelo amanhã.


Isto tudo, pela manhã.
O resto do dia, foi de sossego. De vez em quando aparecia alguém para correr à volta do lago, ou apenas dar um mergulho. Mesmo ao fim da tarde, já com o sol atrás da colina, uns gaiatos de biclas e trotinetes, apareceram e puseram-se na brincadeira dentro de água. O seu à vontade e despreocupação com o frio e a noite próximo, fez-nos lembrar do Tom Sawyer.



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Bellac – Les Cars

A noite foi tranquila. Muito escura, por causa da lua nova, e se acordámos durante a noite, ao ouvirmos o som do ribeiro lá em baixo, nos primeiros instantes sonolentos, achámos que era chuva. Mas não! Acordámos, relativamente, secos. Nem comemos ali.

Parámos, mais à frente, para comer um pequeno almoço, num banco de jardim, ao som do Harry Potter, nos audi books.
Eram por volta das nove e tive que parar para tirar a blusa de manga comprida. O sol, finalmente, faz-se sentir! Nem queremos acreditar! A estrada ondula no meio das árvores altas, enquanto a sombra da manhã nos resguarda do sol, e nos arrepia, para fazer lembrar que está calor, mas já não é Verão.


Por ser domingo, é dia de caça, vemos sinais a pedir para abrandar por causa dos cães, e caçadores camuflados de espingarda na mão. Os ciclistas de estrada domingueiros passam por nós a abrir, e acenam ou dizem bonjour.
Mesmo assim, chegámos ao vilarejo que tínhamos como meta chegar à hora de almoço, a transpirar do buço. E se eu transpiro do buço, é porque está mesmo muito calor!
Encontramos as casas de banho públicas, muito porcalhonas,  por sinal, abastecemos com água e um senhor, indica-nos um local melhor, lá em baixo, em vez de ficarmos ali no banco virados para a estrada.


Lá em baixo, era junto ao rio. Dos dois lados havia bancos e árvores a intercalar. Escolhemos o mais perto, e começámos a cozinhar. Os dois sentados de frente para o sol, era inevitável, que estivéssemos a torrar. As calças arregaçadas até aos joelhos, os pés descalços, e até tivemos direito a um cheirinho à águinha fresquinha que corria lá em baixo. O que apetecia mesmo era ir ao banho, mas era proibido! Do outro lado um senhor sentou-se a observar-nos. A mulher veio juntar-se a ele. Nós almoçámos, lavámos a loiça, lavamos os pés e ainda lavamos a roupa!
Seguimos viagem, com muito calor!

As subidas são cada vez mais íngremes, e as descidas mais longas. Hoje não me sinto nos meus dias e faço tudo muito devagar. Ao nosso lado só se ouvem sons de fruta e ramos a cair. As castanhas à beira da estrada estão todas esmagadas e fazem manchas de branco no alcatrão. Cheira a madeira acabada de cortar. Vemos montes de troncos, de todos os diâmetros empilhados à beira da estrada.

No meio de uma descida ia muito bem embalada, quando dois senhores de colete amarelo fluorescente me começam a fazer sinais para abrandar. Lá se foi o embalo todo. Quando li o sinal ao lado, vejo que uma corrida de bicicleta está a decorrer. Das duas às seis. Eram quatro.
Passámos por eles, e dali em diante de duzentos em duzentos metros alguém de colete amarelo, fazia controle da corrida. Claro, que levámos com palmas e incentivos ao passar. De vez em quando passava um ciclista por nós a abrir. Mas a abrir mesmo, nós íamos a trinta e pouco e eles ultrapassavam-nos e desapareciam a pedalar sem parar. Até faziam barulho, com aqueles capacetes aerodinâmicos e aquelas rodas esquisitas. Num cruzamento em que a sinalização da corrida continuava para a direita, e o nosso caminho seguia para a esquerda, uma senhora de microfone na mão meteu-se connosco, a fazer sinal para voltarmos ali e ao mesmo tempo fazia o relato à nossa passagem para os espectadores que assistiam.

Fizemos um lanchinho no meio da relva, com a nova base para mesas que achámos numa árvore, e continuámos a ver ciclistas a passar. Pareciam ser da corrida, mas aquele não era o percurso!!

Só queríamos pedalar mais um pouco antes de começar a procurar um sítio para acampar. A experiência de ontem chegou, como lição. Já vamos automaticamente em direcção à Mairie, porque as toilettes são lá perto, normalmente. Vemos uma senhora a sair de lá, o que é estranho, por causa do dia e das horas, mas aproveitei logo para lhe perguntar se havia um sítio... e a ladainha do costume. Ela não sabia, disse que não havia campismo, nem casas de banho! Desolée, disse ela. Nós também. Mas o sol ainda brilhava por isso não havia stress. Nem foi preciso avançar muito, porque uma placa com uma tenda desenhada e a indicar zona de lazer apareceu-nos à frente. Seguimos as direcções e fomos desencantar um sítio, que parece bom  demais para acreditar.


Todos os sítios parecem bons! Um lago, árvores, relvado gigante, mesa para piquenique, casinhas de férias (fechadas) com alpendre, um pequeno zoo. Um verdadeiro aldeamento turístico, fechado. Tirando as famílias a brincar no parque infantil, e os donos a passear o cão isto está vazio.
Esperamos que não haja problemas.


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Montmorillon - Bellac

A vida num parque de campismo é curiosa. Pessoas que nunca se viram antes, são como "forçadas" a uma simpatia "forçada", que alguém começou mas ninguém consegue acabar. Quantas vezes temos que dizer "bon jour", "hello" e futilidades do género? Se vimos a pessoa pela primeira vez de manhã, tudo bem. Mas se nos cruzamos com ela (porque temos a tenda junto às casas de banho) várias vezes pela manhã, qual é o limite cortês, a partir do qual podemos deixar de dizer "bon jour"? Uma pequena comunidade de caravanistas que se forma  durante um breve espaço de tempo. Uns ficam mais tempo. Outros apenas uma noite. Uns de atrelado, outros com a caravana a puxar o carro desportivo. Nunca se viram e provavelmente nunca mais se vão ver. Mas todos agem de acordo com as boas regras de uma saudável vizinhança, mesmo que algum ridículo acabe por se formar.

Nós observamos. Eles metem conversa connosco e nós respondemos na mesma medida. Mas tudo soa a uma enorme falsidade. Depois de três noites aqui, acho que já estou a ficar farto de tanta pacatez de ovelhas. Tenho saudades do campismo selvagem e de pedalar sem saber onde vou dormir e se vou ter condições para me lavar ou comer ou descansar... descansado! Sinto falta da incerteza, que um parque de campismo não me pode dar.

Pedimos um mapa a um dos caravanistas e fomos tirar fotocópias. Estamos safos dos dias de longas estradas movimentadas para o resto de França. Até ver, claro...


Quando saímos, eram quase duas da tarde. Fomos até ao local onde três dias antes parámos antes de regressar para trás. Almoçámos qualquer coisa e pedalamos mais uns quilómetros por uma estrada secundária. As colinas começam a ser mais frequentes, e hoje, no topo de uma delas, consegui ver no horizonte, os primeiros relevos. A primeira serra. Um pouco menos de planura. As coisas vão ficar interessantes nos próximos dias.

Com o entardecer já avançado, atravessámos a cidade e vimos umas placas de estacionamento de caravanas. Seguimo-las e fomos dar a um parque junto a um rio, com umas mesas para ali espalhadas e umas quantas caravanas. Deve ter sido a segurança que a visão das caravanas nos proporcionaram, que nos levou a escolher aquele sítio para pernoitar. Nos arredores da cidade, com os nativos a passearem os seus cãozinhos e um carro a atravessar a estrada de 5 em 5 minutos. Onde é que tínhamos a cabeça, quando começamos a preparar o jantar, descansados da vida por já termos encontrado um poiso?


Debatemos o assunto, e arriscámos montar nas biclas e procurar outro sitio, do que ter uma noite ansiosa devido a qualquer barulhinho de passos ou carros. Claro que, quando voltámos ao pedal, já era de noite e após uns minutos, já fora da cidade, não conseguíamos ver nada à nossa frente, quanto mais visualizar potencias locais de campismo selvagem!

A pedalar de noite, à procura de sítio onde dormir, nos meio de florestas e colinas. Finalmente regressámos à incerteza do pedal!

Um caminho de terra batida desviava-se da estrada principal. Subimo-lo um pouco, e na curva deste, junto a uma sebe, montámos a casa amarela.

Lá em baixo, o som do rio que criou estas colinas, embala-nos...


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Montmorillon

Montmorillon, a cidade da escrita.

Por todo o lado anúncios de um salão de escrita independente.. Livrarias antigas e centros de caligrafia por todo o lado, divididas por temas. Mas não nos perdemos muito em visitas pela cidade. Embora o Verão tenha finalmente chegado a nós, ficámos pelo parque de campismo, durante dois dias.


Não sem fazer nada. Se estamos na cidade da escrita, não foi por acaso que nos deu a gana e demos um tudo por tudo para tentar pôr o blogue em dia. E enquanto um escrevia e actualizava, o outro lavava e cozinhava.

De manhã, ainda com o orvalho, íamos de bicicleta buscar as baguetes quentinhas à padaria. Por alguma razão, lembrei-me do Natal em Gonfaron. O resto do dia, era na sala comum do parque de campismo, que de comum não tinha nada pois estava sempre vazia.

Lavámos a tenda, a roupa, fizemos a manutenção ao fogão e às binas.

Os dias passaram soalheiros e sem incidentes. Um pouco de paz de espírito também sabe bem de vez em quando. Não éramos os únicos. Alemães, Holandeses, Ingleses e Franceses. Todos de caravana ou atrelado a passar os dias a cozinhar e a ler ao sol. Este não é como o parque de campismo de Vila Nova de Mil fontes. Aqui, lembramo-nos mais do campismo do Coimbrão. É a versão francesa, mas mais barata que a portuguesa.


Vimos mais ciclistas a passarem por cá. Um casal que reparámos no nosso primeiro dia de manhã, enquanto eles tomavam o pequeno-almoço e fumavam uma cigarrada antes de pedalar.
Um senhor, entre os sessenta e setenta, que pedalava sozinho pela segunda vez desde a sua casa até Lourdes, no sul. 700km no total. Em sete ou oito dias! Era um valente, com um apoio lombar sempre posto e a oferecer-nos nozes que apanhou durante o dia. Antes de partir, a Ana insistiu para que levasse umas tâmaras.

Nada de quilómetros estes dias, mas serviu para pôr-mos a cabeça no sítio e para abrandar a viagem um pouco. Estamos a ir depressa demais!


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Jouhet – Montmorillon

Estava uma neblina tramada quando o sol acordou, e não levantou até ao meio da manhã. Nada de muito grave e ainda nada de muito frio. Traz à memória dias do Inverno passado. Vamos ver...


Chegámos a cidade "grande" de hoje. Não é assim tão grande, mas depois de tanta vilazita... Esta aparentava ser especial. Anunciada como a cidade da escrita e da leitura, o centro histórico repleto de lojas de livros, caligrafia, alfarrabistas e montras com volumes em segunda mão. Por aqui respira-se cultura.


Há dias assim. Decidimos tirar o dia. Não para ficar parados. Apenas para não pedalar muito. Iríamos passar a manhã num spot com Internet, onde pudéssemos escrever um pouco e pôr a nossa casa a secar. Pelo menos, era esse o plano. O problema, é que ao entrar numa rotina de pedalar o dia inteiro, durante dias seguidos e de repente alterarmos o esquema, ficamos desnorteados. Deve ser a falta de exercício físico e de hormonas atléticas. Precisávamos da nossa dose de quilómetros, para sentir que avançamos algo. Que produzimos. Quando isso não acontece, a moral e a vontade esfumam-se... Quem é que quer pedalar agora?

O dia até prometia e ao sair do Eclerc da cidade da escrita, nada fazia prever que não seria... mais um dia. Mas há dias assim, e após treze quilómetros, o suporte dianteiro da bicicleta da Ana, problemático e já arranjado e desenrascado uma série de vezes, voltou a desmontar-se. Depois de termos voltado a colocá-lo com parafusos novos e tudo, na casa do André e da Catarina, o sacana decidiu sair do lugar, outra vez.

Em silêncio, sentei-me no chão, com as ferramentas ao meu lado e a fita adesiva "pau-para-toda-a-obra". Sem pensar muito, comecei a rever e a aparafusar porcas e parafusos, a endireitar barra de alumínio fragilizadas e a colar partes desfeitas. Já saímos dos países onde encontraríamos um novo suporte dianteiro em qualquer oficina de vila. Por agora ficou arranjado, mas vai ter que se amanhar até casa! Dê por onde der!

Voltámos para trás. Porque ás vezes vamos demasiado rápido e nem tudo corre como esperado. Voltámos os treze quilómetros para trás, até ao camping da terra das letras e da escrita. O ponto alto, foram os preços absurdamente baixos!

Comemos uma sandes de atum para o jantar, forçámos um sorriso com o Seinfeld e fomos para a cama, sem sequer pensar ou decidir, quantos dias vamos aqui ficar.

Foi assim o nosso primeiro dia de Outono.


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Le Petit Pressigny – Jouhet

Ouvi umas folhas a serem pisadas lá fora. Acordei e fiquei à escuta. A Ana acordou também, mas fiz-lhe sinal para não se mexer... Acordei outra vez. Estava a sonhar que estava a acampar junto ao lago. Mas o sonho era real. Tirando os passos. Não se ouviu nada durante a noite. Não choveu e uma brisa manteve a tenda seca e arejada.

Enquanto comíamos o muesli, o fiscal veio ver quem éramos e averiguar se acabáramos de chegar ou se estávamos prontos para partir. Não havia problema nenhum em termos passado ali a noite. Cada vez gostamos mais desta França do campo.


Sob um céu que parecia querer descarregar a qualquer momento, pedalámos até entrar num vila que avisava na placa ser uma das mais bonitas de França. Por acaso também foi aquela que escolhemos no mapa como poiso onde almoçar. Fomos até ao pátio da marie, cozinhámos e escrevemos um pouco (enquanto o outro dormitava de barriga cheia). A seguir, fomos passear pela vila. Parece que tudo aqui é bonito. Parece que todos se esforçam por ter flores e canteiros arranjados, que tudo tenha personalidade e que seja característico da terra.


Sem pressas, pois parece que as nuvens estão secas, continuámos durante a tarde, por entre as quintas e as colinas, que aos poucos vão ficando mais altas e frequentes. O rio da vila florida, criou escarpas e desfiladeiros. Pequenos, mas estão lá. A geologia vai ficando mais interessante e variada, à medida que saímos do Vale do Loire.

Fomos até outra marie, pedir autorização para encher os cantis nas suas torneiras. Saímos de lá com as direcções do campo de futebol, onde podíamos montar a tenda e passar a noite. É mesmo fixe pedalar neste país. Vive la France!


Metemos o estandarte no alpendre dos balneários, mas pelos vistos ia haver treino. Mudámos as coisas de sítio, e jantámos a ver as bolas a rolar e a dar mais umas goladas no vinho espirituoso que o Sebastian nos ofereceu.

Mais um dia, mais uma pedalada. Aos poucos ficamos mais perto do nosso sul. Aos poucos, ainda muito pouco, os Pirinéus vão entrando nas nossas mentes. Mas com calma. Ainda falta muito até lá chegar, e não é como se nunca os tivéssemos atravessado.


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Tours – Le Petit Pressigny

O despertador tocou às seis e meia, para podermos dizer adeus ao Damien, que ia para o trabalho às cinco para as sete. Voltámos para o sono logo a seguir durante mais meia hora...

Com um pouco menos de ramelas, tomámos o café com leite e a conffiture caseira da Elodie. Arrumámos as tralhas, tirámos as biclas da cave e voltámos ao nosso elemento. Mesmo depois de tanto tempo e tantas vezes, continua a ser difícil dizer adeus.

Atravessámos o Loire e o Cher, por entre o centro da cidade e as vias rápidas. É uma grande cidade apesar de tudo, de carro ou de bicicleta, continua a ser um stress sair dela.
Mas não nos focámos muito nas voltas e reviravoltas em busca da estrada certa. Se tínhamos que andar para trás, virávamos e não se falava mais nisso. Acabámos por ir saindo, o tráfego acabou por ir diminuindo, e a meio da manhã, já pedalávamos na D50 secundária, com o campo ao nosso redor, e de novo munidos com um mapa detalhado até Limoges e fotos do mesmo para o resto de França. Vamos tentar aproveitar esta cartografia toda ao máximo.


Um dia de viagem como muitos outros. Sem grandes colinas ou serras no horizonte, nem demos pelo tempo a passar. Já não nos preocupamos com a água para as nossas necessidades. Quando paramos para comer, procurámos as casas de banho públicas. Em melhores ou piores condições, encontrámos sempre uma nas vilas.

Quase não ouvimos ou vimos automóveis desde que saímos de Tours

Demos o dia por terminado ainda antes das cinco, já com sessenta e poucos quilómetros nas pernas. Não era preciso mais. Na aldeia onde estacionámos, fomos ver se alguém da Marie nos indicava um local onde acampar. Mas estava fechada. Assim como todos os estabelecimentos. Parece que à segunda-feira ainda há muita coisa que não chega sequer a abrir.

Enchemos os cantis e procurámos o parque de merendas. Este tinha um lago, onde pelo que parece, é popular a pesca à truta.


Enquanto escrevo isto, alguns cavalos relincham ao longe e ouço os peixes (trutas?) a saltar no lago, e sobre nós, a proteger-nos de uma eventual chuvada, o salgueiro inclina os ramos para as suas folhas puderem beber a água do lago.


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Tours

As diferenças vão-se esbatendo aos poucos, e nós,  retornamos ao nosso estado e hábito português. Com o Damien e a Elodie, os pequenos-almoços assemelham-se cada vez mais ao despertar nacional. Pão/torradas, doces e manteiga, café com/e leite. Será que comemos mesmo aquelas batatas cozidas, salada de tomate e pepino e frango assado na Ucrânia? Ou o kavalti vasto na Turquia?


Estamos em Tours. Em conversas com o André e a Catarina (Saint Albans), já antecipávamos castelos e fortalezas por todo o lado. Mas nada como o que vimos. França está mesmo preparada para os turistas, e aposta forte no turismo medieval. Nós tivemos sorte, pois no fim-de-semana que aqui passámos todos os museus e atracções medievais eram gratuitos e havia uma vasta oferta de performances e artes de rua. Com tanta coisa para ver, a dificuldade era em escolher. Vivam as jornadas do património!

No sábado, o dia mais cinzento, ficámos pelo centro da cidade. Os quatro fomos dar uma volta, por entre as ruelas do centro histórico, visitámos o mercado, passámos por uma normal feira de antiguidades e uma exposição. Quando a chuva caía, abrigávamo-nos na catedral, ou debaixo da lona do restaurante chinês onde almoçámos. De vez em quando, descobríamos uma familiar concha no chão, não por ser o Caminho de Santiago. Aqui é o caminho de São Martinho. É aqui que jazem  as suas ossadas.


Sem grande pressas, o passeio durou todo o dia. As ruas estavam cheias de gente, e à tarde conseguimos riscar da lista o museu das belas artes e uma casa de arte contemporânea.

No domingo, fomos piquenicar junto aos castelos. Visitámos dois. São às dezenas por aqui, por isso se os quisermos ver a todos temos que voltar. O primeiro, embora lhe chamassem de castelo, mais parecia um daqueles palácios que vimos na Polónia e Alemanha, onde também teimavam em chamar-lhe castelos. Onde estão os muros de pedra e as estruturas defensivas? Onde estão os fossos? Um lago espelhado que embeleza o que já é belo, não nos pareceu uma medida defensiva adequada.


Com uma visita guiada muito bem organizada e planeada, foi possível apreciar o seu interior e exterior. Sumptuosas salas dos convidados, quartos para os reis e toilette com buracos até às profundezas!
Um passeio domingueiro pela vila, para abrir o apetite e lá fomos estender o pano indiano que eles trouxeram da sua viagem. De bicicleta fazemos piquenique, mas com amigos destes, junto ao rio e com um castelo a dominar as vistas de Chinon, não é todos os dias.


Voltámos a atacar as ruelas da vila e a carregar sobre o castelo. Este já tinha muralhas!
Com uma visita interactiva e tecnologia a misturar-se com o antigo, parece que somos transportados para a época. Pelos vistos, o castelo de Chinon, foi um local importante para a história de França. Até a Joana D'Arc por aqui fez história.
Sempre na conversa, e um pouco na galhofa, trabalhámos os músculos das pernas a subir e a descer escadas, a visitar masmorras e torres, a descobrir pequenos cantos e recantos do castelo e a aproveitar o sol domingueiro.

Já em casa, a conversa à mesa, os vinhos da região, os queijos no fim da refeição, os aperitivos ao início, a música, as histórias orientais da Elodie e do Damien... Estamos em Tours e eles são os nossos amigos daqui.




...há um ano atrás: Quirima

Savigné-sous-le-Lude – Tours

"Acorda...", diz-me a Ana baixinho. "Está trovejar e relampaguear há algum tempo. Achas que devíamos mudar a tenda de sitio?" Com as ramelas do sono, mudámos a tenda para junto das bicicletas, debaixo do alpendre dos balneários. Dez minutos depois, uma tromba de água e o ribombar dos relâmpagos mesmo por cima de nós. Eram cinco da manhã...

Meio a dormir, meio acordados, com o som da tempestade lá fora, ficámos no limbo do sono até a chuva parar e ser altura de arrumar e seguir viagem.


Se ontem apanhámos a estrada chata para papar quilómetros, hoje o dia ia ser só nas estraditas secundárias. Que maravilha!

Com as nuvens cerradas e um bafo de calor no ar, fizemos caminho durante a manhã, por entre aldeolas e florestas, com um carro a passar por nós de dez em dez minutos e uns veados a atravessarem a estrada, de vez em quando. Não parámos muitas vezes antes do almoço. A Ana ia, como habitualmente, à frente e, eu atrás, a saborear a paisagem e a ouvir o audiobook do Harry Potter.


Metemos gasolina e parámos num parque de merendas, com casas de banho, para cozinhar um risoto de cogumelos e courgete, com umapéritif de patê de coelho. Estamos em França. Onde está a dificuldade?

A tarde foi um pouco mais acelerada. Em modo zen, andávamos nas mudanças altas em busca de algum fresquinho para combater o calor e para não entrarmos numa grande cidade muito tarde. A experiência diz-nos que depois de conseguir entrar, ainda temos que andar às voltas em busca da rua certa. E assim foi.
Combatemos o tráfego à entrada, as vias rápidas do centro e subúrbios e de mapa em mapa, lá encontrámos a rua dos nossos anfitriões.

A Elodie é terapeuta de arte, e o Damien professor da primária, já estavam à nossa espera. Enfiámos as biclas na cave e carregámos os alforges até ao quarto andar.
Ambos vêm da terra que acabámos de pedalar, a Normandia e pela obra do destino vieram parar a Tours. Os dois ainda tinham as memórias frescas da sua última viagem ao Nepal e Índia, por isso a conversa fluia nessa direcção. Como será pedalar nesses países? Se a nossa ideia original se tivesse mantido, já estaríamos por lá, non?


Demarrou-se vinho, comeram-se aperitivos, manjou-se um curry indiano. E a seguir... os maravilhosos queijos!

...há um ano atrás: Quirima

Ballée – Savigné-sous-le-Lude

Frko durante a noite, junto ao pequeno riacho. Mas menos frio do que a noite anterior.  Dois dias sem chover, uma noite sem vento e uns quilómetros mais para sul do que a noite passada, ajudam as sonecas serem mais quentinhas. Seja como for, não há que enganar, o Verão que não passou por nós e já se está a ir embora.

O orvalho e as sombras das árvores fez demorar a partida. Só lá para as dez da manhã é que as chanatas tocaram os pedais.


Depois da agradável surpresa de ontem, ao pedalar pelas estradas secundárias, optámos por deixar as principais e nacionais para os carros. De manhã, para fazer render as pedaladas, fomos para a estrada chata que rápida e aborrecidamente nos poria em Tours. Depois do almoço, virámos para o campo.

Enquanto um foi às compras o outro ficou a tomar conta do estendal. Em questão de minutos montamos todo o estaminé de tenda, toalhas, lona e panos que secavam ao sol, pendurados numa rede e estendidos no parque de estacionamento.

Mesmo no mapa, a estrada é uma recta. Não há como enganar. Carros a voar, poeiras dos camiões e abelhas a entrar no decote da Ana e a picá-la nas mamocas! Que treta de estrada!
Mas nem tudo é mau. Depende da perspectiva. Estamos a pedalar no interior de França, prestes a entrar no Vale do Loir. É o segundo dia sem chover e o céu está azul, com o sol a aquecer-nos. Os alforges estão cheios de comida, das quais uma vinhaça e um patê de coelho, ambos caseiros e ambos oferecidos por um simpático senhor. Não nos podemos queixar.

Almoçámos antes de chegar à cidade de La Fléche. Nome engraçado. Lembro-me de há dias ter passado por uma placa a assinalar um vila com o nome de São Jorge qualquer coisa, o Arqueiro. Agora passamos pela flecha dele.

A segunda parte do plano entrou em acção. Virámos para fora da estrada principal e a diferença foi imediata. Como que uma enorme ciclovia só para nós. O calor aumentou e até conseguíamos ouvir os passarinhos a cantar! O vento constante durante a manhã, era quebrado pela floresta cerrada que estávamos a atravessar. De repente, uma chamada de atenção da Ana. "Olha Alexandre! São javalis!". Grandes como porcos, super peludos que largaram a correr bosque fora assim nos nos sentiram. Passámos por eles duas vezes. Dois adultos à primeira e uma ninhada e a sua mãe à segunda. Havia uma rede entre eles e nós, por isso não estávamos preocupados. Como seria acampar nesta floresta? Com uma estrada só para nós, podemos pedalar lado a lado e conversar enquanto pedalamos.


Outro luxo que não encontrámos ((ou reparámos) quando atravessámos França da primeira vez, foi o facto de em qualquer vilazita perdida no meio do nada, existirem casas de banho publicas. Acabaram-se, de certa forma, a busca de gasolineiras ou as visitas à Natureza. Estamos a atravessar regiões imensas de campo e florestas e podemos estar descansados, porque na próxima vila, vamos encontrar um fácil acesso à água. E mais! Ao encher os recipientes de água, para mais uma noite de campismo e regressar à estrada, fomos explorar a sala de festas e a marie da vila (junta de freguesia). Podia ser que um local para montar a tenda fosse encontrado, mas encontrámos algo mais. Uma senhora ao sair da marie, foi interceptada por nós. Perguntámos-lhe logo se existia algum sítio na vila onde colocar a tenda. A senhora indicou-nos o campo de futebol, onde havia montes de espaço e teríamos acesso a água. Mas que bem, nem precisámos de pedalar mais, e tínhamos casa de banho.


Montámos a tenda junto aos balneários, cozinhámos no alpendre, lavámos roupas e panos e jantámos a ver o pôr do sol sobre o campo de futebol, com uma garrafa de vinho licoroso ao nosso lado. Vivemos tempos felizes em França!


...há um ano atrás: Quirima

Landescherie – Ballée

Não choveu. Mas foi das noites mais frias que temos memória. Rivalizou com a noite do gelo, também em França, mas no final do ano passado. Não chegou a tanto, mas de vez em quando lá se acordava com o frio e de manhã, ninguém queria sair da tenda para enfrentar o orvalho que cobria tudo, incluindo a nossa casa amarela. Mas teve que ser...

Regressámos por onde viemos, para reencontrar a estrada agitada. Mas antes de lá chegar, cinco minutos para apanhar amoras selvagens. Um complemento à bucha da manhã.


Em menos nada, afugentámos o frio matinal com umas pedaladas valentes numa estrada chata. Recta perfeita que subia e descia os montes. O sino tocava o meio dia quando entrámos em Laval.
Parámos no banco de jardim, no centro da cidade. Comemos as amoras, mas sem supermercado à vista, precisávamos de mais combustível!
Por todo o lado estudantes. Mas mesmos muitos. Bastava olhar para uma paragem e algumas centenas se podiam ver, a conversar ou a fazer coisas de estudantes.

A  cidade acabou por ser maior do que o esperado e connosco mesmo no centro, lá usámos o sol para nos orientarmos dali para fora. A certa altura, parámos para tirar o nosso "mapa", com os nomes das cidades que deveríamos passar. Um ciclista pára junto a nós. Uma bicicleta mais pequena e atrelada à dele transportava o seu filho. Perguntou se precisávamos de ajuda. Dissemos-lhe o nome da terreola a passar, e ele ofereceu-se para nos mostrar o mapa. A casa dele era a cinco minutos dali. Achámos bem, por isso seguimo-lo para fora da confusão do centro.


Entrámos no pátio da casa dele, e numa mesa o mapa foi aberto. Conversa para aqui, conselhos de melhor rota para ali e lá fomos desvendando este senhor. Descobriu o cicloturismo  há dois anos e juntamente com a mulher e o filho de quatro anos, andavam a passear por França sempre que tinham tempo. Não apanhámos as profissões dos dois. Talvez o tivéssemos descoberto quando ele nos perguntou uma e outra vez se queríamos almoçar com eles! Perguntou uma vez, e foi tirar fotocópias do mapa. Voltou e perguntou outra vez. Nós encavados com timidez dissemos ser melhor voltar à estrada. Trocámos contactos, ele ainda foi connosco de bicicleta para nos mostrar a estrada certa e dissemos adeus. Cinco minutos depois estávamos abismados com a nossa reacção. Porque raio é que dissemos que não?!? Porque é que recusámos um convite para um almoço generosamente oferecido por uma família francesa? De ciclistas! Nunca o saberemos. Fomos comprar os ingredientes para o almoço ao Lidil, tipicamente alemão.. Toma lá que já levaste!

De novo na estrada, mas munidos com um mapa detalhado até Tours e com um plano de evitar a recta chata que nos levaria até lá. Virámos para as estradas secundárias do campo Francês. Foi o melhor que podíamos ter feito.
Nada de grandes colinas. Apenas pequeninas. Nada de camiões a voar ao nosso lado. Tínhamos as estradas por nossa conta e as vilas que atravessámos eram mesmo ao nosso gosto. Pequenas, meio desertas mas cheias de pinta e recantos.


E numa das vilas descobrimos um desses recantos. A vila parecia abandonada, mas não sem vida. O sol brilhava com força suficiente para ameaçar o suor e junto ao salão de festas (que deve ser coisa do tipo Casa do Povo, versão francesa), um enorme espaço, com umas casas de banho públicas e lavatório. Até tinham canteiros de flores a enfeitar o espaço. Eram quatro da tarde. Despejámos as tralhas húmidas da noite anterior no pátio, estendemos a tenda ao sol, lavámos roupa e até tomámos banho! Estivemos por ali uma hora e meia. Nunca apareceu ninguém, as roupas que lavámos estavam secas e com o corpo mais cheiroso e os cantis cheios, fomos cheios de boa disposição para o campestre em busca de um recanto quentinho onde montar a tenda.

Passámos uma terreola e virámos para um campo lavrado. Já a empurrar as biclas em busca de terreno plano para a tenda, um carro pára à entrada do campo e um homem sai de lá e dirige-se a nós. Antes de ele falar, perguntámos logo se haveria problema em passar ali uma noite e abalar de manhã. Ele respondeu que ali, não. Havia um sítio melhor lá atrás na vila, com acesso à água se quiséssemos. Tinha-nos visto entrar por ali, percebeu as nossas intenções e veio ajudar-nos!

Guiou-nos até ao local, mas uma vez lá indicou-nos outro ainda, um pouco mais à frente, caso este não fosse do nosso agrado. Fomos tentar o segundo, porque este era mesmo no centro da vila.

E assim foi. Tínhamos uma mesa e uns bancos. O rio estava ao nosso lado e na outra margem umas casas. Já de tenda montada e de fogão acesso, eis que o mesmo carro regressa. O homem sai do carro e entrega-nos uma garrafa de licor de pêssego caseiro e paté de coelho, também caseiro. Ao nosso ar incrédulo responde, bem vindos a Ballée!

Nesta noite, não tão fria como a anterior, os nossos espíritos foram aquecidos com as generosidades de estranhos, com a beleza e paz da França campestre e com a pinga caseira que serviu de comprimido para dormir!


...há um ano atrás: Quirima

Le Gueperoux – Landescherie

Até fez confusão. Há quanto tempo não dormíamos num local tão silencioso. Nem os grilos perturbaram e apenas o bater suave de um chuvisco antes de adormecer e a ocasional maçã a cair se faziam ouvir. Uma paz de espírito e de noite.

Como não havia necessidade de nos fazermos explicar, caso aparecesse alguém, arrumámos a casa, sob o céu nublado do costume e fizémo-nos à estrada. Sem maçãs nos sacos. Ainda estavam verdes!

Porque tinha a esperança de que o dia mudasse, arrumei as botas e calcei as chanatas. Desde a Ucrânia, talvez, que não tocavam nos pedais!
Mas após estacionarmos no supermercado para a bucha da manhã e as compras do dia, a chuva recomeçou e não dava sinais de parar. Mas lá ao fundo, viam-se umas abertas e uma promessa de céu azul. As chanatas continuaram nos pés e nós não parámos até chegarmos a Fougéres. Ainda nem tínhamos lá entrado e já as placas castanhas nos avisavam que era em Fougéres que o maior castelo medieval da Europa existia. Porquê na Europa? Será que existe um maior, fora da Europa? Existe época medieval fora da Europa? Hum....


O castelo não deu sinais, mas ao seguirmos as direcções para lá chegar, um banco, um vale que era um autêntico jardim, e os edifícios do outro lado, se calhar da época medieval também, obrigaram-nos a parar. Foi ali que fizemos o almoço e foi ali que sentimos o sol a dar sinal! Finalmente calor!
A barriga repleta de couves-de-bruxelas e arroz, o corpo quente do sol. A bela da vista sobre a cidade.... Os prazeres de bicicletar no sul da Normandia!

Ainda antes de sair da cidade, procurámos a MacNet. Estava curiosamente vazia! Com apenas dois rapazes a fazerem a mesma coisa que nós procurávamos. Internet! Orientámos as nossas estadias em França, lemos e respondemos aos emails, actualizámos o blogue. Actualizar não é a melhor palavra, porque estamos em França, mas o blogue acabou de entrar na Alemanha... Mas estamos a tentar!


De novo na estrada, ainda tivemos que pedalar uns valentes quilómetros até a um ponto de fácil acesso a água. Enchemos cantis, garrafas e sacos com o precioso líquido e vai de procurar uma pernoita num campo.

Procurámos, procurámos, virámos para as estradas secundárias, virámos outra vez, entrámos num caminho e virámos para outro que era só relva e mato, com umas linhas e estacas a separar o caminho dos campos lavrados ao seu redor. Vimos que o caminho ia dar a uma cancela de mais um campo e pareceu-nos ser pouco utilizado. Decidimos ficar mesmo ali. Na curva junto ao caminho.


Ao encostar a bicicleta a uma das estacas, ligadas por um fio, um dor súbita nas mãos! Um esticão nos braços e um safanão violento nos pés! ZZZÁÁÁSS!!! Aquele fiozinho a ligar as estacas, o metal da bicicleta e as chanatas de sola fina, uniram forças e largaram uma descarga eléctrica em cima de mim! Nunca tinha sentido algo assim, e agora já sei o que sentem as pobres vaquinhas ao chocaram contra eles. Ficámo-nos pelo susto e pela nova experiência para não mais repetir.

Oh, abóbada celeste estrelada! Finalmente apareces em toda a tua plenitude!

E de novo, o silêncio do campo...


...há um ano atrás: Quirima

Le Haute Guette – Le Gueperoux

Com os carros sempre a passarem a alta velocidade a poucos metros do armazém, o vento em modo crescendo durante a noite a ameaçar fazer voar a tenda e o nosso receio em que aparecesse alguém por ali, a noite não foi das melhores...

Mas a manhã finalmente chegou, chuvosa, ou não estivéssemos na Normandia. Uns bonjours ao pessoal que entrava ao serviço numa perfeitamente normal segunda-feira e se deparava com duas bicicletas e um tenda pelo caminho.

Saímos dali e fomos fazer espera à porta da Decatlhon até que abrisse, para comprar um conta-quilómetros para a bicla do Alexandre, que desde a Holanda que só dá horas.

Com o tempo sempre a borrifar-nos a cara e a obrigar o já normal despe/veste impermeáveis, fomos devagarinho pedalando ao longo da baía do Mont Saint Michael.
Antes de lá chegarmos, parámos num vilarejo, comprámos umas baguetes rústicas deliciosas, cozemos uns ovos, adicionámos umas rodelas de tomate, azeite no pão, oregãos e cebola... hum hum! Uma delícia de almoço! Ao nosso lado, uns gaiatos que voltavam de autocarro para a sua escola e corriam e saltavam no recreio.


Aos poucos, lá se ia mostrando pelo meio dos montes e dos campos de trigo. As famosas ovelhas pré salée a pastarem mesmo ali à beira. Uma montanha no meio do nada plano da baía. Não parecia real. Era como se tivesse caído no meio da paisagem francesa, uma montanha com um castelo mágico no topo.
Mas era real. E ia crescendo à medida que nos aproximávamos dela. Crescia a sua imagem no horizonte e o volume de tráfego na sua direcção. França tem uma versão de Fátima, a cidade de Lourdes. Mas o Mont Saint Michael também atrai romaria. Até existem travessias guiadas que começam no norte da baía e a atravessam durante a maré baixa, até ao Mont.


Fizemos turnos assim que lá chegámos. Um ficava com as biclas cá em baixo, às portas do enorme conto de fadas tornado realidade, o outro ia ver como era o conto de fadas por dentro.
Facilmente uma pessoa se perde nas suas ruinhas e gigantesca Abadia. Facilmente se perde um dia inteiro a apreciar o seu interior ao pormenor e as vistas privilegiadas da montanha mágica. Mesmo com a enchente absurda de turistas de todas as nações, grupos escolares, casais românticos e os normais curiosos, é possível perceber que não existe outro local como este. É dgmasiado extravagante na sua dimensão para nos apercebermos à primeira. É demasiado deslocado da paisagem para não se fazer notar... Dissemos adeus, mas queríamos mais.


De volta ao mundo real, parámos no supermercado e lá fomos encontrar o casal de ciclistas que tínhamos cruzado à dois dias atrás, à saída de Cherbourg. São de Inglaterra, apanharam o ferry para Cherbourg como nós e estão a fazer o Tour da Normandia.

Saímos da cidade, passámos por uma vila, virámos numa estrada campestre, levantámos o arame farpado e montámos a casa amarela num pomar. Longe de estradas e surpresas, talvez aqui possamos descansar devidamente, mesmo com a chuva que ameaça.

Ao som de maças a cair, adormecemos...



 ...há um ano atrás: Quirima

Le Grand Heugueville – Le Haute Guette

Ao voltar ao selim, os nossos pensamentos estão em como será o dia de hoje. Com muita chuva, apenas alguma, borrifadas de vento molhado na cara, granizo, chuva intensa, ou apenas gotas grossas. Que vai chover, já nós apercebemos. O caminho é para o sul e isso acalenta a esperança de tempo mais enxuto.


É domingo. Um acrescento à paz e sossego das estradas da Normandia. Voltámos à estratégia dos nomes das terreolas escritas no papel, como mapa. Mas se calhar até seria interessante enredar por estradas secundárias. Mas não hoje. Queremos o caminho mais rápido e directo para sair desta chuva.

O vento presenteou-nos com uma aberta durante a hora do almoço. Com o parque de estacionamento do supermercado vazio e um sol forte a encher-nos de vida, estendemos tudo e mais alguma coisa ao sol, por cima dos carrinhos das compras. Roupa, botas, lona e tenda, panos e trapos.


Com mais ou menos estradas inclinadas, lá fomos avançando para sul. O mar voltou a aparecer no horizonte. Quando chegámos a uma cidade maiorzita, decidimos  ficar por ali, para poder averiguar se vale a pena comprar ou não melhor equipamento para a chuva e Inverno futuro. Pelo menos um novo conta-quilómetros para a bicicleta do Alexandre, que o dele já pifou. Assim como a sua corneta buzinadora, que foi vencida pela ferrugem de tantos meses de chuva.
Encontrámos um padeiro aberto ao domingo. Fomos logo abastecer-nos de umas baguetes.


Entrámos no parque industrial. Ficámos entre um armazém e uma encosta, debaixo de umas escadas. Um abrigo satisfatório, para o tempo austero que nos rodeia.


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Cherbourg – Le Grand Heugueville

Estamos na Normandia. Dia de nuvens e ameaças de chuva e chuviscos. A Noèmie ia trabalhar muito cedo e como nos queríamos despedir dela, vá de acordar cedo com ela também.

Tivemos que ultrapassar uma colinazorra para sair de Cherbourg, que devia ser irmã das colinas de Inglaterra. Mas ao sair dela, a paisagem mudou para uma confortável, familiar segurança e prazer. As altas sebes e arbustos que delimitavam as propriedades Inglesas, deram lugar a vastos campos, com uma cerca ou linha electrificada. Não impedem a vista e conseguimos ver para onde vamos e o que vem a seguir.


As vilas e cidades começam a aparecer com regularidade ao longo do caminho. Nada de longas extensões de estrada sem nada. O frio matinal deu lugar a um calorzinho que já não nos recordávamos desde... sei lá! Casacos fora! Mas não durante muito tempo. Ao parar junto a um lago para almoçar, começa a borrifar.

A chuva "molha-parvos" continua durante a tarde, deixando-nos inseguros. Vestimos ou não a roupa impermeável? Está demasiado calor para a vestir... Vê-se logo que é a primeira vez que pedalamos na Normandia. Em menos de nada, uma carga de água brutal deixou-nos, completamente, ensopados. Tudo a pingar! E quando procurámos abrigo (já em vão) e a intensidade da chuva acalmou um pouco para voltarmos à estrada, pumba! Outra tromba de água diluvial. Já tínhamos os impermeáveis vestidos, mas tal era a força que em trinta segundos a estrada tornou-se um rio e tivemos que encontrar um parco abrigo que nos obrigava a ficar de pé para não levar com tanta chuva. Mas também estava vento... Estamos a experienciar a verdadeira e típica Normandia! Não podíamos sair daqui sem o sentir, claro! Uma experiência muito enriquecedora...

Quando finalmente parou de vez, lá tentamos secar um pouco pedalando.


Atravessámos uma feira. Barracas, vendedores aos gritos, tudo e mais alguma coisa nas bancas, carroceis e diversões, montes de lixo no chão. Uma feira... que afinal, até se parecia bastante com as nossas. Saímos o mais rápido possível daquela acumulação de pessoas e estímulos, por entre as filas de carros a tentar estacionar e a lama que traziam, nos pneus, os que saiam do estacionamento. Regressámos à estrada e no primeiro parque de merendas que nos surgiu, no meio de uma longa recta que atravessava uma floresta, decidimos parar pelo dia. Montámos a lona sobre a tenda e fizemos uma espécie de barreira contra o vento e futura chuva durante a noite. Esticámos cordas para todos os lados, para fixar todas as coberturas e por a roupinha toda a "enxugar" (que não enxuga nada durante a noite, mas para dentro da tenda não pode ir!). Sentíamos um pouco de insegurança em relação ao sítio,  mas logo o cansaços e a molha nos venceram, mal caiu a noite.



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