Rhodes

Sem grandes pressas, e cansados do sono, entrámos na cidade velha de Rhodes...

Saímos das bicicletas e, calmamente, passeámos pelas ruas estreitas com milhares de anos, mas que podiam ter sido feitas ontem, de tão vivas que eram. Sentia-se que aquilo não era uma ruína. As pessoas ainda viviam e usavam todos os cantos e recantos da antiga metrópole do Colosso de Rhodes. Os bairros medievais misturavam-se com as construções judaicas e com os restos da colonização Turca. O sol lá ia entrando pelos buracos que encontrava ao mesmo tempo que os embriagados adolescentes saiam dos bares, onde ainda se ouvia música.


Passeámos ao acaso até nos cansarmos e ficarmos satisfeitos. Encontrámos umas escadas e enquanto a Ana tentava pôr o sono em dia, o Alexandre avançava com a leitura do Senhor dos Anéis.

Combinámos com a Gratianne às nove da manhã, na antiga ponte medieval, e lá apareceu ela a correr passado um pouco. Enfermeira chefe numa clínica privada, a Gratianne conhece bem os cantos à casa de sitios tão diferentes como Madagáscar ou Portugal, onde viveu dois anos, e vai fazer um ano que mora em Rhodes. Foi uma surpresa inesperada como despedida da Grécia. Falava e percebia português! Caminhámos até à casa dela, e tomámos um pequeno-almoço tardio, com o francês a misturar-se com o português.


Era domingo, por isso Gratianne não trabalhava. Enquanto nos falava sobre o que havia na ilha para nós visitarmos, passeámos ao redor das muralhas, visitar jardins escondidos e informámo-nos dos bilhetes para a Turquia.
Com o sol a aquecer, petiscámos umas frutas ao mesmo tempo que fazíamos a sacola para ir para a praia. Alguns minutos depois, chegámos a uma das praias e redor de Rhodes.


Em vez de areia tínhamos rochas e as toalhas davam lugar às cadeiras de piscina. E tal como numa piscina, havia umas escadas para entrar na água. A água estava fresquinha, mas depois de passada esta barreira, descobrimos que ao abrir os olhos debaixo de água, era como olhar para um céu descoberto, de tão límpida e transparente que esta era.
Junto à praia estava um restaurante e com a Gratianne e o seu amigo Antonis, fomos conhecer os sabores da casa, sob um sol escaldante.

Nós estávamos sem dormir, mas não queríamos perder a energia da Gratianne. Depois de voltar da praia, ainda se arranjou tempo e forças para provar os doces típicos da região, visitar o antigo estádio, o templo de Apollo, ver o sol a pôr-se na Turquia, visitar uma amiga da Gratianne e elaborar um delicioso jantar de peixe e quinoa.



Quando caímos na cama, não foi preciso muito tempo para fechar os olhos e dorm.........

No dia seguinte, ficámos em casa. Gratianne trabalhava das 7h às 19h e nós preferimos a lazeira e conforto da casa, aos passeios na rua onde o intenso calor se fazia sentir. Mas ao fim da tarde, voltámos à zona do estádio e do templo a escassos metros de casa. O estádio pode ter 4000 anos, mas ainda hoje é utilizado na rotina dos nativos de Rhodes. Por termos ficados desiludidos com as ruínas de Olympia e por não ter conseguido visitar nenhum templo até chegar a Rhodes, tirámos a barriga de misérias neste local menos povoado por turistas. Demos cinco voltas ao estádio a passo de marcha, e depois de um arrumar as chanatas da caminhada, outra continuou como se não houvesse amanhã até o sol se pôr.

Quando regressámos já a nossa anfitriã estava em casa a orientar o bacalhau. Sempre em português, com a ocasional palavra difícil em francês, passámos o serão na conversa até cada um se retirar para os seus aposentos.

Sitia - Rhodes

O nosso ultimo dia em Sitia e em Creta.... Foi como todos os outros anteriores.

O barco era às 18:30, por isso a rotina do dia manteve-se, com a excepção de o Manoulis estar em casa. Mas a dormir. Depois de uma semana de lavouro de sol a sol, Manoulis tira os fins-de-semana para repousar e pôr o sono em dia.


Fomos ao café, fomos aos mercados de rua, cortou-se a barba e cabelo, relaxamos em casa e quando a hora começou a aproximar-se, começámos a preparar as tralhas. Biclas preparadas, despedidas consumadas, e lá partimos nós para mais um dia de pedalada... até ao porto!

A sensação de estar a deixar a ilha para trás era de nostalgia. Mais de um mês em Creta, parecia que já fazia um pouco parte de nós. As oliveiras constantes, os picos de neve na paisagem, as paragens para descansar nas pequenas aldeias, onde os anciãos se espalham em mesas à sombra de imensas árvores, jogam às cartas ao sabor de raki e de petiscos e cantam canções tristes, muito similares aos nossos fados.


Embarcámos, prendemos as biclas na garagem, procuramos um canto sem muito barulho no barco junto a uma tomada onde ligar o computador e passados quinze minutos, uma voz em grega faz-se ouvir nos altifalantes. Não percebemos nada ao não ser os nossos nomes: “Miss. Batista e Mr. Correia”, e qualquer coisa parecida com recepção.

Como ninguém nos tinha pedido os bilhetes até ao momento, imaginámos que fosse a causa de tanto alvoroço. Demos a volta maior pelas passagens labirinticas até encontrar a recepção, picámos os bilhetes e voltámos de novo ao nosso canto.

A rota levou-nos a parar em duas ilhas antes de Rhodes. Mas era de noite e não dava para apreciar as vistas. Além de estarmos com demasiado sono para ir ao deck.  Quando chegou a altura, empurrámos as cadeiras para o lado esticámos os saco-camas.

Às quatro da manhã uma voz acordou-nos de um incompleto sonho, avisando que atracaríamos em breve. Saímos para a noite a raiar de alvorada. Estávamos em Rhodes! Era domingo e as ruas estavam desertas. Decidimos ir explorar a cidade, antes que esta acordasse

Sitia

Cinco dias em Sitía, o sítio com o melhor azeite do mundo, segundo uma organização que todos os anos atribui o prémio a uma região. Há cinco anos que Sitia anda no topo dos rankings.
O barco que nos levará para longe de Creta é no sábado. Ao contrário de Gythio, há um mês atrás, desta vez não temos que acampar. Para Manoulis não havia problema nenhum em que nós ficássemos tanto tempo.

O que fazem os Nomadiclas quando não têm que pedalar e não existe trabalho para fazer?
Mais ou menos o mesmo que toda a gente, apenas num local diferente...

O pequeno-almoço é tomado devagar, e demoramo-nos a sair de casa para os afazeres básicos. Todos os dias vamos ao supermercado, mercado, padaria ou loja da esquina tratar das nossas refeições. Todos os dias cozinhamos e perdemos bastante tempo e energia nisso. Todos os dias gostamos de uma risota do Seinfeld ou de ver um filme quando temos mais tempo ou vontade. A Ana joga Sudoku, o Alexandre lê o Senhor dos Anéis. Limpamos a casa, a loiça e a roupa.
Andar de bicicleta pelo Mediterrâneo pode ser uma coisa muito fixe, mas também gostámos de banalidades e rotinas e por vezes a única diferença que notámos no nosso dia a dia, são as vistas e a língua. Podíamos estar em casa e nem reparar.


Assim que chegámos a Sitía, uma amiga de Manoulis, a amiga Olga, convidou-nos para assistir à entrega dos diplomas da sua Universidade. Em Sitía apenas existe um pólo da Universidade de Creta. Dietologia, ou algo similar.
Tal como em Portugal,e talvez em todo o lado, os finalistas estavam um pouco nervosos, os papás e mamãs vestiram as melhores roupas, os tios e irmãos acompanhavam, e toda a gente era um paparazzi.
Uma universidade pequena. Toda a gente cabia no anfiteatro.  Os discursos do reitor, vice-reitor, padres e monges, presidentes da câmara e da associação de estudantes devem ter sido muito interessantes, mas para nós era grego e até os chefes da polícia que assistiam, fechavam os olhos e balouçavam a cabeça.
Quando chegou a altura da entrega, o cenário caiu um pouco no burlesco. O paparazzi que existe em cada um tomou conta das pessoas e os laureados mais pareciam modelos de passarelle a posarem para todas as fotos e em todos os momentos.
Valha-nos a comida que nos serviram a seguir! Saladas, folhados de espinafres, carne e uma série de doces e sobremesas típicas da região com um aspecto divino! Comprovamos que o sabor correspondia!


O Manoulis contou-nos que esperava mais um couchsurfer espanhol! Rejubilámos só de pensar em falar espanhol, encontrar um nuestro irmano. Mas quis o destino que não tivessem bateria no momento de se encontrarem e o Miguel acabou por ficar com outra couchsurfer de Sitía. apareceu em casa do Manoulis, durante um jantar e ficámos a saber que sendo jornalista, ganhou uma bolsa europeia com  mais jovens estudantes e anda pelo mundo a encontrar histórias. Parece que aqui em Creta os campos de golf têm muito que se lhe digam. Isso e hotéis com 7 mil quartos... 


Numa das noites fomos a um bar restaurante e qual não foi o espanto quando olhámos para o lado e vemos o grupo à esquerda a comer favas! ...Cruas!... E servidas ainda dentro da vagem!... O Manoulis viu o nosso espanto e pediu logo para a nossa mesa. Umas vagenzinhas de favas e mais umas alcachofras cruas a acompanhar uma garrafinha de raki.

Tivemos tempo para visitar e passear pela cidade e aproveitámos para tentar encontrar umas ruínas da civilização Micénica nos arredores.
A cidade é grande, mas não em demasia e faz lembrar as zonas menos turísticas do Algarve. Para aqui não vêm assim tantos turistas, mesmo no pico do Verão. Cheia de ruelas e ruínhas que sobem o sopé da colina onde a cidade assenta.
O café onde bebericávamos o café grego e nos ligamos à net já nos diz olá com tons de reconhecimento e o senhor do talho é muito amigo e prestável quando não tem miúdos de frango e nos tenta orientar para outro talho. A padaria, têm um pão da avó daqueles que nós gostamos. Nos supermercados, a secções dos fetas e dos iogurtes são titânicas.
A fortaleza veneciana, os cafés e restaurantes junto à marina e as montanhas imponentes ao redor, compõem a imagem para a fotografia e para os postais.
A passeata de bicicleta para tentar encontrar as ruínas foi um fiasco. Saímos de casa com o objectivo de visitar três locais arqueológicos. Um estava fechado e tinha-se que telefonar a não sei quem para que viessem abrir a cancela e outro nunca o chegámos a encontrar. Pelo menos um deles tinha o portão aberto e pudemos ver e passear pelas ruas de uma antiga cidade helénica.


Manoulis trabalhava o dia todo e às vezes só o víamos à noite antes de irmos todos dormir. Engenheiro Civil, Presidente da secção das águas e resíduos da câmara municipal, presidente não sei bem mais do quê e recentemente envolvido com a politica da região, não para um segundo. Gostávamos de ter passado mais tempo com ele. Pelo menos soubemos que a água da torneira é boa para beber. Foi ele que a analisou!

Entre dias de lazeira acentuada, dias de tempestades de Verão, dias de passeio, muita cozinha e muito sossego em casa, foi assim a nossa estadia em Sitia.
 

Nikithianos - Sitia

Que dia de insecto!

A ideia de que viajamos à velocidade das borboletas deixa de ser tão encantadora quando começamos o dia a ser ultrapassados por elas enquanto subimos quilómetros de uma estrada.


Passámos o dia a subir e a descer e a fazer curvas à esquerda e à direita! Até chegar à parte oriental de Creta tivemos de passar por todos os pontinhos à volta da ilha junto à costa. Nada de corta matos pelo meio dos montes e montanhas. E para dizer a verdade, nem sei o que preferíamos rebentarmo-nos todos a subir a montanha e descer logo no sítio, e ficava o assunto arrumado, ou seguir pelo caminho mais longo serpenteando junto à costa. Como a primeiro opção nem existia, é claro que fizemos o caminho mais longo. Sempre que a curva se virava para dentro para a montanha, não deixávamos de ter pensamentos de “Ok, é agora que vamos subir a sério!”. Mas depois a curva lá à frente virava de novo à esquerda e lá continuávamos nós a rodear as montanhas todas do caminho.


As compras para o almoço e a fome seduziam-nos a parar a cada aldeia que passávamos. Ao avistar a subida que se seguia, estabelecemos a aldeia a seguir como meta para parar e fazer a comida. Já mais de metade da subida feita e começam a aparecer sinais a anunciar a vista panorâmica a x quilómetros, com wc's, e sítios para comer. Soava bem como local de almoço. As doze horas há muito que já passavam e o calor e a fome estavam a atacar-nos com toda a intensidade. Quando chegámos, seguimos directamente para as mesas de um restaurante à beira da estrada. As poucas sombras que havia estavam por ali, e não sei que mais nos encaminhou sem pestanejar para ali! Os menus abertos com fotos dos pratos, e preços tentadores a piscarem-nos o olho, e nós a salivar para a carta. Hambúrgueres, e sandes pareciam plausíveis de comprar. Quando queremos alguma coisa há sempre argumentos a favor. A empregada aparece super simpática, e cinco minutos depois estávamos nós na cozinha, com o tabuleiro das batatas com carne no forno a roçar-nos as narinas, o tacho dos caracóis aberto sob as nossas cabeças a entranhar-se nos nossos poros, a ajudante a inclinar o tacho do arroz cheio de cores de ervas legumes e azeite que envolvia vigorosamente com as mãos lambuzadas. Em plena barriga do monstro, conseguimos seguir a luz que nos libertava e saímos para a rua.

Conseguimos dizer que não e sentar-nos nos bancos diante do restaurante a cozinhar o que tínhamos comprado. Um belo repasto com entradas e sobremesa. Os autocarros, e carros de turistas paravam e seguiam. Mesmo ao nosso lado tínhamos a fonte onde todos enchiam garrafas de água, faziam conchas com as mãos à falta de garrafas e refrescavam-se do calor.


Levámos na mala a bucha para a tarde, depois de esvaziarmos os sacos com a comida do almoço, dois hambúrgueres.

A viagem prosseguiu a seguir ao almoço com uma descida vertiginosa. A Ana seguia à frente. Sem saber bem como nem porquê uma abelha gigante entre pelo decote da t-shirt e... Zás! uma picada na mamoca. Sempre a descer a 30 e muitos quilómetros a Ana puxa pela gola da t-shirt alargando o buraco para a abelha sair..nada! Continua a esvoaçar freneticamente entre as peitaças. A Ana levanta a parte de baixo da t-shirt e... nada! Ok, está na altura de pôr a mão... Zás! Mais uma picada no dedo. A abelha desaparece e a Ana grita de dor, enquanto pára a bicicleta junto à berma.
Uns lamúrios, fenistil e seguimos caminho com as picadas a doer a inchar.

Estrada acima e estrada abaixo ansiamos pela última descida que sabemos levar-nos até ao nível do mar, até Sitia.
Eis que a subida acaba e vemos Sitia lá ao fundo. Pomos as mudanças mais pesadas e lá vamos nós a descer sem parar.

A meio da descida, a Ana, trava de mão na cara e cabeça baixa. Um mosquito que entrou para o olho esquerdo. Arde e faz impressão! Tiramos o mosquito e continuamos sempre a descer que p'ra frente é que é caminho. Minutos depois pimba... outro mosquito entra para o olho esquerdo da Ana. Continuamos depois da remoção do insecto e... Zás! Outro mosquito entra para o olho esquerdo da Ana.

Os óculos de sol partidos ainda não tiveram um substituto mas depois deste dia decidimos que vai ser mais um investimento a fazer.

Chegamos a Sitia, e instintivamente seguimos pela marginal. O Manoulis, estava por ali e encontrámo-nos sem querer. Os horários dos barcos dali eram no mesmo dia às 5 da manhã ou no sábado seguinte. Com o Manoulis estava tudo bem em ficarmos com ele estes dias todos pelo que decidimos ficar por Sitia até sábado.

A lua cheia sobre as montanhas inspirava uma noite magnífica e os 3 decidimos que seria magnífica a dormir na cama.

Iraklio - Nikithianos

O calor começou cedo a sentir-se assim que abrimos a janela da varanda às 7 da manhã.


A Maria não voltou a casa de manhã e nós tínhamos que sair ou arriscar a pedalar com o calor. Ficaram os adeuses para escritas em cartão e mensagens online. Mal sabíamos que mais valiam termos esperado por ela e pedir direcções. Saímos do bairro labiríntico da Maria em direcção a este e assim que começámos a ver as placas com Sitia, fomos atrás delas... para esbarrar na entrada de uma auto-estrada. Uma conversa, um debate e uma tomada de indecisões mais tarde e tentámos ir por outro caminho. Mas em vão. Depois de perguntar a um nativo, o caminho tinha mesmo que ser pela auto-estrada. Quando demos por nós já era uma da tarde, com o sol no máximo e ainda não tínhamos saído de Iraklio.

Perguntamo-nos muitas vezes porque fazemos nós isto? Porque raio queremos nós continuar? Porque não estamos junto das nossas famílias e amigos? Porque é que não apanhamos um avião e acabaram-se as subidas, as dores nas costas, as mãos e pés dormentes, as saudades, o rabo assado, a chuva, o calor, o frio, o não tomar banho, as razias dos carros, a contenção nos gastos, a mesma roupa dia sim, dia sim...
Muitas vezes a resposta mais fácil é a ultima a surgir.
Estamos a andar de bicicleta em Creta e chegámos aqui de bicicleta. É por isso que pedalamos... hoje! Amanhã é outro dia.

Acabámos por almoçar antes de pedalar e lá fomos nós para a via rápida, neste domingo soalheiro.


A energia para a tarde era pouca, mas conseguimos que durasse até encontrarmos uma aldeia com moinhos no topo. O cenário ideal para montar acampamento e descansar. Tentámos encontrar alguém para perguntar se havia problema de ficarmos por ali por uma noite. Ninguém apareceu, e nós prosseguimos com o jantar e a tenda.
Meio escondidos entre um antigo moinho em renovação, com vista para as imponentes montanhas e para o longo vale, tudo coberto por um mar de oliveiras. Porque fazemos nós isto? Hoje foi para passar aqui a noite e poder adormecer inspirados pelas vistas.

Quando caiu a noite, a lua cheia completou o quadro da aldeia de ruelas e casebres empedrados.


P.S. - ...existem 54 oliveiras para cada residente em Creta...

Iraklio

Iraklio... a maior cidade de Creta. Mas não estávamos lá. Estávamos os três com a cabeça nas nuvens e passámos o dia desnorteados, perdidos, estando lá mas sem lá estar.

Acordámos cedinho. Cedo demais para a nossa anfitriã. Com pézinhos de lã, tomámos o pequeno-almoço e arrumámos algumas tralhas que por ali andavam. Quando a Maria acordou, despachou-se em menos nada e nós saímos com ela. As conversas trocadas eram estranhas e parecia faltar-lhes vida. Palavras ditas sem grande atenção. Antes de sair ainda teve tempo de nos preparar um puré de umas leguminosas que pareciam grão de bico pequeninos e que nos faziam lembrar o puré de favas da Cathy e humus. Uma delícia grega!


A Maria ia tomar conta do pequeno Roman, enquanto a mãe dele dava uma aula de olaria,  e de outros ofícios artesanais. Nós fomos com ela, visitámos as instalações e maravilhámo-nos com o que por ali se fazia. Dissemos até logo e fomos à nossa vida.


E a nossa vida é a bicicleta. Seguindo a sugestão de Nikos, procurámos uma loja de velocípedes e abastecemo-nos de travões suplentes, já a pensar no próximo Inverno.
Regressámos ao centro da cidade. Desta vez à procura de mapas para os próximos países. Depois de muito andar e perguntar, fomos dar à loja certa. Uma loja só de mapas com cartas do mundo inteiro!
Pesquisámos, procurámos, comparamos e analisámos, mas depois de muita indecisão, decidimos que não precisávamos MESMO de gastar dinheiro em mapas. Existem alternativas digitais e de pirataria online. E seja como for, sabemos para onde vamos e não planeamos rotas detalhadas.

Claro que, para o dia de hoje talvez fosse preciso a ajuda de um mapa. Despachados dos afazeres na grande cidade fomos ver se a Maria ainda se encontrava no centro artístico. Mas já tinha acabado. O Alexandre ficou pelas ruas, enquanto a Ana voltou para casa.
Quando o Alexandre quis voltar para casa é que foi o cabo dos trabalhos! Andou e andou e andou... As esquinas familiares pareciam duplicar, as lojas vistas deixavam dúvidas e as ruas começaram a tornar-se labirínticas. Não conseguia encontrar a casa. Carregado com a máquina fotográfica e um saco de tomates, só depois de muito andar e desesperar, de muitos sms's trocados com a Ana (que deu com a casa à primeira e esperava pela chegada dos vegetais para o almoço) é que a salvação chegou. Combinou-se um local e a Ana foi buscar o Alexandre.
Isto, antes do almoço. Depois do almoço o Alexandre voltou a sair, desta vez mais atento, mas mais uma vez voltou a desorientar-se! Só depois de mais uns círculos à volta do bairro é que encontrou a luz!

Mas nem todo este tempo perdido foi em vão. Pelo menos conseguiu ver uma árvore a atravessar a estrada. Algo insólito numa grande cidade.

A Maria saiu ao fim da tarde e nós ficámos em casa. Ainda esperámos por ela para comer, mas como não aparecia, adiantámos o serviço e depois de um sms a avisar que não vinha dormir a casa, fechámos nós os olhos e esquecemos este em que nenhum de nós lá esteve.

Dafni - Iraklio

Acordámos com despertador depois de um mês a acordar com o nascer do sol. São os pequenos descansos que nos ajudam a aguentar mais uns quantos ti-ti-ti-tis irritantes pela manhã. A rotina matinal foi-se fazendo devagar e sem pressas.
A novidade de peças novas na bicicletas enche-nos de micro projectos de manutenção diária que dizemos para nós mesmos “agora, vou fazer isto todos os dias”.  Dure o que durar, ambos limpámos a roda cremalheira da frente e a transmissão em geral!
A paisagem em volta da nossa tenda encheu-nos as vistas, as papas de aveia a barriga.

Mais um dia de pedalada começa com a promessa de sol e vento. As nuvens de muitos tamanho e variações de branco e cinza iam cobrindo e destapando o caminho, conforme lhes dava o vento.
Aos 20 quilómetros parámos para um snack matinal. Aí debatemos as novas medidas dos pneus e a distância que percorrêramos. Algo parecia não estar bem, pedalámos de sinal em sinal a ver se os metros batiam certo e ao fim de uns 4 quilómetros demo-nos por contentes. Sem nos apercebermos, com a mente distraída noutras coisas, subimos toda a manhã sem nos cansarmos muito, e claro, esforçar as peças novas.


O pedalar entre gigantes montanhas é comum, mas continua a elevar-nos os ânimos. Desta vez, foram as montanhas cretinas, cretenas, cretenses (um postal para quem descobrir como se chamam os naturais de Creta ;) que pela sua forma excentricamente cónica faziam pensar em alguém titânico a moldá-las assim.
As pequenas aldeias por onde passámos inspiravam-nos num misto da sua simplicidade e tradição. Uma dúzia de casebres nos dois lados da estrada, com senhoras de avental e lenço atado à cabeça a varrer as entradas! Uma gasolineira pequena com um senhor de bigode grisalho e boina na cabeça e um jovem de roupas gastas, rotas e sujas intercalam o lugar do chofer! Os cães presos nas coleiras por correntes a ladrar à nossa passagem e a levar um esticanço no pescoço quando a corrente acaba. Alguns mais felizardos andam por ali a ver se lhes dá o cheiro. Faz lembrar alguma coisa? Até nos animais vadios somos iguais aos gregos. Aqui há-os aos pontapés.....Tal Grécia, tal Portugal!
Dizem que é do local onde vivemos, que nos molda a maneira de ser/viver.....


A hora de almoço lembrou-nos a sexta-feira 13!
Sentados nos bancos de pedra ao lado de uma fonte, comemos fatias de tomate e pepino salpicadas com sal, pão e azeite. Uma tomada de consciência de que seguir em frente é começar a dizer adeus a estas coisas boas!
Um carro antigo, mais pró velho, parou em frente a nós e a senhora saiu. cheia de garrafões para encher. Um outro homem atravessou a estrada e meteu conversa com o dono do carro. Abriu-se o capôt do carro e vemos fumadas a sair da parte de trás. Ficam ali a conversar e quando damos por ela, o homem abeira-se de nós e espeta com duas latas de cerveja fresca no meio dos tomates e do pão. Epá, obrigadinha! Foi-se embora sem sequer olhar para nós!!!
Acabámos de comer e entre arrumar e regressar molengámos nos degraus de uma escadaria. A senhora do restaurante sai e estende-nos uma laranjona e uma faca. Já que insiste...
Seguimos caminho contentes e contentados, para descer quilómetros sem parar. Só para fotografias.
Do topo da descida tínhamos vista sobre Iraklio ao fundo, o mar e mais montanhas com desfiladeiros pelo meio.


À entrada de Iraklio, sorrimos ao passar por um restaurante que grelhava carne no espeto usando uma tecnologia ecológica e original. Uma torneira de água a correr fazia girar uma mini azenha que estava ligada ao espeto e o fazia também girar sem ser necessário a presença de gente.
Um de nós voltou atrás para fazer uma foto. Voltou com dois pedaços de cordeiro nas mãos e um sorriso rasgado na cara!

Chegados à praça combinada esperámos pela Maria. Apareceu de bicicleta e seguimos em fila até sua casa. Estudante de Engenharia Civil, já no término dos seus estudos, Maria encontra-se em fase de transição na sua vida. Acabaram-se as aulas e os estudos, só lhe falta o projecto final, e começa o empacotar das tralhas acumuladas durante os anos de estudo. O ano passado fez uma viagem de um mês de bicicleta pela Turquia. Ideia sua que partilhou com mais 2 amigos.

Um lanche de meloa e amendoins, umas banhocas e saímos à rua para passear.
Cheiro e cheirinhos puxam apetite e duas pitas na mão mais tarde regressámos a casa. Rematámos o jantar com um pouco de pasta e muito sono a polvilhar as tentativas de conversa.

Rethymno - Dafni

Não descobrimos as maravilhas do trampolim durante mais de três semanas. Mas no dia da nossa partida, com o sol acabado de despertar e o silêncio no parque a reinar, um dos Nomadiclas saltitou, com as ramelas nos olhos a verem a vista sobre a cidade enquanto voava.


Arrumámos as tralhas. Sem pensar muito nisso os movimentos mecânicos de arrumação dos alforges voltaram como se nada se tivesse passado. É como andar de bicicleta. Nunca se esquece.
Lavámos toda a loiça, deixámos a cozinha arrumada, limpámos toda a caravana. Fizemos tudo isto, sem pressas e sem pensar muito na vida sedentária que iríamos deixar para trás.
Antes de partir tirámos umas fotos ao quiosque a pedido da Susanne, para ela poder pôr nos panfletos.

Montámos as meninas, dissemos adeuses, trocámos abraços e voltámos à nossa estrada... durante 5 minutos, até à oficina do Nikos!
Faltava um acto de manutenção vital e terrivelmente atrasado. Trocar de correntes.
Tirámos as rodas, falámos um pouco com Nikos sobre a melhor corrente e cuidados a ter, vimos como se faz, dissemos mais uns adeuses e voltámos à nossa estrada... durante 5 minutos, até ao banco da promenade onde almoçámos!


Aproveitámos o sol e o bom tempo. Dissemos adeuses à zona e às vistas. Sentimos que nesta nossa estadia (a mais longa até à data), aquilo que nos agarrou mais foi o local. O Eco-Parque, os seus animais, cantos e rotinas entraram em nós sorrateiramente e deixaram raízes.

...o sobe e desce voltou, mas sem pressas. Nenhum de nós fazia intenções de pedalar como se não houvesse amanhã, e depois de algumas horas e 30 km nas pernas, virámos para uma estrada secundária, entrámos num caminho, empurrámos as biclas sobre uma colina e sempre sem falar, começámos a preparar a casa amarela. O sítio escolhido parecia estar à nossa espera, e não foi preciso debates e decisões sobre se era bom ou não e qual o melhor spot.
Montámos tudo num campo de oliveiras, com vista para as montanhas e para o sol nascente do dia seguinte.

O fogão voltou à vida e a cama azul voltou à casa amarela.

Com rodas novas, correntes novas, manutenção feita e talvez um novo e completamente diferente destino nas nossas mentes, sentimos que estávamos a começar a segunda parte da nossa viagem.

Rethymno - Last days


Éramos 7 ficámos 5, éramos 5 ficámos 3, éramos 3 ficámos 2, éramos 2 ficou nenhum.

A nossa última semana em Rethymno,... ou talvez não! Adiámos um dia, depois 2 e às tantas só na quinta o tempo deixava de estar chuvoso para recomeçar a pedalar.
Na terça depedimo-nos da Lisa e da Marisa e sentimos logo a diferença. Na quarta dissemos adeus à Marisa de lágrimas a quererem sair. Cada vez mais sozinhos. Mas voltemos a segunda...


Tínhamos encontro marcado com o mecânico para alargar o furo dos aros. As peças que tinha eram apropriadas para este trabalho delicado, mas não no tamanho certo. Visitámos lojas de ferramentas e outras de bicicletas em redor, com respostas entre “não temos” e “furem com um berbequim”. Voltámos à loja do Nikos, e à falta de mais, surgiu a hipótese de começar com o conjunto de formões que se tinha e continuar com um grande até ao tamanho certo. Passar com a bomba de ar para limpar as limalhas, lixar para alisar as arestas e fazer todo o trabalho seguinte de montar uma roda. O Nikos mostrou-nos como se fazia e deu-nos o que precisámos. Ele foi ao seu trabalho e nós fomos ao nosso. Mesmo como gostamos, aprendemos a fazer, mas no fim temos o mestre para verificar. A seguir às rodas fomos às cassetes, que aproveitámos e limpámos a fundo. Com travões novos, e tudo ajustado fizemos o teste.
Pagámos a conta e saímos de sorriso na cara. Grande mecânico este Niko.
Mais dos conhecidos do Mihalis, que conhece toda a gente.


A nossa rotina no ecoparque continuou. Tratar do animais, cozinhar e acabar a porta para a zona da cozinha, caravana, contentor e horta.

Meia hora antes da partida da Tanita e da Lisa estávamos todos a saltar nos maxis-trampolins. Uma estreia para uns e uma despedida para outros. Cambalhotas, piruetas, saltos, pinos, subidas ao poste e só faltava a música de circo. A trupe estava completa. Dois dias antes de partir e descobrimos que se tivéssemos aprendido (5 minutos) a mexer no comando podíamos ter feito isto todos os dias...


A nossa pintora Marisa adiou a sua partida porque à última da hora o Iago (responsável do bar), pediu-lhe para pintar mesas e cadeiras. Trabalho que os gregos levam muito a sério e fazem todos os anos. Tudo pelo turista, claro!
Além de retocar o mural a pedido do Mihalis, ainda levou uma tareia de mesas, cadeiras e pinturas , tantas que no fim não podia mais ver pincéis à frente.

Os serões passaram a ser mais calmos. Nada de jogar às charadas, ao buzz, às pombinhas da catrina, à banda de música, água ou raki, adivinha quem sou, com papelinhos colados com cuspo na testa (o Alexandre era a Barbie!) e sobretudo nada de jogatanas de gin.  Passámos serões a escrever, para tentar actualizar o blogue, e às vezes a Marisa acompanhava-nos nos episódios do Seinfeld. O House, Game of Thrones, The Event, o V e o Stargate ficavam para alturas mais solitárias.


A Susanne e o Mihalis alternavam as suas estadias entre casa e Calcetto, mas ficando cada vez mais a dormir na carrinha que estacionavam à estrada do parque.
Ás tantas descobrimos numa conversa de ocasião que andávamos todos a fazer os xixis nocturnos em redor dos sítios onde dormíamos. Uma  descoberta que nos fez sorrir mas ao mesmo tempo reparar como as pequenas coisinhas da nossa rotina estavam a simplificar-se e a entrar numa comunhão com o que nos rodeava, Já ninguém descascava os vegetais e a maioria da fruta...a Marisa um dia passou por nós descalça e disse: “vou dormir um bocadinho ali para cima que na minha tenda está muito calor!”, como se subir pelo meio das rochas esburacadas, passar pelos cardos e ervas altas e chegar ao topo, com mais do mesmo e deitar-se a dormir debaixo de uma oliveira fosse a coisa mais normal do mundo!

As nossas instalações sanitárias eram partilhadas com todos os que trabalhavam no Calcetto, os jogadores de futebol, e as centenas de crianças que visitavam o parque.
A segunda era o dia pior, ficavam a jogar até depois da meia noite, com holofotes ligados e os sons típicos de um jogo de futebol. Já para não falar dos balneários onde ainda os ouvíamos a conversar enquanto tomavam um duchezeco.
Tínhamos instruções para a partir da chegada dos jogadores todos os dias, por volta das 18/19 limitar as idas às casas de banho/duches.
As crianças apareceram depois da Páscoa. Depois de quase 3 semanas em volume piano piano apareceram às dezenas e encheram o parque de correrias, gritarias e folias. Estavam por todo o lado! Nestes dias, até se irem embora, confinávamo-nos ao espaço da caravana e arredores, protegidos pela vedação.
Foi interessante ver a outra vertente do parque e todos os professores,o Mihalis e a Susanne a assumirem novos papéis diante de nós.
No Verão chegam a ter 200 crianças de uma vez e contam as lendas que é como se fosse uma força da Natureza, quase um desastre natural que chega, arrasa com tudo e desaparece deixando um rasto de destruição atrás de si.

Esta estadia começou com chuva e lama e acabou com sol e vento! Começou com 7 e acabou com 0! Começou com desespero e cansaço e acabou com sorrisos e paz interior! Queríamos mais...

Rethymno - Third week

As duas semanas tornaram-se em três enquanto esperávamos pelas encomendas e deixámos que a rotina do parque se tornasse familiar. Mas não éramos os únicos. A Marisa também andava a deixar atrasar a sua data de partida. Era para ser segunda-feira, depois terça e depois para a semana. Lisa e Tanita, há muito que têm avião marcado para dia 10 de Maio. Iraklio - Manchester.


A segunda-feira começou com um belo de um susto. Durante a sua rotina matinal de destapar as delicadas jibóias e serpentes, o Alexandre, com os movimentos mecanizados e olhos arramelados, soltou a primeira camada, contra a chuva. Entre uns bocejos (eram 8 da manhã!), ao desprender a segunda camada, contra o frio, eis que uma serpente aparece fora das grades! Num movimento rápido, voltou a tapá-la. Será que uma conseguiu escapar? Desceu das rochas e junto à porta de entrada da casa dos répteis, contou, 1,2,3....4! Estavam todas dentro da sua casa! Aquela era uma serpente nova.
Um telefonema ao Mihalis, que já estava na escola, e cinco minutos depois, lá vem ele a correr a perguntar: “onde está? onde está?”
A nova serpente revelou-se uma velha conhecida. Há 6 meses que a serpente australiana escapou durante uma tempestade que abriu as portas da casa. Parece que teve saudades, pois voltou para o seu ninho e depois de ser posta no respectivo lugar, vimos com surpresa o animal de 2 metros a serpentear até as outras colegas dorminhocas, como que a dizer: “olá, estou de volta!”
No mesmo dia, mais tarde, descobrimos que umas das serpentes mais pequenas, num outro viveiro, escapou por uma brecha mal tapada na porta. É assim. Umas voltam, outras vão dar uma volta.


A semana continuou pacatamente no Nature Park de Rethymno.
O feta continuou a ser presença assídua nas refeições, tal como os seus colegas pepinos, tomates e oregãos. O Tzaziki que um livro de receitas ensinou, fez a sua aparição mais do que uma vez, assim como o arroz com lentilhas à moda de Creta. Tudo regado com o vinho caseiro da família do Mihalis.
A Marisa continuou com o seu mural de pintura. Lisa e Tanita desenrascavam onde era preciso no escritório e nós continuávamos com a auto-aprendizagem de carpintaria com material reciclado. Concertávamos placards, construíamos janelas...
As gerações mais novas de coelhos desapareceram, misteriosamente durante uma noite, sem um único som ser ouvido. Suspeitou-se de animal selvagem... mas qual? A gata ranhosa continuava a espirrar por todo o lado e a distribuir más disposições a todos os que vislumbravam a ranhoca a sair grotescamente do nariz para a boca. O pinto mais pequeno e fraco, foi encontrado morto dentro da sua gaiola. Os irmãos andavam a fazer-lhe a vida negra e o Darwin não perdoa.


Ficámos a conhecer o famoso vento do sul. Na costa norte de Creta, quando o vento têm ares africanos, é o salve-se quem puder! É impossível trabalhar. Mais não podemos fazer além de certificar-nos de que os animais, as instalações e tudo o que é ferramenta e material espalhado pelo parque não voe pelos ares até ao centro da cidade mais abaixo. A casa de brincar, reconstruida durante a primeira semana, voltou a cair. Uma casa que precisou de quatro pessoas para a transportar! E quando é só o vento estamos com sorte. Por vezes o vento trazia os seus amigos de guerra, Sr. Frio, Dr. Chuva e Major Relâmpago! Tudo para no dia a seguir, estar um dia de Verão, de céu límpido e sol de escaldão. É assim Creta.

No final da semana, Susanne levou as raparigas à costa sul, numa road trip improvisada, com direito a caravana e tudo. Nós ficámos com o Mihalis a tomar conta do parque. Não havia muito trabalho, por isso aproveitou-se para conhecer melhor as redondezas do parque. Mihalis mostrou-nos as vistas, a fauna e a flora junto ao desfiladeiro. No regresso carregámos com um tronco e passámos o resto do dia a esburacá-lo com o berbequim. Futuras casotas paras as abelhas gigantes da zona.


E as encomendas chegaram finalmente! Uma de casa, outra de uma loja em Inglaterra. As rodas feitas à medida do freguês, encomendadas em Itália e à espera de morada fixa, chegaram com sucesso a Rethymno. No mesmo dia, fomos falar com o mecânico de biclas amigo do Mihalis. Nikos. Com ar de quem trabalha demais, e de quem têm sabedoria a condizer, lá conseguimos marcar a cirurgia delicada às nossas meninas para a próxima segunda-feira. Sim, porque temos umas rodas novas, mas antes de as pormos ainda as temos que esfuracar todas! Mas Nikos, dispôs-se a ensinar-nos enquanto fazia os seus afazeres.


Sem sequer sentirmos o tempo a passar, estamos em Rethymno à três semanas, a caminhar para quatro. Entre serões a ver séries, rotinas matinais, carpintaria, chás, cozinhados caseiros e partidas de gin aos serões, o estilo de vida sedentário vai-se infiltrando em nós. Mas é bom. Assim temos tempo para pensar sobre onde iremos a seguir a Creta e o que queremos mais aprender, de uma viagem de bicicleta que já tanto nos ensinou.

Rethymno - Second week

O início da semana começou com despedidas. O Alex e a Cassie seguiram viagem e de 7 Helpers ficámos 5. Devem ter levado com eles as nuvens e a chuva porque a semana começou soalheira e seca. Finalmente!


A caravana ficou vazia e nós mudámo-nos para lá de malas e bagagens. Ajudou ao sentimento de conforto.
Cheios de bichos carpinteiros o nosso trabalho com a madeira continuou. Construímos um suporte para folhetins informativos, e tivemos direito a madeira nova para fazer as janelas do quiosque das ervas e óleos naturais.

A maioria do que aqui se constrói é reciclado. Temos uma pilha de madeiras, portas e cadeiras partidas e velhas, arames, grades, ferros, tubos, barrotes, paletes, escondidos atrás do contentor, árvores e arbustos junto à caravana. O contentor é outra das nossas fontes de material. Prateleiras cheias de parafusos, pregos, serras, berbequins, martelos e muitas ferramentas, tintas, esponjas, limas e pincéis, e ao fundo material empilhado para as actividades do Verão. A criatividade está dentro de nós e os materiais à nossa volta, sem limites para criar!


O parque ecológico foi nascendo. O Mihalis, natural de Creta, professor de educação física e a Susanne, alemã e massagista, são os fundadores. O amor pela Natureza, e pelo que os rodeia vê-se em cada movimento. A maneira como pegam nos animais, o tempo que passam a observar cada planta, cada pequenino ser vivo que faz parte deste ecossistema é muito importante para manter um ciclo harmonioso. Eles não se ficam pelas palavras, o seu estilo de vida é coerente com o que dizem ter como princípios.
Entre si falam alemão. Ambos já tiveram vários trabalhos e pela maneira como as coisas aconteceram parece que todo o antes foi uma preparação para o agora.
A Susanne nutre um carinho profundo pela cultura havaiana, onde já esteve e aprendeu uma das suas técnicas de massagem. Assistimos à dança havaiana da cura, que a Lisa, Tanita e Marisa aprenderam com a Susanne, para executar na festa de abertura do parque, duas semanas antes de chegarmos.

Começámos a ter responsabilidade na alimentação dos animais assim que acordamos. Damos ervas aos coelhos, o que houver de comida às galinhas, fruta e legumes às iguanas e chinchila, e pomos comida a apodrecer na gaiola dos camaleões. Atrai uma moscaria doida! Destapamos as cobras e os geckos para apanharem sol, pomos a gaiola das iguanas cá fora do contentor, soltamos os franganitos e verificamos se toda a bicharada tem água.

Felizmente, pela vinda do sol pudemos restituir as iguanas à sua gaiola original, na companhia do dragão engraçaducho e vê-las ganhar novas cores à luz quente do sol!


A gata ranhosa transferiu os seus miares para estes novos moradores da caravana.
O galo, por ser tão mau, ganhou o nome de Big Red. Além de se empoleirar em cima das galinhas e dar-lhe bicadas até fazer sangue, persegui-las e bicá-las, arranhá-las com as patas, mostrou-nos pela primeira vez o que as histórias dos outros Helpers nos contavam. Também fomos vítimas de perseguições dentro do espaço comum onde vamos buscar a madeira. Às vezes, até quando se tenta abrir a porta para uma galinha foragida ou poedeira entrar, não o conseguimos fazer porque se fica por ali de peito feito a atirar-se à grade e a tentar bicar-nos o corpo. É mau! Parece que sabe quando falamos mal dele e põe-se do outro lado a deitar-nos olhares de soslaio e a abrir as asas grandes enquanto solta um Cócórócó mal enjeitado. “Sim, estamos a falar mal de ti!”. Nem para a panela o queremos e no fundo achamos que até é capaz de atacar as cobras se o pusermos como comida para elas.


Temos 2 cadelas, a Lumpy e a Rita. A Lumpy é a maior e porta-se como uma criança mimada. Faz o que quer e o que lhe apetece e ai de quem a tente contrariar, mostra-lhe logo os dentes. Respeita apenas a pequena Rita. Juntas fazem a vida negra ao pobre do Yanis que todos os dias durante anos leva com os ladrares e perseguições destas duas a cada dobrar de esquina. Amam-nos se temos comida, adoram-nos se as pomos ao colo, gostam de nós se lhes dermos festas, levamos uma dentada se as empurramos do sofá da caravana.

Mesmo no final da semana, descobrimos uma nova ninhada de coelhos. Afinal o que se pensava ser uma era um, apenas com um testículo. As coelhas comem-lhe os testículos quando não querem mais filhotes. Para protecção dos mais pequenos fecham os buracos das tocas antes de anoitecer e voltam a abri-los de novo pela manhã cedo.

Continuámos a ir à caixa do Correio à espera das nossas encomendas, mas nada. Com tantos feriados e pontes pelo meio dizem-nos que é normal.

As relações entre Helpers estreitaram-se e lá para o fim da semana, a Ana começou a fazer parte das jogatanas de gin  das raparigas. Os jantares na caravana, acompanhados de conversas animadas e jogos em que quem perde bebe Raki. Passámos a semana a comer leguminosas cozinhadas de todas as maneiras, porque enche, é barato e faz bem.

Rethymno - First week

Rapidamente descobrimos que em Creta, o tempo não é uma maravilha todos os dias.


A primeira semana foi tempo de adaptação. Não sabíamos muito bem o que fazer e andávamos à nora entre tentar manter as nossas tralhas secas para a noite seguinte e a tentar encontrar trabalho para fazer. Éramos sete “Helpers” e a maior parte do trabalho já tinha acontecido durante o tempo de aulas. Lá desenrascámos as nossas actividades entre a restauração de um velho jipe, a lavar a loiça e a cozinhar para toda a família. Por vezes éramos 11 ou 12 pessoas e nem sempre era claro o número de bocas à mesa no inicio da confecção alimentar. Muito improviso rápido é palavra de ordem no que toca à comida por aqui.


Todas as manhãs saíamos da cama, e equilibrávamos a tenda sobre quatro cadeiras para que o chão desta pudesse secar. Acordávamos tarde, desnorteados e rapidamente o conforto do saco-cama desaparecia com a confrontação da realidade molhada e lamacenta. Além disso, estava frio. Mas lá nos orientámos ao novo estilo de vida.

Quando não trabalhávamos, o pessoal juntava-se em dois locais, secos. O escritório, dominado pelas Lisa, Tanita e Marisa e a caravana, zona de repouso dos australianos. Nós ligámo-nos desde o primeiro dia com o Alex e a Cassie, por isso a caravana começou a tornar-se a nossa casa de sossego.
Alex e Cassie são músicos e estão a viajar pelo mundo durante um ano. Como bons australianos que são, viajar está-lhes no sangue e esta é a primeira vez que estão a fazer HelpX.


A primeira vez que um de nós teve que lavar loiça na “cozinha” foi um choque. Duas paletes com um tapete húmido serviam de plataforma sob a qual uma torneira cuspia água. A torneira estava a 40 cm do chão e por ali se espalhava loiças, alguidares, tachos, tabuleiros, produtos de limpeza, copos de plástico às dezenas (sobreviventes do dia de abertura do parque), lama, galinhas, pintos, caracóis e vestígios do única gata do parque, que por sinal estava doente e passa o dia a espirrar e a encher tudo à sua volta de ranho. Tão choque foi esta nossa primeira utilização da cozinha que daqui nasceu o primeiro projecto a sério. Vamos fazer uma cozinha exterior!
Agarrámos em tábuas, pregos, parafusos, esquadros, lápis, berbequim e serras eléctricas e metemos a mãos ao trabalho. Tínhamos que aproveitar os dias bons para trabalhar porque quando chove, não há muito para fazer no parque. Ficámos contentes com o resultado e depois de instalada, parecia a estrutura mais robusta das redondezas. No fim desta semana, mais ninguém teve que lavar loiça agachado em ambientes dúbios. A partir daqui passámos a ser os carpinteiros cá sítio!


O Mihalis e os australianos prolongaram o seu dia trabalho, antes de domingo, para conseguirem deixar um sistema de aquecimento de água metamorfosear-se e transformar-se em dois grelhadores gigantes, a tempo da Páscoa.
Estamos na Grécia, e se existe o local no mundo onde passar a Páscoa, é aqui. Mais importante que o Natal, para os gregos, a Páscoa é celebrada com maior ênfase no domingo e é desculpa para piqueniques e reuniões familiares e amigos à volta do(s) cordeiro(s). O fim do jejum de 40 dias.

Com 7 Helpers e as suas pessoa para transportar, o Mihalis e a Susanne dividiram-nos entre o carro e o jipe. No dia anterior algum pessoal se tinha reunido em torno da mesa da caravana e no meio de tachos, panelas e tabuleiros preparámos salada de fruta, cheesecake e salada de couscous, para levar para a festa. Os carro carregados com tudo o que o nos lembrássemos que poderia ser útil para a maior festança da Grécia. E claro os 20 litros de vinho caseiro, que não podia faltar. Por volta das 9 e meia partíamos, já depois da hora combinada, a fazer paragens constantes e sucessivas para comprar 5 quilos de pão, carne, e o Mihalis e a Susanne trocarem impressões de última hora! “Trancámos o parque?”, “Vamos por ali...!”, “Trouxemos isto?”

Chegámos atrasados, mas para os gregos pontualidade não existe! As missas duram 2 horas, e tudo tem uma duração longa para que se possa ir chegando!
Mesmo assim conseguimos ser dos primeiros. Meio envergonhados e sem saber o que fazer, o tio, que já tínhamos conhecido sem saber durante a semana, tirou as vergonhas todas ao pessoal. Distribuiu tarefas com a facilidade de quem está habituado a gerir muita gente, e em menos de nada todos tirámos os casacos, arregaçámos as mangas e nos enjeitávamos a trabalhar. Integração completa! Uns descascavam batatas e cortavam-nas para fritar, outros faziam o seu primeiro turno a rodar o espeto com os cordeiros, outros punham a mesa, e outros tratavam de grelhar a carne no segundo churrasco! Toda a gente estava contente. Os restantes familiares foram chegando ao longo da manhã. Traziam ainda mais comida cozinhada e por cozinhar, o fogão para fritar as batatas, o Raki (igual ao nosso medronho) que se começou logo a beber em copinhos de shot cor de rosa fluorescente. Toda a gente tinha um e ai de quem perdesse o seu. A senhora loira dos óculos de sol grandes não perdoava, perguntava-nos pelo copo de 5 em 5 minutos e reabastecia sem parar e sem se cansar. Nós é que já estávamos cheios e fome e só víamos comida à nossa frente. Parecia que não éramos os únicos e as senhoras da família deram início ao festim assim que se puseram a espalhar comida e a petiscar enquanto o faziam.


O cenário parecia tirado de um piquenique impressionista! O plátano centenário, a mesa comprida, a capela, harmoniosamente, integrados no topo do monte. O sol quente e as sombras a mexer-se, a brisa que se tornava vento mais forte, a música e as conversas, as cores das pessoas e da comida.  Lá ao fundo víamos o fumo de outro grelhador e ouvíamos e víamos outra festarola. E as pessoa que continuavam a chegar. Quase que parecia um sonho! Estávamos em Creta, numa festa de Páscoa. Era o sítio para se estar!

A primeira frigideirada de batatas saiu, a primeira grelhada de carne saiu e toca de passar os tabuleiros diante de toda a gente. Mais gente que chega mais comida que vem com eles.
Os cordeiros grelharam durante 4/5 horas, a meio da manhã as tripas recheadas com fígado juntaram-se a eles na brasa. Pela altura em que o primeiro cordeiro estava pronto já todos tínhamos a pança cheia de carne e batatas! Sempre regados com Raki e vinho. Devo insistir nesta imagem da senhora loira dos óculos grandes a encher-nos os copos de Raki, porque às tantas já todos fugíamos com o rabo à seringa. Os nossos copos partiam-se, ainda estavam cheios, estavam ali,..  qualquer desculpa servia para ela não atestar nova dose. O mesmo foi acontecendo com a carne que saía da outra grelha. Os olhos  transbordavam de comida, as calças desabotoadas no primeiro botão, e nós a dizer que já estávamos bem, obrigado!


O tio era alma da festa. Sob efeitos de vários copos de vinho caseiro girava entre amigos e família a conversar. Dançava sozinho, roía ossos e posava para fotografias. Dormia uma sesta e logo voltava à festa. Tocava o sino com toda a força e dizia num grego alto: Cristo está vivo! Boa Páscoa! Estava feliz!

O DJ do fato da tropa mantinha a música a tocar, e já satisfeitos com alguma comida, começámos as danças. As danças gregas de mãos dadas em círculos abertos com passos para os lados, cruzados em frente e atrás e os Helpers todos a tentar apanhar o passo.


Os canitos eram muitos. Amigos de quem detinha o pedaço de carne na mão, corriam e saltavam nos intervalos entre as grelhadas, e juntavam-se aos nossos pés como crentes de uma seita de comida qualquer!

Quando nos sentámos à mesa a Ana gemia de dores de barriga, o Alexandre estava meio cheio, se é que isso é possível, e os restantes iam pelo mesmo caminho. Comemos lascas de borrego para ao menos prová-lo. O excesso de comida era visível e no final, a mesa continuava cheia de comida. Devorámos um bolo guloso de mel, que ninguém sabia quem tinha feito e o cheesecake, porque as barrigas já não aguentavam mais. Por esta altura fazia-nos sentido haver um jejum a seguir à Páscoa, não antes!

A seguir ao almoço espalhámo-nos como destroços de uma guerra (de comida), a dormitar ao sol. Alguns foram dar a voltinha para desmoer. Quando regressámos/acordámos já se tinha levantado a mesa, junto os restos todos para dar aos animais e arrumava-se as últimas coisas na carrinha de carga do tio.

Nós, Helpers estávamos a cair aos pedaços, mas ainda não era altura de ir para casa! Mais uma paragem para o café num aldeola perdida ali ao pé. Toca de juntar mesas e transportar cadeiras para haver lugares para todos. Fumar uns cigarros, conversas e brincadeiras. Os Helpers, jovens de sangue na guelra não podiam com uma gata pelo rabo, as nossas caras acusavam cansaço e as nossas barrigas prometiam não voltar a comer tão cedo!

 A Páscoa grega arrebentou connosco!