Iskender

Dia de paz e sossego.

O acordar sem despertador. A retrete e o lavatório a passos de distância. Uma mesa onde preparar o pequeno-almoço. Viva o luxo!


Conversámos durante a manhã com um casal da Eslovénia que iniciava a sua viagem turca de mota. Indicámo-los os melhores sítios por onde viéramos e eles em troca escreveram a sua morada, caso algum dia os quiséssemos visitar. É fácil sentir ligação com o pessoal das duas rodas.
No parque podíamos ver as matrículas italianas, alemãs, holandesas, eslovenas, francesas e as nossas, portuguesas.


Fomos até Edirne. Mas sem planos. Apenas passear. Por entre as mesquitas, por entre os jardins e a escolher qual o melhor tavuk döner da zona. Conversas de pança cheia à sombra de uma mesquita e ao sabor de um gelado.
O nosso anfitrião de Edirne, não tinha problema em receber-nos no dia seguinte e nós queríamos tempo para conversar, descansados da vida.

Regressámos, tomámos o merecido banho de água quente e refugiámo-nos na tenda.

Kircasalih – Iskender

 Mais um dia cinzento no Noroeste Turco.

Durante a noite chovera, o que adicionou mais uma tarefa à nossa rotina diária. Secar a tenda. A nossa casa amarela foi construída para estações primaveris, outonais e estivais . Não para o Inverno. A viagem que fizemos pela França e Itália, os dias chuvosos na Grécia, estão finalmente a deixar danos irreparáveis. Em alguns sítios o caruncho ataca. Muito poucos, mas ainda assim... Foram demasiadas noites na casa amarela para evitar os sentimentos que temos por ela.

Foi durante a nossa rotina matinal, que uma carrinha parou na deserta gasolineira, mesmo à nossa frente, e de lá saíram três homens fardados. A GNR cá do bairro. Um deles muito sorridente, os outros, claramente, mais tensos e com a mão na metralhadora. O sorridente dirige-se a nós e começa a fazer as perguntas do costume, adicionando à lista, uma nova para nós. O passaporte se faz favor. Levou-os para a carrinha e começou a preencher papéis. Não percebíamos se deveríamos estar preocupados ou não. Mas os documentos regressaram aos donos, os rapazes fardados descontraíram um pouco e o mais sorridente lá se fez entender sobre a sua opinião, quanto às viagens de bicicleta: belo!

A labuta de mais um dia na estrada, sob chuva e paisagem desinteressante estava a dar conta de nós. Já passaram sete dias desde que saímos da casa da Oya. Precisámos de um descanso.
Que não chegaria hoje assim que recebemos um sms a avisar que o nosso anfitrião não se encontra na cidade para onde nos dirigimos. É domingo, e além disso dia de votar na Turquia. Ninguém está nas devidas casas e todos foram para a sua terra preencher os quadradinhos com cruzinhas.

E agora?

Numa cidade, um Internet café. Enquanto a Ana toma conta das biclas, vou à net enviar pedidos e número de telefone a toda a malta no raio de 40 km. Senão, teremos que pedalar até encontrar um parque de campismo ou algo mais confortável. O descanso é prioritário.
Ao sair da sala dos computadores, a Ana está na rua, sentada numa cadeira com outra ao lado a servir de mesa. Um pratinho e um garfo para picar os pepinos e tomates. E um chá. Por alguma razão já não me surpreende este cenário. Bastou parar mais do vinte minutos e um dono de um café veio oferecer queijinho e iogurtes líquidos, bolinhos e outros tantos. Esses voltaram para atrás devido à alergia da Ana, mas os pepinos e tomates ficaram. Assim como os cafés que o senhor da Internet veio à rua oferecer passados alguns minutos. É assim na Turquia!

Sem respostas, pedalámos em direcção a Edirne. Antiga capital do império Otomano, situada na fronteira com três países. Turquia, Grécia e Bulgária. A maior cidade da região e a com mais probabilidade de encontrarmos descanso.


Durante a estrada até lá, um sms. Um rapaz de Edirne pode receber-nos, amanhã. Ok. Já só temos que nos desenrascar hoje.

Depois de tantos dias de campo e vilas e alguma paz e sossego, eis uma urbe, com buzinas, buracos, tráfego, e confusão. Nas ruas ouvimos de tudo. Inglês,Turco e muito grego. Algumas pessoas com feições do leste passeiam por ali. O turismo é evidente. Ainda tentamos um hotel que vimos no Lonely Planet digital, à pressa... Mas o desânimo é unânime assim que o recepcionista começa a escrever valores altíssimos e a querer regatear. Hoje não rapaz, estamos muito cansados para isso.
Um taxista aponta-nos para um campismo a seis quilómetros da cidade. Uns polícias lá vão servindo para preencher as dúvidas nas bifurcações.

No campismo a dona, Turca, mas confundida por nós por Alemã, tal era a sua pronúncia, recebeu-nos, indicou-nos onde colocar a tenda e pronto.

Montámos o estaminé e passados alguns minutos chega ou casal de mota. Super organizados nas suas tarefas, em menos de nada montam a casa debaixo do telheiro, ao que nós lhes seguimos o exemplo. Um minuto depois começou a chover.
Amanhã decidimos o nosso próximo destino.


Nota - Não visitar cidades turísticas em época alta, com as bicicletas!

Pasayigit – Kircasalih

Nada como acordar com nuvens no céu, prestes a descarregar a sua fúria em cima de ti.
Mas vamos com calma, porque dentro do restaurante não se faz sentir frio ou chuva. Ainda temos que arrumar tudo nas sacolas, conversar mais um pouco com o Salih ao sabor de chá e bolachas e dizer adeus. Agora sim, podemos começar a pedalar e a chuva cair.


Completamente abatidos, com o cansaço e o mau tempo, entrámos em mais uma pequena vila. Ou assim nos parecia quando lá chegámos. Mas era uma vila estranha. Tentámos encontrar qualquer coisa como um supermercado ou uns tavuks döners, mas só víamos blocos de apartamentos e mais blocos de apartamentos, com a ocasional loja de conveniência nos rés-do-chão. Foi aí que nos sentámos. Num passeio sujo, ao lado de uma lojita, rodeados por prédios e mais prédios, com as senhoras na varanda a trocarem olhares de lado e os transeuntes espectados como se pertencêssemos a um jardim zoológico. Encostámos a cabeça aos joelhos e tentámos descansar...

...aos poucos lá fomos despertando para a situação. Pelo menos não chovia. Entrámos na loja em busca de qualquer coisa para comer. Começámos a conversar um pouco. Não muito. Um dos distribuidores de cafés e doces estava com a carrinha estacionada em frente. Durante um cigarro, metia conversa e tentava saciar a sua curiosidade. Passado um pouco, disse para esperarmos e abriu as traseiras da carrinha. Deu-nos um bolo tipos os da DanCake e seguiu caminho.


Ainda a recuperar de tamanha oferenda e um psst psst dos céus chega aos ouvidos. Olhámos para cima, e um cesto preso a uma corda vêm a baloiçar por aí abaixo. A senhora que o faz descer, acena com a cabeça para o irmos receber.  Lá dentro uns pães/bolos com queijo no interior. Mas como se não bastasse, a vizinha do rés-do-chão chegou-se ao parapeito da sua varanda, com um tabuleiro. Chávenas de chá, pratinho com queijo e algo que fazia lembrar as farturas foram servidos contra a nossa vontade. Não abrimos a boca durante todo o tempo que ali estivemos sentados, mas de alguma forma todas estas pessoas não quiseram perder a oportunidade de poder ajudar um estranho.
Quando fomos embora, dissemos adeus a todas as senhoras que à varanda se assomavam, mas eram elas que agradeciam por poderem ter ajudado.

Uns metros mais à frente, e a verdadeira cidade apresentou-se. Uma razão para a existência de todos aqueles blocos de prédios. Atravessámo-la rapidamente e em direcção às colinas e suaves descidas. Voltámos ás estradas desertas em construção, novinhas em folha, aos acenos de todos os carros que apitavam assim que encontravam alguém do outro lado que justificasse todo aquele desfile de buzinas e bandeiras.


Na bomba de gasolina onde nos deixaram acampar, não havia nenhum Salih. Nem chegámos a conversar seja o que for com os mecânicos que por ali andavam. Eles mantinham a distância e nós aproveitámos a falta de socialização para tratar da saúde a cansaço, dores e febre.

Korukoy – Pasayigit

Trovoada durante a noite...


Quando espreitámos para fora da tenda, as nuvens estavam à beira de descarregar. Despachámos a tenda antes que as pingas viessem. E vieram, assim que começámos a pedalar. Pedalar à chuva durante o Verão, pode ser divertido, mas com o pequeno-almoço por tomar, uma humidade manhosa no ar, que tornava tudo peganhento, e uma subida de caracol com oito quilómetros, não foi a melhor das manhãs. A Ana queixava-se de dores de barriga desde a noite passada e estava meio sem ânimo.

Valeu-nos o chegar ao topo. O olhar para trás e dizer adeus ao nosso companheiro. Desde Dezembro de 2010 que ele anda ao nosso lado. Guiámo-nos por ele, acampámos junto a ele e foi nele que por vezes nos refrescámos e urinámos. Todas as pessoas que conhecemos, desde essa altura, foram de uma ou outra forma afectadas por ele, e toda a comidinha boa que andamos a experimentar deve a ele o seu nome e os seus ingredientes. Adeus generoso Mediterrâneo.


E como que um prenúncio do que nos esperava, assim que começámos a descer do topo, o frio sentiu-se, e começámos a pensar se devíamos ou não vestir outra roupa.

Começámos a ver uma cidade ao fundo, decidimos que seria por ali o descanso do almoço.
Kesan era feia. Longe da ocidentalidade europeia do Oeste turco, e da arquitectura típica do resto da Turquia, encontrámos uma cidade de passagem, perdida no campo. Cheia de blocos de apartamentos, buracos, lixo e olhos esbugalhados a olhar para nós como se fossemos alienígenas.
Refugiámo-nos num jardim, onde as árvores e o verde mascaravam a confusão à sua volta. Os bancos de jardim, tornaram-se local de repouso. Ao início toda a gente do parque olhava para nós e manteve-se à distância. Passados alguns minutos, com um chá ao lado, um de nós a dormir e o outro a ler, os nativos ficaram mais à vontade. Sem darmos por isso, as mães e avós estavam ao nosso lado, enquanto os netos e os filhos se baloiçavam. A senhora que faz a renda. As famílias que bebem o chá na esplanada. Os jogos da criançada. Um pequeno refúgio, onde ganhámos mais energia do que um almoço poderia providenciar.


Mas com tantos dias de pedaleio sem parar, ao fim da tarde parámos numa bomba de gasolina e indecisos se devíamos continuar ou procurar campismo selvagem por perto, ficámos ali sentados. Longe de um grupo de rapazes e do empregado da gasolineira.
O empregado dirige-se na nossa direcção, com dois chás na mão e um sorriso na cara. Agradecemos o gesto, dizemos que não era preciso, mas na Turquia a generosidade genuína é difícil de evitar. Ele retirou-se, sem grandes conversas e voltou a deixar-nos à vontade. Mas não por muito tempo... Quando voltou, tentou explicar que podíamos ficar aqui ou ali. Não percebemos bem os sítios, mas percebemos que a noite ia ser ali passada. Foi só quando começámos a montar a tenda num quadradinho de relva ao abrigo de uma nogueira, e quando pela terceira vez o rapaz veio ter connosco é que as intenções foram esclarecidas. Podíamos ficar dentro do restaurante!
Aquilo estava fechado, o dono acho tinha morrido à pouco tempo e não havia problema nenhum.
Atirámos tudo lá para dentro, pusemos cartões por debaixo da tenda para fazer uma cama mais confortável e ao anoitecer, preparámo-nos para dormir.

Já a Ana dormia, além do cansaço e dor de barriga estava com febre, quando alguém bate à porta do restaurante. Era de novo o rapaz com o seu sorriso. De alguma forma este dia acabou, a ver televisão no escritório do nosso anfitrião sorridente, a beber chá atrás de chá, a discutir com expressões e monossílabos política, rotas, famílias e empregos.

Deve ser coisa do nome. É o segundo Salih que nos abre as portas do seu bocadinho de vida.

Guzelyali – Korukoy

A última vez que a água correu pelas nossas costas, foi na casa da Oya, hà quatro noites atrás. A tenda ressente-se do cheiro dos pés, o sujo na roupa acumula-se e o cansaço engana-se como se pode.
Se tudo correr bem, estamos a três dias do nosso próximo anfitrião algures no Norte da Turquia. De volta ao selim, um dia de cada vez.


Rápido!
Em menos nada, atravessámos Çanakkale em direcção ao porto e meia-hora depois regressávamos ao continente europeu.
Algo nos deu... eram dez e meia e a próxima cidade era a mais de trinta quilómetros. Ou vamos ou ficamos?

Rápido, vamos embora! Em modo ciclista de corrida, a velocidades de pedaleio nos 30km/h, voámos até à cidade junto à costa. Estacionámos, pilhámos o supermercado Bim e esticámos a barriga numa esplanada, enfiando um atrás de outro os Tavuk Döner que a senhora dos países do leste conseguia fazer à velocidade da nossa fome.

Tudo a passo acelerado, até a digestão e o calor forçarem a uma travagem e moleza brusca.
Num café, longe dos habituais homens, fomos encontrar não só internet e chá, mas um grupo de senhoras turcas que, animadamente, jogavam às cartas, fumavam cigarros, cantarolavam e abanavam os leques.


De novo nas longas rectas de asfalto, fomos parar para abastecer de água para mais uma noite de campismo.
Enquanto um enchia os cantis, o outro fazia conversa com um empregado da bomba de gasolina.
Quando alguém te pergunta se fazemos camping na nossa viagem, se hás vezes não encontramos água e depois estende os braços na nossa direcção, afirmando o óbvio nas palavras, ducha problem, é porque se calhar andamos a precisar de descansar as nossas roupas e banhar o corpinho.

Virámos em direcção ao mar. Junto à margem, perguntamos a quem por ali andava se havia problema. Até hoje ninguém disse que não podíamos acampar.  Ainda ajudámos dois homens a empurrar o barco para fora da areia da maré baixa, e demos uma mergulhaça para limpar o espírito do ducha problem.

Estamos numa ponta do Mediterrâneo. Provavelmente, a última vez que vamos adormecer ao som das suas pacatas ondas, nesta viagem.
No Norte, as montanhas e as nuvens cinzentas esperam por nós.

Dalyan – Guzelyali

Assim que saímos do esconderijo, não tivemos que pedalar muito até um ciclista turco, com espelho retrovisor no capacete metesse conversa. “Venham, venham! Gostaria de vos oferecer um pequeno-almoço” Olhámos um para o outro... porque não?
Seguimo-lo e estacionámos as burras junto a umas mesas no exterior daquilo que parecia uma loja de azeite e produtos da região. Os amigos deste já ia avançados na alimentação matinal. Nós entre conversas gestuais, palavras comuns, mapas e rotas delineadas e apresentadas, la fomos aceitando um queijinho, uns pasteis de batata e o omnipresente chá!
Ora estamos a pedalar em estraditas de campo, ora estamos a ter uma visita guiada às instalações de uma fábrica de azeite regional que se exporta para Itália ou a fazer provas de azeitonas.


Não tínhamos avançado muito de manhã. Ligámos o turbo e demos no duro até o sol dizer basta. A primeira vila que apareceu foi onde parámos. Não pensamos muito nisto, mas instintivamente já estamos sempre em busca de uma torneira, mangueira ou fonte para poder cozinhar com conforto. De uma sombra, jardim, bancos ou muros onde o sol inclemente não nos atinja durante algumas horas. Mas aqui na Turquia, ficamos satisfeitos com as placas de fotografias photoshopadas de Tavuk Doners por um ou dois euros.

Nesta vila, o estabelecimento tinha uma mesa a servir de esplanada e uma pérgola onde as burras podiam ficar à sombra.
Talvez a população da vila não fosse muito grande, porque nas horas que por ali ficámos a descansar, todos foram abastecer-se de bolas de gelados de vários sabores. A avó que leva os netos para lhes oferecer um cone a cada um. Os adolescentes de motorizadas e calças sujas de terra que oferecem uns aos outros gelados. O senhor do tractor que deixa o motor ligado enquanto escolhe o sabor favorito antes de voltar à cabina e continuar a lavoura. Deve ser aqui que a vila molha o bico em sabores frescos.


Hora de voltar ao alcatrão... ou talvez não. Prestes a subir para as nossas montadas, eis que mais um cavaleiro de alforges aparece vindo na direcção contrária! Estacionou a montada junto às nossas, pedimos mais um chá e iniciamos a troca.
A troca é, talvez, dos melhores aspectos desta viagem. A troca de experiências. A troca de conversas e opiniões com  alguém que nunca vimos antes e provavelmente nunca voltaremos a ver. Mas é tanto em comum, aquilo que temos, que poderíamos ter crescido juntos na mesma cidade ou ter sido da mesma turma no infantário.
Nicolas Richaud, francês de 27 anos, largou o trabalho seguro e monótono em Munich, aprendeu aquilo que achou que tinha que aprender sobre viajar de bicicleta, comprou uma, criou um blogue e fez-se à estrada com o objectivo de dar a volta ao Mediterrâneo.
Assim como o Tom e a Pauline na Sicília, é o segundo francês que encontramos que se propõe a conhecer o nosso mar. Espanha, Marrocos, Argélia, Tunísia, Malta, Itália e Grécia já ninguém lhe tira. Segue-se toda a costa Turca, Síria, Israel, Jordânia, Egipto e os Balcãs.
Parece que todos os viajantes que encontramos vão na direcção contrária. Será que alguma vez partilharemos durante mais do que um dia a viagem com outro pedaleiro?


Fomos porque, porque é melhor ir do que ficar a pensar no que seria se tivéssemos ido. Fizemos um desvio de dez quilómetros para ir a Troia. Não sei o que esperávamos. Entradas grátis? Estradas livres de souvenirs? Enfim...
Os 7000 km foram feitos às portas da lendária cidade, barrada pelas camionetas de turistas.

Com a nossa anfitrião a cancelar o acolhimento devido ao volume de trabalho, restou-nos procurar um campismo em cidade de Verão. Mas antes que a noite caísse e de enveredarmos para mais uma noite em terreno lavrado, o dia reservava-nos mais uma surpresa
Entre casas e hotéis, campismos fechados e praias demasiado expostas, um som familiar chega aos nossos ouvidos... Português! Os primeiros portugueses desde que saímos da nossa terrinha! Metemos conversa, mas foi tão difícil. Depois de tanto tempo a falar e a ouvir outras línguas, algo de estranho aconteceu nos nossos cérebros. Apenas aceitam como familiar as nossas vozes. O português foi delegado para os cantos poeirentos da massa cinzenta.
Foi terrivelmente esquisito ouvir a nossa língua materna a sair deste grupo de Lisboetas/Alentejanos de Cascais.

Korubasi – Dalyan

Fizemo-nos à estrada já o sol ia alto.
Pelo meio de colinas com subidas brutais, seguidas de descidas íngremes, atingimos sem esforço o record da velocidade máxima. Numa bifurcação seguimos pela direita. Andámos para trás e para frente até conseguir sair dali e perceber que eram becos sem saída. Duas aldeias no fim de cada estrada e numa umas senhoras tentaram dizer-nos qualquer coisa enquanto empurravam ao de leve a pequena menina. Sem percebermos nada do que diziam, saímos dali com a sensação de que ou queriam que a levássemos ou que a comprássemos!


De volta à estrada certa, passados os cinco quilómetros de andar a espassarinhar pelo caminho errado, fomos acompanhando a carrinha do leite. Parava numa aldeia para recolher as bilha de leite e nós passávamos-lhe à frente. Quando ela arrancava, já nós íamos a meio do percurso para chegar à aldeia seguinte e quando lá chegávamos lá estava ela de novo parada a apitar, para mais uma recolha.


À hora de almoço estávamos por Gülpinar. Descobrimos um “restaurante” e no nosso parco turco pedimos 3 pides para os dois, ao que o senhor fez três para cada um! Não se estragou nada. Ficámos satisfeitos e no fim o cházinho foi oferecido. Quase no final da nossa refeição surgem mais dois senhores. O tempo de espera para observar, e depois um deles “ataca” com perguntas de onde somos e por aí, num inglês bastante bom. Era professor universitário, de férias e com um barco comprado há pouco tempo. Mais um bocadinho e ficávamos na sua casa.

Um sítio com internet e um gelado seguiram-se como sobremesa. O senhor do café quebrou as barreiras com o dono do espaço da internet e meia hora depois falávamos com o filho do último num inglês monossilábico. Engraçado como quando as pessoas falam menos ou menos bem, nós temos tendência para falar como elas. Damos por nós a dar calinadas e pontapés semi-conscientes imaginando que nos vão entender melhor por isso.
Mais um chá por conta da casa, e a conversa prolonga-se até à hora de voltar à estrada. Olhamos para o relógio digital e a temperatura marca trinta e cinco graus Celsius. São quatro da tarde e estamos em inícios de Junho na costa oeste da Turquia.


Mais uma vez, nos desiludimos por seguir placas de fundo castanho. património cultural. Um templo!  Apolo! Paga-se e nós damos meio volta e seguimos caminho jurando para nós mesmos que seria a última vez que fazíamos quilómetros em vão para mais um sítio chupa-dinheiro-ao-turista.

As plantações dos dois lados da estrada enchiam-nos os olhos de dourado. O amarelo torrado de espigas de trigo a balouçar ao vento, algumas já tortas do peso das sementes maduras. Parámos para apanhar uma e certificar-nos, e um senhor de motorizada, a sair de um caminho secundário, pára junto a nós. Conseguimos entender-no e entre o pão e o bulgur (variedade de trigo, com que fazem pão e também usam na cozinha como se fosse arroz) percebemos que era o dono das terras e já nos estava a convidar para ir ver o resto das plantações.

De sacos e garrafas com água para a noite, andávamos nós a olhar para os lados a ver se víamos um bom sítio e vemos na estrada a vir na nossa direcção dois ciclistas com bicicletas carregadas de malas. Os sorriso abrem de imediato e paramos para conversar. Dois amigos turcos de férias por uma semana que querem fazer a costa até Izmir.
Também eles procuravam um camping, para não selvagem. Dizem que os turcos só são simpáticos para estrangeiros. “Falem inglês!” dissemos nós na brincadeira. No segundo dia da sua viagem, cada um segue o seu ritmo.

Dissemos adeus e acampámos poucos quilómetros mais à frente num pinhal a caminho da praia. As meias e a roupa cheia de carrapitos e ervas secas a picarem as pernas ficaram para o dia seguinte.

Oren – Korubasi

Segunda é dia de trabalho para a Oya e para nós dia de pedalar.


Fomos a pé com a Oya até ao escola onde ela trabalha. A metros da praia e com piscina para rematar. Existem locais de trabalho assim...
Devemos ter sido dos primeiros a chegar, porque a cozinha ainda estava fechada e a Oya é que teve que ir buscar as chávenas e servir o chá. Sentámo-nos à mesa, bebericámos chá, conversámos uma última vez antes da próxima, abraços e adeuses. Regressámos à estrada.

O caminho até Ackçay já nós conhecíamos do dia anterior, graças à Oya. Depois tivemos que entrar na velha amiga E-87, em obras, camiões, fumaradas, etc, etc....

Parámos numa padaria junto à estrada. Em conversas turcas com a padeira, outro cliente intrepôs-se como tradutor turco-inglês para tentar ajudar com os trocos e os números. Já na rua, o senhor meteu mais conversa que o habitual. Donde vêm, para onde vão, querem vir à minha casa tomar o pequeno-almoço... A conversa habitual. Indicou-nos que a sua casa era a 5 km e que estaria à nossa espera junto à estrada. Ok.
 Os 5 km tornaram-se 7 km. E depois 10 km... Começámos a tentar lembrar-nos da marca do carro e da cor. Seria aquele debaixo da árvore lá atrás? Ou o outro junto aos prédios? Nunca saberemos, porque não voltámos atrás para procurar o senhor. Desculpa lá senhor simpático, mas a viagem tem que continuar e se tivesses uma bicicleta teríamos memorizado com certeza a marca e a cor, agora um carro...

Junto à E-87, apareceu um supermercado Bim. Tinha sombra e uns banquitos improvisados. Por ali ficámos na hora do calor a encher a pança, mas mais a dormitar.
Na porta ao lado, carrinhas e pessoas entravam e saiam. Olhavam para nós, perguntavam se estava tudo bem, se queríamos chá, de onde éramos. Quaresma, Ronaldo, Sabrosa.... Estacionámos junto a uma empresa de catering para os hotéis e hospitais da zona, e entre tanta conversa, lá fomos conhecer as instalações. Claro que a certa altura, ofereceram-nos uma refeição! Tivemos que recusar, gesticulando que de barriga cheia a bicicleta anda devagar. Mas ainda marcharam umas bolachas e umas fantas! Quem não come por ter comido....


A E-87, virávamos para a direita. Uma subida monumental sobre a qual nos avisavam desde Mugla. Não obrigado. Já chega. Seguimos para a esquerda. Uma secundária perdida que nos levaria junto à costa, com colinas cicláveis, vegetação selvagem, campings improvisados, RedBulls oferecidos por um sueco de caravana, paisagens deslumbrantes e uma subida... Não era tão longa, como a que evitáramos, mas fez-nos suar por tudo o que era poro no corpo.

Chegámos a Assos. Aldeia antiga, com templos de Atenas, fortalezas do Império Otomano, ruas e casa de pedra. Tudo muito bonito, mas nós queríamos era água, para continuar a busca de um campismo.
Até nestas bandas, foi complicado. Mesmo no meio de serras desertas, lá aparecia um pastor ou tractor. Procurávamos sossego. Encontrámo-lo entre umas rochas e arbustos rasteiros, com as montanhas nas nossas costas e a ilha de Lesvos à nossa frente.

Oren

Domingo!
Sabíamos que algures a uma pedalada da casa da Oya, um pequeno-almoço turco esperava por nós.
As barrigas vazias ajudavam a pedalar com motivação, e os placards a indicar o caminho soltavam a nossa imaginação.
Se um pequeno-almoço grande sabe bem só por si, depois de uma pedalada de dez quilómetros, imaginem....
Algures pelo caminho descobrimos que afinal a amiga do trabalho, viria com mais outra amiga e o filho. Quando chegaram eram três amigas e um filho.
Mas antes da sua chegada divertida, tivemos alguns momentos a sós... Nós os três, ... e a comida.


O dono do sítio veio receber-nos e trocámos (a Oya) meia dúzia de palavras com ele. O sítio era brutal, à entrada tinha animais de quinta, galinhas e pavões e à medida que entrávamos mesas redondas com pergolas e árvores a fazer sombra, um piscina e mais mesas à volta e relva por todo o lado. Podemos dizer que metade das mesas já estava ocupada. E nós que vínhamos a expressar dúvidas pelo caminho se um negócio num sítio tão escondido teria sucesso!
Na altura de escolher o sítio olhámos meio no gozo para uma espécie de coreto no meio do jardim e foi mesmo aí que ficámos, nas alturas, sentados nas almofadas à volta da mesa.

Ainda antes de arefinfararmos o dente nalguma coisa que fosse, o dono voltou a dirigir-se a nós. Fomos com ele ver a senhora que fazia o pão caseiro. Como separava a massa em pequenas bolas e em dois minutos a transformava num disco que pousava sobre a almofada. Com o dedo molhado tocava três vezes num canto do pão e depois agarrando a almofada encostava o pão às paredes do forno onde ficava colado a cozer. Dali levámos pão quentinho para a nossa mesa.

O chá, tacinhas com cores e texturas diferentes para nós, ovos, tomates e pepinos e pão. Poderia parecer pouco, mas não era. Quando uma tacinha se acabava voltávamos a pedir mais, o chá...omnipresente, e já as taças iam a meio e as barrigas começavam a ficar saciadas quando as amigas chegaram. Trouxeram alegria com elas e desde que chegaram não pararam de conversar todo o tempo. Uma nova remessa de chá e tacinhas chega com as novas convidadas. E assim ficámos, comendo pela manhã como se não existisse mais nada a não ser aquela mesa, aquelas pessoas e aquele pequeno-almoço turco.


Lemos as borras do café, puseram-se as cosquices em dia, dormitámos, fizemos origamis e quando já toda a gente tinha saído é que nós dissemos adeus. E saímos sem pagar a conta, porque sendo um negócio novo a primeira vez é à borlix!

Com as bicicletas debaixo do rabo e o sol por cima das cabeças dirigimo-nos para a beira mar. Por meio de atalhos, na estrada ou na via para bicicletas e peões, parámos para uma limonada e continuámos.
“Querem ir até ali?” perguntava a Oya, “São só mais dez quilómetros!”. E assim  fomos avançando e parando aqui e ali para beber chá, ou ayran soda. Aprendemos a jogar ao oquey, que lado a lado com o gamão fazem parte das tardes dos turcos reformados. Ao passar em frente aos “cafés” o som das peças a chocarem umas com as outras é constante.
Esta cidade é destino de férias para muitos turcos. A classe média e a média alta talvez. São muito as moradias de Verão e na praia a enchente de turcos que se refrescavam no mar.

Debaixo de uma amoreira perdemo-nos nos nossos pensamentos, a sonhar acordados e a esticar-nos para comer amoras. O calor dava alguma moleza e apetecia-nos ou ir direitos à água ou deitar-nos a dormir à sombra. Nada disto, a Oya, sem dúvidas retomou a sua tour pelas redondeza. Depois de mais um granizado das amoras da zona, a mãe dela telefonou para saber do nosso paradeiro. Tinha a comida à nossa espera e nós onde estávamos?
Quinze minutos depois subimos ao apartamento da mãe da Oya. A mesa compôs-se com pratos e pratos de comida caseira a cheirar bem. E se bem cheiravam, melhor sabiam. Voltámos a saborear a Turquia que se come em casa. Muito melhor que todos os tavuks döners do mundo por muito baratos que sejam. A sobremesa foi arroz doce! Outra surpresa para nós todos. Nós por o encontrarmos aqui, um primo sem ovos, limão nem canela, mas arroz doce.E para elas que se admiraram de nós também termos este doce no nosso país à beira oceano plantado.


Saímos tão rápido como chegámos, a noite vinha e tínhamos alguns quilómetros pela frente. Antes ainda houve tempo para ver as maravilhas que a mãe da Oya faz. Desde os cortinados das janelas, aos naperoons, tudo em sua casa ou foi feito ou sofreu alterações. As obras primas da costura tiveram o auge com um edredon colorido todo feito à mão.
A poucos metros de casa a luz era suficiente para mais um gelado. O típico da terra feito com amoras pretas comido num banco de jardim ao lado de outros cheios de gente a comer gelados e a apreciar o fresco da noite que chegava.

Fomos para casa e antes da cama, a Oya e eu pusemos henna nos dedos. Pode ser tradição só ser utilizado em casamentos e cerimónias, mas este dia foi especial o suficiente para poder enfeitar os nossos dedos.

A conversa sobre a viagem com um chá omnipresente fechou o dia.

Deliktas - Oren

O sol acorda a bicharada!
E a nós dá-nos a sensação de já irmos pela manhã dentro de tanto calor que faz quando acordamos.

Voltámos à nossa estrada em obras e foi num abrir e fechar de olhos que chegámos a mais uma cidade grande com marina. Hora de almoço. Pico do calor. Turistada por todo o lado e por ser fim de semana gaiatos e estudantes passeavam despreocupados.
A sensação de não saber onde ir apodera-se de nós com tanta oferta de comida pronta a levar. Preços nem sempre visíveis, à espera da oportunidade de ganhar mais uns trocos com o turista que não fala turco.
Saltitámos a perguntar preços pelos tavuks döner até encontrar um que nos agradasse. A quantidade/preço do que comemos em Izmir tem sido a nossa referência quando vamos à procura.
A barriga estava meio cheia, e a sonolência veio acompanhar o calor. Pedalámos para sair da confusão e fomos pousar-nos nos bancos em frente ao porto para a Grécia. O gelado a 75 escudos, para rematar o desejo de açúcar antes de passar pelas brasas.


Os gregos foram-se sentando ao nosso lado à espera de embarcar e entretanto nós matávamos saudades da língua. Como se entendêssemos alguma coisa escutávamos como esponjas o que conversavam à espera de uma palavra que soubéssemos, para poder dizer com orgulho “eu percebo grego!”. Ficámo-nos apenas com reconhecer a língua quando a escutamos e já estávamos contentes.

A nossa hora de retomar o selim não é certa mas ronda  as três e meia. e sendo assim, voltámos para debaixo do braseiro sol rumo a casa da nossa anfitriã Oya.
A meio de uma descida em que seguia à frente, a muitos quilómetros por hora (para uma bicicleta, claro!) vejo dois ciclistas em sentido contrário no troço de estrada em obras, a quem acenei. Com este cumprimento pararam. “Devem ser vocês os meus hóspedes!” Sem ter visto a fotografia dela não sabia o que esperar, mas aos poucos lá me foi passando a surpresa e quando o Alexandre chegou, minutos depois, sorriu ao reconhecer a nossa Oya.

Encontraram-nos a 18 quilómetros de casa, ela e o Muammer, a quem chama de Mummy! Pedalaram connosco o restante trajecto a uma velocidade mais de passeio do que nas suas habituais saídas.
Não fossem eles turcos, parámos num “café” à beira da estrada para uma ronda de chá. Mais ayran sodas, chocolates, frutos secos, bolachas. Abrimos os sacos e de cada um foi saindo comida de intervalo.


O caminho para a casa da Oya foi feito por estradas secundárias que, se eles não tivessem vindo buscar-nos, nunca conheceríamos. Muitos mais calmas e bonitas!
Descemos até ao nível do mar de novo. Com muita gente a passear, com gelados na mão, pelos passeios feitos de propósitos ao longo da linha do mar.

Ao chegar a casa da Oya, bebemos mais um chá e despedimo-nos do Mummy, que faria mais dez quilómetros para casa. Ao final do dia teria menos dez quilómetros que nós no conta quilómetros. Com idade para ser nosso pai, já estava reformado do exército e desfrutava, agora a tempo inteiro, da sua bicicleta.
A Oya, fez comida para um exército a seguir. E se há vezes em que a qualidade e quantidade não são compatíveis, este não foi o caso, sem dúvida. Umas papas turcas caseiras depois de conhecer apenas o lado fast food fizeram-nos render a estes novos paladares.
A noite já ía alta e tendo um domingo pela frente e alguns quilómetros no corpinho fomos todos ressonar um bocadinho.

Çavuskoy – Deliktas

O barulho dos carros fazia-se ouvir ao longe. O despertador toca, mas a vontade é de continuar a dormir com as pedras nas costas, no abafado da tenda, com os bicharocos do campo a escalá-la e a tentar entrar. O sol marca a sua presença e ao longe a buzina de um camião. Mais um dia a viajar na artéria rodoviária do oeste Turco.

Desde Marmaris que pedalamos grandes troços nesta estrada e desde Marmaris que esta estrada está em obras. Mais um dia de camiões, trocas de faixa, barulho e alcatrão derretido. No pico do calor, se pomos os pés no chão, sentimos o calçado a ficar colado. A  Ana costuma pedalar à frente. Consigo ver as marcas dos pneus que ela deixa para sempre assinados na E-87 que se derrete.

Mas hoje é dia para a história dos Nomadiclas. Mais de 6000 km depois, eis o nosso segundo furo! Valeu-nos ter sido numa bomba de gasolina quando parávamos para descansar um pouco.
Tiras as malas, vira a bicla, saca das ferramentas e vai de tirar o pneu. Que eles são duros de roer, não temos dúvidas, mas para conseguir tirá-los é uma carga de trabalho! O que mais nos aborrece não é o furo em si, mas o tirar e pôr um Schwable Marathon XR.


O sol continuava a apertar, por isso virámos para uma aldeola em busca de sombra para o almoço. Sorte nossa, dia de bazaar! Mas desta vez já sabemos o que a casa gasta, por isso passeámos com as biclas, primeiro para dar uma vista de olhos nas bancas, nos preços, nas pessoas. Chegados ao fim do mercado, fomos aos sítios estratégicos em busca de frutas e verduras ao kilo. Se calhar exagerámos um pouco nas quantidades. Kilos de morangos, alperces, pimentos, tomates, pepinos e batatas. Passámos a hora do almoço a cozinhar e lavar aquilo tudo e a orientar o jantar.


Ao longe um cais e uma ilha no horizonte. Pedalar o oeste da Turquia, com as ilhas gregas a assomarem-se de vez em quando. Às vezes, não sentimos que pedalamos na Turquia, mas num qualquer país da Europa, embora desta só conheçamos os países Mediterrânicos. No fundo, ainda é como pedalar em casa.

A viagem continuou depois do almoço, mas ao fim da tarde, fugimos da ruidosa E-87 em busca de secundárias e de montes e mato onde passar a noite. Uns cultivos ali, umas oliveiras aqui, o agricultor curioso, o sol a pôr-se e nós a montar a tenda em mais um campo de oliveiras. De novo com as pedras nas costas, o abafado da tenda, os bicharocos do campo a escalá-la e a tentar entrar.

Guzelbahçe – Çavuskoy

O despertador tocou às 6 e os três saltámos da cama. Alguns com mais energia outros, outros precisavam de mais um bocadinho. A Asli fez como sempre o almoço e lanche do petiz e preparou-nos os nossos.
Às 7h30m despedimo-nos e os 3 seguimos viagem.


As paisagens sempre iguais. A estrada em obras algures num troço, com bombas de gasolina a cada 5 quilómetros, o alcatrão a aquecer, e as pedrinhas agarradas aos pneus a saltarem por todos o lado. Às vezes lá nos calha uma.
A saída de Guzelbahçe e a entrada em Izmir mal se notou. As casas nunca desapareceram e o aspecto urbano esbateu a passagem.

Com fumos projectados em nossa direcção, carros e buzinas, passeios apinhados de gente, semáforos fomos somando quilómetros. Supermercados, hipermercados, vendedores ambulantes, bicicletas, motoretas a virem em sentido contrário do nosso lado, mini bus que seguem ao nosso ritmo, de tantas vezes que param, cada vez que alguém lhes faz sinal. Camiões a deixar rastros de pó, pedrinhas ou a salpicarem com sumo, conforme o que transportam. A confusão. A meio manhã descobrimos um passeio pela marginal e parados no semáforo para atravessar, a Asli encontra-nos, pára o carro para nos saudar e voltar a seguir.

Mais calmaria, pelo caminho das bicicletas. Muitos pescadores a lançar o isco e a linha. E por todo o lado gente espalhada a dormir na relva, a correr, a anda, a passear.
Olhámos para o relógio e condizia com a conversa da barriga, hora de almoço. Embrenhámo-nos pelas ruas adentro e parámos num parque com equipamentos de ginástica. As testemunhas de Jeová também existem aqui e também vieram tentar falar connosco.
O jardineiro rega o jardim, os estudantes saiem da aulas e namoriscam pelo jardim. Vão ao Bim comprar guloseimas  a preço da chuva. A cada 10 pessoas que passam 7 param para brincar nos aparelhos.
Descobrimos um sítio com sandes de metade de um pão recheadas com carne e salada e almoçamos isso com  morangos. O calor e a barriga cheia, os bancos de jardim e uma sombra e nós a dormitar de boca aberta ou cabeça a tombar.


A meio da tarde o relógio e os quilómetros querem mais para eles. E nós molengas do calor fazemos-lhe a vontade. Não são montanhas, nem vales, nem frio, nem vento. São blocos de cimentos, estradas e vias rápidas de trânsito que nunca pára. Desta vez temos uma cidade para atravessar, a terceira maior da Turquia. Depois de 50 quilómetros de manhã ainda estávamos nos subúrbios da cidade.

O nosso dia foi este, atravessar Izmir de uma ponta a outra.

Final da tarde e a estrada que continua sempre igual. O sítio por onde os carros passam na estrada tem duas linhas paralelas de alcatrão pegajoso, a juntar-se ao cheiro de fumo de escape que é constante nos nossos dias.

Lá decidimos cortar algures à esquerda e avançar pelo caminho de terra até achar que estamos protegidos da estrada.  O solo irregular e as oliveiras escondidas pelas ervas secas altas são o nosso sítio para mais uma noite de camping.

O senhor de tractor que passa e a quem perguntamos se podemos por ali ficar.
Resta fazer o jantar e descansar de um dia na selva urbana.

Guzelbahçe

O despertar a tempo da despedida do filho da Asli e um pequeno almoço turco. Com ovos cozidos, fruta cristalizada em calda, pão, azeitonas, tomates, pepinos e chá.


O nosso dia sem planos, foi passando entre as paredes desta mansão grande demais para dois. Os rabos assados da mistura do selim e do calor inibiam o desejo de pedalar pelas redondezas.
Corpos estendidos pelos tapetes turcos a divertir-nos com os comentários dos amigos. Sabem bem como um bolinho com chá em dia de frio.

O almoço foi uma mistura de receitas e de chefs. Muito descontraído.

Lá mais pela tarde saímos para uma passeata, cheios de ingenuidade em relação ao bafo de calor que fazia.
Espassarinhámos pela marginal a ver vendedores, cada um com seus produtos, a dormitar em sofás e cadeiras. Um homem parou para nos perguntar direcções. Desculpa amigo, a nossa mão cheia de palavras turcas não chega...
As bandeirolas coloridas esticadas entre postes a propagandear diferentes partidos e líderes.
Inventámos metas para  andar. Até às x horas, até aquela paragem. No fundo queríamos era estar sossegados e protegidos do calor. Não vimos nenhum sítio para chá e uma jogatana de gamão, e prosseguimos em frente com o gelado na mente.


À berma da estrada a lembrança da melancia aberta que víramos no dia anterior, alterou os planos. 5 kilos de melancia no saco e a mesma subida do dia antes. Parámos à sombra, ao lado de um canito de brinco azul de plástico na orelha, a comer metade e seguimos caminho de pança cheia. Era sumarenta, mas pouca doce. Talvez fresquinha soubesse melhor.

Parados na entrada a falar com o guarda a dizer que estávamos com a Asli. Os nossos nomes, telefone, telemóvel, ok podem passar. Pelas ruas de mosaicos de cimento colorido, parques infantis e casas todas iguais. Tirando o parque e a moto extra large de pintura de guerra eram poucos os pontos de referência. Fomos dar às traseiras da casa que reconhecemos por causa das nossas meninas estacionadas.

Petiscamos fruta. A espécie de ameixas pequenas e verdes a que chama erik, e a delícia de bebida que a Asli fez para nós. Trouxe das suas viagens pela parte este do país e por acaso reencontrou a bebida da sua infância. Partilhou-a connosco e ficámos fãs. Chamam-lhe café, mas só porque o resultado se parece com café.

O jantar foi por nossa conta. Porque a nossa fama na cozinha está espalhada pelo Couchsurfing. E se alguns não sabem nada, outros lêem tudo o que nos diz respeito e querem comprovar o que se diz..

O fim de noite à conversa no jardim, com chá e uma brisa a soprar. O camião do fumo para mosquitos passa e deixa nevoeiro atrás dele.

Selçuk - Guzelbahçe

Um relinchar aqui, outro ali. O sol por entre os eucaliptos.

Despertámos e arrumámos as tralhas. Um homem com chapéu de cowboy aproximou-se de nós e perguntou-nos se queríamos chá. Ainda não estamos habituados a estranhos a oferecerem chá e não sabemos se é oferta ou conversa de vendedor. Recusámos o chá, mas não a conversa. Mako, era o nome dele. Metade turco, metade brasileiro, mas desde bebé que aqui vivia. E era mesmo um cowboy! Ou pelo menos assim se intitulava.


Pela manhã pedala-se bem, e mesmo com o calor a subir a níveis quase insuportáveis a energia matinal é bastante para lhe fazer frente.
Colina acima, curvas a descer, o mar à esquerda para nos orientarmos. A manhã voltou a passar bem e célere. Uma rotina está a instalar-se em nós, neste pedaleio turco.

Com a hora do cancro a chegar, virámos para a costa balnear e abrigámo-nos debaixo de uma sombra de um café fechado. A praia a escassos metros de nós. Montámos a cozinha e papámos entre conversetas de boca cheia.


Molengámos até a hora do calor começar a desapertar. Mais ou menos. Eram 15:30 e o alcatrão escaldava e derretia. um passo em falso e a chanata ficava colada à estrada.

A viagem seria longa e árdua até Guzelbahçe, cidade da nossa anfitriã.

Quando lá chegámos o bronze à trolha ficou mais vermelho. As pernas e o cansaço acusavam os 92 km marcados no conta-quilómetros.

Asle e o filho foram ter connosco à bomba de gasolina, para nos orientar até casa.
Se há algo que reparamos nesta Turquia Ocidental é o desejo e força com que as gentes querem seguir o modelo ocidental de vida. Que dizer dos vários condomínios privados e casas clonadas que decoravam as colinas de Guzelbahçe? Em tudo nos fizeram lembrar a arquitectura americana.

Para não variar, num final de dia longo, nada como uma subida final para chegar a casa. Algo se passa com as pessoas que encontramos no Couchsurfing. Todas moram nas alturas.

Asle provinha do sudeste da Turquia, mas fixou a sua vida nos subúrbios de Izmir. Recebeu-nos com um sorriso e um abraço , curou o nosso cansaço e despertou o paladar com uma massa recheada com carne, carne picada condimentada, iogurte com alho, sopa de iogurte, limonada fresca e serão passado no jardim da sua casa.

Ainda fizemos um esforço para abrir a pestana e continuar a conversa pela noite dentro...

Abençoada king size bed!

Aydin - Selçuk

Alguns dias são assim, rápidos a passar.

Dissemos adeus à Meltem, montámos nas biclas e pum! Num abrir e piscar de olhos 40 km tinham sido pedalados numa estrada sem interesse, com montes de tráfego, buzinadelas, fumos pretos, obras e buracos!

Os auscultadores tornavam o dia mais suportável e interessante. As bolachas alimentavam as subidas pela serra até uma povoação de estrada onde parámos para fugir ao calor e almoçar. Do outro lado da estrada os autocarros aclimatizados despejavam turistas que ou vinham de Ephesus ou iam para lá.

Ephesus... Património da Unesco. Ruínas de uma antiga glória romana. Tão excecionalmente conservadas que nos sentimos transportados para trás no tempo. Enorme anfiteatro, escavado na colina e com a dimensão desta.
Ephesus... local vedado e guardado por militares. Infinidade de tendas e lojinhas de souvenirs a vender a autêntica experiência turca. Ephesus... o bilhete era mais de cinco euros, o dia já ia tarde e a vontade de nos misturarmos com os turistas não era muita. Memórias de Olympia.
Tirámos a foto por detrás das grades e voltámos para donde viemos.

Algures por estas bandas a casa da mãe de Jesus, Maria, e de um dos apóstolos que com ela veio. Ficámos contentes por passear pelas mesmas paisagens que ela viu. Não foi preciso ver a casa dela e ficar desiludidos com mais uma antiguidade que se tornou atracão turística.

Virámos em direcção à praia, em busca de poiso para a tenda. Pelo caminho e ao nosso redor, um imenso pântano sem possibilidades para acampar. Passámos por um parque de campismo mas ficámos pelo passar.

A praia no fim da estrada. Dois cafés na areia com esplanadas. Algumas pessoas praticantes de kitesurf por ali e uma matilha de cães a descansar nas dunas. Por alguma razão, os cães na Turquia abundam tanto quanto os gatos, mas ao contrário destes, não são pequenos e fofinhos, mas sim enormes e com cara de mau. Fazem lembrar os cães pastores de Sardenha.
Volta para trás, porque campismo com cães à mistura, não é interessante.

Sem muitas mais hipóteses e cansados demais para inventar, entrámos no parque de campismo. Ainda tentámos o regateio, mas o dono era alemão e como tal, imune a vacinado a esses hábitos turcos.

O parque com todo o seu potencial, mas nem de longe valia o dinheiro e as instalações estavam com aspecto abandonado e havia lixo e cocó de cavalo por todo o lado.Vimos pela primeira vez um jipe com mangueiras grossas gigantes a cuspir nuvens de fumo por todo o lado, por causa da mosquitagem.
Adormecemos ao som das dezenas de cavalos que pastavam ao nosso redor. Resignados a servir de passeio para campistas mais abonados.

Aydin

Meltem é uma investigadora ocupada.

Nos dois dias que ficámos em Aydin, só conseguimos estar com ela último dia. Chegámos a uma sexta, e depois de passar o serão a conversar e a beber vinho, ela avisou-nos de que iria acordar cedo. Como membro da universidade e professora, ficou encarregue de vigiar exames durante a manhã de sábado. Como só se sabe a duração do exame na altura, quer professores quer alunos, ao abrir um envelope com as instruções e regras do jogo, não deu para planear grandes almoços ou convívios.
O exame dela foi de três horas....


Nós acordámos tarde e fomos explorar o resto da manhã. Não ao centro, pois a Meltem mora nos subúrbios, mas apenas na zona. Indistinguível de qualquer bairro social que se preze em Portugal. O objectivo era o de sempre: comida! Mas depois de ver passar pessoas carregadas com sacos de vegetais e frutas, trocámos os habituais supermercados e seguimos o rasto dos nativos.
E eis que, encontrámos um pazar! O nosso primeiro. Entrámos e deixámo-nos maravilhar com a quantidade de frutas e legumes frescos. Cheio de pessoas e de barulho, conversas e tilintares de moedas, cores e cheiros, assim é um pazaar na Turquia.
Demos uma vista de olhos, sempre com a carteira no bolso e a máquina fotográfica arrumada. Tentávamos passar despercebidos... Mas em vão! Elaborámos estratégias de compra, escrevemos listas de legumes. Mas no fim, nem as fotos foram tiradas em prol de um look mais natural, nem a carteira resistiu aos enganos e trocas-voltas dos vendedores.  Anos de sabedoria para ganhar mais uns trocos em qualquer negociata.
Saímos desiludidos. Sentimos que fomos enganados por sermos estrangeiros e no fim o saco não vinha assim tão cheio.
Fomos ao supermercado, onde os preços afixados e o código de barras não mentem.


A explicação veio quando chegámos a casa. Meltem, disse-nos que não é  normal comprar meios quilo, duas cebolas ou três batatas! Aqui na Turquia as famílias são numerosas e em cidades mais pequenas, os vendedores não aceitam que se compre menos de 1 Kg e se o cliente leva menos, paga o que pediu mas leve um bocadinho menos...  A razão pela qual aquele limão nos saiu tão caro!

Meltem andava em passo rápido. Tinha um casamento nesse dia e além das indumentarias necessárias e aprumos de maquilhagem, também teria que maquilhar a amiga.
Nós passamos um serão tranquilo em frente ao pequeno ecrã.

No dia seguinte, viva aos pequenos-almoços turcos! Ovos, pão, iogurtes, cafés e chás, tomates e pepinos e sempre azeitonas! Que delícia!
Mais folgada, pudemos ir passear com a Meltem à cidade. Um passeio domingueiro por todos os seus sítios predilectos na cidade.
Junto ao apartamento, uma pista pedonal era utilizada para  caminhar e jogging. Mesmo que as mulheres tivessem um lenço na cabeça.
Na parte mais antiga da cidade, provámos boza. Uma bebida que deve ser bebida fresca, com canela no topo. Muito densa  com um sabor e consistência completamente diferentes para nós, feita de vários cereais e grãos.  Além de saber bem é saudável e no Inverno é o que toda a gente bebe.
Passámos pelo fórum de Aydin,  que como em todo o lado, é a escolha para muita famílias durante as horas de lazer e para as compras que se querem mais fashion.
Ao almoço, num restaurante escondido atrás de um posto de gasolina, onde a Meltem e os colegas costumam almoçar em dias de serviço, apareceu-nos à frente, uma salada e um molho que não identificámos e... jaquinzinhos! Mas sem cabeça.


Já no centro, com um terraço à sombra de trepadeiras, aprendemos a jogar gamão e outro jogo que não sabemos o nome. Tudo ao sabor do sempre presente chá, que por aqui faz a vez das nossas bicas em quantidade de consumo e presença nas ruas.
É engraçado, depois de vir da Grécia, ouvir as mesmas frases e costumes, mas em turco. Ambas as nações acham que os sabores, jogos e tradições são invenções delas e que os outros é que as copiaram.

Aos domingos, a maior parte das lojas estão abertas e os horários das refeições são iguais aos de Portugal. Como num domingo qualquer, o Harry Potter passa na televisão, o sofá é o nosso melhor amigo, a preguiça da cozinha impera e os livros chamam o João Pestana. Foi assim em Aydin.