Castrovillari

Hoje ficámos em casa. Fomos às compras para fazer pela milésima vez os saborosos crepes, escrevemos para o blog, dormitámos, organizámos e comemos.

A Teresa saiu para o trabalho de jurista, de manhã cedo e regressou por volta da hora de almoço, cheia de comidas boas. Alcachofras, pasta com almôndegas e molho de tomate e batatas fritas à rodelas, mas caseiras.


Depois de almoçar, as donas foram dormitar a sesta e o homem ficou no portátil. Quando todos estavam acordados, reunimo-nos à mesa mais uma vez para comer uma dezena de doces/marmeladas que em conjunto fomos pondo na mesa. O doce (marmelata de aranci i ginger) da Maria de Rogliano também fazia parte deste rol.

A música ambiente mais para o final da tarde, foi tango e milonga, não fosse a Teresa amante e praticante desta música/dança.
Entre partilha de vídeos e sítios na Internet, conversas sobre a vida e arrumações de ambas as partes passámos uma tarde relaxadas e preguiçosa, culpa também do tempo nublado, e da chuva miudinha, que só molha os parvos.

E o Alexandre bebeu cappuccinos sem fim...

Ferramonti - Castrovillari

A noite foi atribulada. A chuva era tão forte a bater no tecto de metal, que às vezes acordávamos com ela. Ainda sim, depressa adormecíamos com o conforto de quatro paredes e um telhado durante o tempo de chuva.


O sol decidiu aparecer pela manhã, e nós com ele voltámos à estrada e dissemos adeus à antiga fábrica da Calvin Klein. Ainda houve tempo de trocar os travões traseiros da Ana por uns novos. A ver quanto tempo vão durar estes...
O caminho até Castrovillari não era longo, por isso foi calma a viagem. Sem pressas.

Sabe bem ver o relevo desta bela Calábria a desenrolar-se lentamente. Se se vê uma montanha lá bem ao longe, sabemos que só amanhã a vamos começar a subir. Aos poucos e devagarinho as colinas dão lugar aos vales e estes a mais colinas. Lentamente, as colinas se tornam montanhas ou os vales acabam no mar. Hoje pudemos ver pela primeira vez o mar Mediterrâneo. Mas aquele que se encontra entre a biqueira da bota e o tacão, no mapa de Itália. Vimo-lo entre umas casas enquanto almoçávamos numa qualquer vila.


Junto ao município (câmara), foi o local do manjar hoje. Uma valente sandes de presunto com tomate, enquanto escrevíamos para o blog. Quando retomamos o ritmo do pedal um enorme vale foi-nos apresentado. Nós no topo de uma colinazita ao sul e ao norte a Serra Dolcedorme e o Monte Pollino. Como uma gigantesca muralha a impedir-nos de prosseguir mais para cima em Itália (e mais para o frio). Hoje rumávamos para o seu sopé. A partir daqui, se tudo correr bem, voltamos à nossa direcção predilecta. Em direcção ao sol nascente.

Depois de uma quentinha subida, chegámos a Castrovillari sem sequer saber. Esperávamos mais uns 5 ou 6 quilómetros para lá chegar, mas ao perguntar a um nativo onde estávamos, esclarecemos as nossas dúvidas.
Ao procurar a casa da Teresa, e como já vai sendo habitual nesta viagem, perguntámos a direcção a um desconhecido que acabou por se revelar vizinho da nossa anfitriã! Levou-nos direitinho a casa. Assim não dá luta...

Depois da Teresa chegar do seu lufa lufa no supermercado, e de termos conversado um pouco em casa (pós-banho), fomos com ela e o seu amigo Vincenzo, jantar pizza a uma osteria. Osteria é tipo a tasca cá do sítio (mais ou menos). Pode-se ir para lá beber cervejas e ver jogos de futebol, mas também se pode ir comer por preços mais em conta. Não que as pizzas por cá sejam caras. O normal são 5€ por uma enorme dose de pura divindade, recheada de pecado da gula. Algo que na nossa rica e santa terrinha ficaria na secção dos 10€ ou 15€, num qualquer auto-denominado restaurante italiano ou take away Telepizza, mas com um terço do sabor. Como toda a comida que por aqui se manja (lembramos, património imaterial da Unesco), vai ser difícil voltar a provar algo assim quando daqui sairmos e alguém (não italiano) se oferecer para cozinhar comida italiana. Vai ser difícil voltar a apreciar a massa "scolta" portuguesa. Não que seja má, mas....

Os olhos raiados de sono vermelhos acusaram o cansaço e voltámos todos para o quentinho da casa e para o quentinho de um home made cappuccino. O nosso, entre aspas,  primeiro cappuccino italiano.
Divino!

Rogliano - Ferramonti

Sem pressas...
Sem pressas para acordar, sem pressas para tomar o pequeno-almoço e sem pressas para partir. Depois de aqui estar durante uma semana, não íamos partir a correr de certeza.
Acordámos cedo, preparámos a bagagem e fomos para esta bela cozinha uma última vez. Enquanto uns faziam crepes, outros preparavam bacon, ovos estrelados e feijões. No fim, não sobrou nada deste english breakfast com toque final "à lá crep", recheados com Nutela e marmelada caseira de laranja. Nham, nham!


Soube muito bem descansar esta semana, mas voltar de novo à estrada e receber todas as surpresas que ela trás, é um belo prazer. De novo as paisagens constantemente novas e sempre a passar. Os buzinões e tangentes dos camiões. As paragens em busca de mantimentos ao melhor preço, para as refeições diárias, o fantasma da roda traseira que se pode partir a qualquer momento e os travões da Ana que não funcionam como deviam. De novo o olhar na estrada e no céu, a tentar prever se aquela nuvem vai ou não descarregar, se aquela colina é suficientemente inclinada para tirar o casaco e a busca incessante da estrada certa. A seguir a auto-estrada, a cruzá-la por debaixo e por cima, a intercalar o caminho de ferro. A agitação de uma cidade grande como Cosenza a contrastar com a pacatez do campo. O tráfico de cidade e o parco tractor junto à estrada secundária.
Se sabe bem descansar, é porque é a viajar de bicicleta que lhe damos o verdadeiro valor.


Já com o sol a esconder-se e as nuvens a passar de branco para cinzento, começámos a procurar junto à estrada por um sítio abrigado onde pernoitar. A noite avizinhava-se molhada qb!
Eis que, como sem esperar muito, os céus começam a despejar tudo e mais alguma coisa que lá em cima carregavam. Sem nada à vista, virámos para uma estrada batida e parámos para discutir a melhor estratégia. Um casal de idosos, a 50 metros, abrigados dentro da sua motocicleta de três rodas e caixa aberta, olhavam curiosos para nós... O homem sai e nós aproximámo-nos para perguntar por local abrigado onde montar a tenda. Num Italiano inexistente e com forte dialecto calabrês, lá percebemos que os edifícios atrás dele, estavam desocupados e que por ali não ia ninguém.

Agradecidos, aproximámo-nos, cautelosos e de sentidos apurados para o mínimo sinal que nos impedisse de continuar na nossa demanda por um abrigo. Aos poucos lá nos fomos embrenhando na zona. Primeiro debaixo do tecto, depois nas traseiras do armazém. Uma porta aberta e mais outra escancarada lá à frente. Passado dez minutos depois de falar com o homem, já estávamos a discutir se seria melhor montar a tenda nos escritórios do primeiro andar ou nos espaços abertos do rés-do-chão!

Um local a lembrar os filmes pós-apocalípticos de que tanto gostamos, ou as histórias de de zombies que apenas alguns apreciam no seu verdadeiro potencial. Tudo espalhado por todo o lado. Ganga que não chegou a tornar-se calças, caixotes de trapos, papéis e dossiers, bidons de químicos e esquecidos computadores arcaicos. Tudo numa ténue luz, dum fugaz sol, que ambientava e apimentava o local. Muito divertido este nosso primeiro camping de fim-de-mundo!

Dispusemos os rolos de tecido no poeirento chão do escritório, montámos a tenda, os bancos e arranjámos uma mesita ferrugenta para o jantar. Depois da paparoca, fugimos para o saco-cama e para os sorrisos que apenas dois episódios do Seinfeld conseguem provocar. Tudo ao som de um dilúvio que lá fora se fazia ouvir.

Desta vez tivemos sorte. Vejamos como corre amanhã. Vejamos se os céus nos deixam secos até ao próximo destino.

Rogliano

Ficámos sete dias em Rogliano.
Quando encontrámos o Keith e a Maria, algures na Internet, rapidamente nos disseram que poderíamos lá ficar, ainda que não houvesse muito trabalho para fazer na quinta nesta altura do ano. Não tínhamos a certeza de quanto tempo iríamos por lá ficar. Deixámos as coisas correr com naturalidade e sem grandes pressas.

Lá se foi arranjando uma coisa ali e outra acolá para ocuparmos os dias. Ora arrumávamos a arrecadação, ora limpávamos o celeiro. Cortávamos e moldávamos redes metálicas para salvar as árvores dos ataques de gula das ovelhas. Aprendemos a fazer uma mistura de cálcio para proteger e restaurar as partes feridas das árvores de frutos que povoavam a colina junto à casa. Quando o tempo o deixava, foram assim as nossas manhãs.


Mas mais uma vez, as estadias prolongadas confirmam o tema dominante dos nossos dias: comida!
Se em Gonfaron os dias foram marcados pelos constantes repastos e incessantes momentos culinários, então que dizer dos manjares da Maria? Um dia, Maria e o Keith viviam a "busy life". Um serviço de catering que lhes roubava, literalmente, todas as horas do dia e lhes presenteava com os louvores máximos e as maiores recomendações que o mercado podia dar! Um dia mais tarde, decidiram trocar a "busy life" por um pedaço de "good life", na terra natal da Maria. Claro que trouxeram com eles toda a experiência de anos acumulados de trabalho. Claro que fomos bem recebidos à mesa. Claro que durante sete dias e catorze refeições, nunca comemos a mesma coisa duas vezes e cada momento à mesa era um momento especial. Sempre decorado com cores e sabores diferentes, ingredientes novos cozinhados de forma familiar e ingredientes familiares cozinhados de forma diferente. Refeições italianas com ares de Inglaterra. Podemos não ter pedalado até Inglaterra, mas ficámos com o sabor na boca, das coisas que por lá se comem. Desde o "Sunday roast" ao "English breakfeast" na manhã da nossa partida.
E como se não bastasse, os últimos serões foram passados a vibrar com os últimos episódios e a final da primeira edição do Masterchef New Zealand! Mais comida!


No dia que chegámos, entre conversas e troca de histórias, ficámos a saber que em Rogliano, vive um barbeiro diferente. Pequeno de estatura, mas grande de espírito e personalidade. Nem imaginávamos que uma semana depois de ver o seu vídeo no Youtube, a cortar barba e cabelo a um músico enquanto este tocava num festival da terra, o Alexandre iria receber do mesmo tratamento. Com um local de trabalho a transpirar Reagge, Bob Marley e uma grande amor pela música, a barba farta deste Nomadicla, foi cortada com movimentos que mais se assemelhavam a dança do que a barbeiro. Uma bela experiência esta de ir ao barbeiro em Itália.


E que dizer dos canídeos Rocky e Billy e da restante "animal farm"? Cães, gatos, coelhos, ovelhas, galos e galinhas todos em perfeita comunhão uns com os outros, todos amigos e compinchas de longa data e todos amigos da malta! Todos os dias ao sair de casa, os bons dias do desmiolado Rocky e a preguiceira do inteligente Billy. Todos os dias ao sermos avistados, os mascares de pastilhas das ovelhas cessavam e davam lugar aos mês.

Os dias passaram rápidos neste pequeno santuário de paz e tranquilidade nas montanhas de Calabria. Por vezes (bastantes), a Maria punha uma música enquanto preparava os cozinhados ou enquanto dava um arrumo à cozinha e ao seu jardim. A música ecoava até ao local onde trabalhávamos e misturava-se com a cantoria da Ana, enquanto colocava uma cerca ou serrava uns ramos.
De vez em quando, os familiares e amigos vinham da cidade fazer umas visitas e partilhar as refeições connosco. Ainda tivemos a oportunidade de jogar Wii com o Fabio e a Daniela.


Para não variar, sempre que passamos tanto tempo no mesmo sítio e em especial, quando somos tão bem recebidos, começamos a deixar que o sítio entre em nós. Lá para o fim da semana, os pequenos-almoços, a beber "english tea" e a olhar pela janela da cozinha para as ovelhas e animais, para as colinas imponentes por detrás e para o bom e o mau tempo, começaram a parecer-nos familiares, como se ali vivêssemos desde sempre e desde sempre conhecêssemos a Maria e o Keith.

Gizzeria Lido – Rogliano

Sem vento e em absoluto silêncio. Esta floresta junto à praia, com pinheiros e eucaliptos queimados transmitia sensações estranhas. Recebemos uns SMS quando ligámos o telemóvel. Parece que os nossos amigos ciclistas franceses esperaram por nós para que tentássemos acampar todos juntos. Mas nem sempre as tecnologias de comunicação funcionam a 100%.

Arrumámos as coisas, comemos uns biscoitos e umas laranjas (ainda tínhamos umas quantas do campismo anterior) e seguimos caminho. Dois quilómetros mais à frente, vimos o sítio onde os nossos companheiros armaram barraca. Mas já lá não estavam. Eles são demasiados rápidos e nós demasiado lentos.

Pedalámos uns valentes e rápidos 10 ou 15 quilómetros. Podia ser que os conseguíssemos apanhar... Mas era domingo e tudo estava fechado. Por isso quando apareceu um supermercado aberto, aproveitámos para orientar as refeições do dia. Enquanto um estava às compras o outro ficou cá fora. E eis que, para não variar, um italiano se aproxima para perguntar de onde somos. Parece que quanto mais para norte vamos, mais curiosas as pessoas ficam. Este italiano, tinha trabalhado em França durante uns anos e os seus colegas eram Portugueses. Tinha metido conversa com o nossos ciclistas franceses, no mesmo sítio onde nós estávamos agora. Mas há uma hora atrás... Mas deu-nos umas boas indicações, para chegarmos ao nosso destino pelas estradas menos inclinadas.

Na vila seguinte, virámos para o interior. Começámos a dizer adeus à costa e ao mar. Começámos a subir, a suar e a ficar cansados. Depois do ritmo rápido da manhã os 16km que se seguiram foram feitos a passo de caracol, com demasiadas paragens para descansar (às vezes de 100 em 100 metros) e com paragem para o almoço. Finalmente, estávamos a conhecer a outra face de Calábria. Menos povoada e campestre. Muitas montanhas e estradas sinuosas. Muitas casas de campo e vilas perdidas nos montes. Cabras, galinhas, vacas e cães todos à solta ou presos, pintavam o verde e castanho selvagem da flora.


Mas a lentidão e o cansaço de subir, de passar horas a subir até aos 850m têm as suas regalias. Em certos locais, podíamos ver toda a Calábria que havíamos pedalado os últimos dias. A partir de certa altura, sempre que olhávamos para o mar, o vulcão Stromboli e as suas vizinhas ilhas decoravam o horizonte, assim como os raios que o sol conseguia romper através das nuvens para tentar aquecer o mar Jónico.
Foi lento... mas depois de entrar no ritmo, até foi fixe. Já lá em cima, relembrámos o frio do Inverno nas alturas e quando começámos com as descidas e subidas, ui ui!

Com o sol despedir-se, e às portas inclinadas de Rogliano, decidimos perguntar pela rua dos nossos anfitriões. Seria estranho que eles vivessem dentro da cidade, pois sabíamos que tinham campos cultivados, ovelhas e galinhas a fazer parte da família. Um senhor sai de casa e antes de entrar no carro é abordado pelos dois ciclistas de biclas gigantes e de aspecto alienígena. "Têm que voltar atrás, virar à direita, subir e virar à esquerda lá em cima", dizia ele. "Se forem pela cidade é mais longe e não vos convém", a estrada é "brutissima", avisou-nos ele. Ok. Voltámos para trás, descemos, voltámos a subir (e que subida!!) e lá mais à frente, já com a escuridão a dominar, um carro junto à bifurcação. Ele parou para olhar o estranho casal e nós aproveitámos para obter mais indicações. Num golpe do destino, a senhora do carro era irmã da nossa anfitriã! Deu-nos indicações precisas e avisou-nos que era mais um quilómetro de subidas e descidas. Nada de especial, mas na escuridão, depois de um dia em montanha e com o sempre presente fantasma da roda traseira que se podia partir a qualquer momento, estávamos cansados!

Ao sentirmo-nos a aproximar de uma casa, começámos a ter dúvidas se seria aquela, mas nem pudemos deixar-nos levar porque aparece um carro e pára ao nosso lado, abre a janela e diz: "Anna? Alex?" Nós acenámos positivo e ele sai do carro e apresenta-se "Hi, I'm Keith!". Mais uns 300 metros e já tínhamos passado os portões e cumprimentávamos a Maria.

Acho que fomos, até agora, os mais autónomos na descoberta da sua casa. Eles dizem que até o carteiro se perde para lá chegar. Como nenhum deles, tinha visto as nossas sms's nos 2 últimos dias, chegámos um pouco de surpresa. Se não fosse a irmã  da Maria a telefonar-lhes, teríamos chegado mesmo 100% sem sermos esperados. Fizemos o nosso jantar, pois eles já tinham comido, e conversámos um pouco antes de irmos descansar. Vamos ver durante quanto tempo vamos descansar...

Gioia Tauro – Gizzeria Lido

Para pequeno-almoço esticámos a mão e tivemos citrinos! Claro!
Tirando as laranjas de Ribera, que até agora foram as melhores que já comemos, é importante que esclarecer que nada se compara às laranjas da Mónica. Não porque é nossa amiga, ou porque são portuguesas, ou algarvias, mas porque é verdade.
Acordámos cedo depois de uma noite de perfeito descanso.
Saímos com os sacos carregados de tangerinas fresquinhas acabadas de apanhar.
Uns bons quilómetros à frente, a meio da manhã, estávamos nós num muro na berma da estrada a manjar um pão antigo de Gallico, biscoitos e tangerinas, e dois ciclistas de estrada passam por nós. Entre o que mal percebemos terem dito, resolvemos corrigir e dissemos Portogalo mais alto, não fossem eles ficar com a ideia que éramos italianos. Voltaram para trás. Lembranças do magnífico Joaquim Agostinho, recordações dos tempos de juventude onde também eles faziam ciclo touring, umas trocas de emails e depois de nos ovarem com bravis, sorrisos e palmas continuaram o seu treino diário, no mesmo sentido que nós. Quando regressaram, voltaram a fazer-nos cócegas no ego e a obrigar-nos a sorrisos embaraçados, com mais bravis que gritaram do outro lado da estrada.
Ao almoço mais tangerinas comemos e ao jantar comemos tangerinas.
Numa paragem perto da hora de almoço, comprámos dois sacos de pizzas e pão, com direito a uma oferta de brioche e um barquinho de creme e chocolate, gentileza do empregado, sempre a sorrir e a irradiar energia por toda a padaria.
Os nossos amigos franceses, Tom e Pauline, e nós mantinhamo-nos em contacto através de sms. Por volta das 15h30, mais uma vez, estávamos já à procura de lugar para acampar. Avisámo-los do sítio onde pretendíamos chegar com antecedência, mas só mais tarde nos responderam e descobrimos que estávamos a 3 km de distância do seu acampamento. Nós ficámos perto da praia, num pinhal partilhado com eucaliptos, que pelo aspecto dos troncos tinha ardido à pouco tempo.

Gallico – Gioia Tauro

Ficou combinado que o último a acordar era um ovo podre! Mentira! Mas ficou combinado que para termos uma despedida em grande, sairíamos de casa às 7h30m. Dirigimo-nos para o café onde nos encontrámos e quando entrámos o que vimos não vamos esquecer: montras gigantes, com tabuleiros gigantes, cheios de croissants empilhados, separados pelo creme que continham no interior. Nutella, e como se a nutella não bastasse, no mesmo croissant, adicionavam uma esguichada de chantily e salpicavam com açúcar em pó. Chocolate, ricotta, chantily, pistachios, doce, o que consigam imaginar de exagero de doce. E toda a gente lá dentro segurava um na mão e comia com a boca cheia e um ar de felicidade. Todos menos a Ana...
Despedimo-nos e prosseguimos mais uns quilómetros até à padaria que o Luca nos tinha ensinado, para abastecer com o delicioso pão antigo, feito sem se adicionar fermento. Foi a vez da Ana satisfazer o seu palato.
Depois sim, pudemos continuar, ou melhor, iniciar, viagem.
Mais uns quilómetros e começámos a sentir uma ligeira inclinação no terreno. Sabíamos que tínhamos uma subida de muitos quilómetros pela frente. Felizmente, que o Domenico e o Domenico, a quem todos chamam pelos diminutivos de Mimmo, cruzaram-se connosco em sentido contrário e resolveram voltar para trás para falar um bocadinho connosco. A meio da conversa ofereceram-nos um café e nós aceitámos. Seguimos em fila atrás deles até à cidade mais próxima até ao café.
Podíamos escolher o quiséssemos e lá marchou mais um croissant com doce e um café. Aqui chama-se cornetto, e ai de quem, ai de quem lhe chame croissant. Nunca se poderá comparar um croissant a um cornetto, tão completamente cheio de doce que nem sequer se consegue fechar ou dar uma trinca sem que saia creme pelo lado oposto, ou se fique com um bigode açúcar e creme.
Acrescento que o Alexandre, antes de sair de casa ainda teve tempo de comer um panettone com café para fazer companhia à Domi, contabilizando assim, três cafés/pequenos-almoços durante a manhã.
O Mimmo e o Mimmo foram o toque especial para nos enchermos de energia para a longa subida que se seguia. Entre curvas e contracurvas fomos subindo, subindo, subindo.
E mais à frente já sem subidas a fazer, parámos perto de um posto de gasolina, num muro resguardado do vento, a preparar o almoço.
A estrada que se seguiu era tranquila, e cheios de pica dos quilos de açucar ingeridos pela manhã, num instante fizemos os quilómetros que queríamos fazer nesse dia. Eram 15h00 quando começámos a procurar sítio para pernoitar.
À nossa volta campos de oliveiras, limões e laranjas. Num rápido vislumbre, ao passar, vimos uma estrada secundária, de terra batida, com uma corrente que dava para passar para o outro lado e resolvemos verificar se seria um bom sítio para ficar.
Montámos a tenda num instante.
Uma relva fofinha, verdinha fresquinha, oliveiras fila sim, fila não, sempre de duas em duas laranjeiras. Laranjas, tangerinas, mandarinas, clementinas. É pró menino e pra menina! Centenas de bolinhas cor de laranja penduradas em bolas gigantes de verde vivo, que se deixavam trespassar em alguns sítios pelos raios e sol que tocavam no solo. Se olhássemos com atenção, escondidos entre as folhinhas mais baixas das ervas rasteiras, havia montículos de formigueiros, e em muitos sítios sem ervas, víamos estradas de terra revolvida com buracos no fim de uma em linha recta, que davam acesso a estes fantásticos túneis. Espalhados aqui e ali víamos cartuchos de espingarda, dando-nos a certeza que este sítio estava pejado de coelhos/lebres. Depois alguns minutos em silêncio a ler e escrever, vimos alguma coisa a mexer-se debaixo da terra e a percorrer um dos caminhos de terra junto da nossa tenda.
Não comemos coelho à caçador ao jantar, mas focaccia e pizza que já tínhamos à nossa espera nos sacos. Seguiram-se mais dois episódios do The Walking Dead. Tivemos imenso tempo para fotografias, para passear até ao fim do pomar, ler, escrever e descansar no meio deste verde verdejante cheio de clorofila. Levantar a mão e colher uma laranja, que comíamos de seguida. Lembrando-nos do Andrea de Petrosino, a dizer que entre a fruta ser apanhada e colhida se perdia uma valente percentagem de nutrientes. Nós colhemos a vitamina C directamente da fonte. Melhor, só abocanha-la ainda na árvore.
Gostava de agradecer ao dono deste pomar por um dos campings mais tranquilos e bonitos onde já estivemos.

Gallico

Um dia fácil. Sem ter que pedalar, e depois de alguns dias de camping, nada como acordar e não ter que desmontar a tenda.
Um dia sem ter que pedalar preocupado com a roda traseira e sem saber se ela vai aguentar ou não.
Depois do pequeno-almoço, fomos desmoê-lo com um passeio ventoso por Reggio di calabria. Mas antes fomos à padaria para ficarmos a conhecer uma das especialidades de Calabria. O pão e a diversidade que aqui se faz.
Luca mostrou-nos os cantos à casa e a conversa fluiu assim como o passeio. Foi interessante quando entrámos numa minúscula gelataria e atrás dos trinta gelados diferentes, estavam 5 ou 6 pessoas a olhar para nós e à espera que lhe indicássemos os sabores. Segundo Luca, gelados como estes não se encontram em todo o lado e por isso fez questão de nos apresentar. E sim... eram mesmos bons estes primeiros gelados italianos que provámos.
Depois de mais umas voltas e um visita ao supermercado, regressámos a casa para almoçar com a Domi.
A Ana inspirou-se a seguir ao almoço. Passou a tarde toda a responder a emails atrasados, a escrever posts e a pôr a sua vida digital actualizada. Enquanto isso, o resto da malta, ficou com o Luca a jogar computador e a conquistar Itália nos tempos medievais. Era o dia de folga do Luca. Polícia de profissão, passa os dias a capturar criminosos informáticos. Já o faz à bastante tempo.
Não se passou muita coisa durante o resto do dia, o que até sabe bem de vez em quando. Não fazer nada e passar o dia entre amigos e paredes.
Entre todos cozinhámos o jantar, cada um a trazer para a mesa aquilo que lhe apeteceu fazer.
Depois de passar o serão a viajar com o Domi e o Luca nas suas fotografias de viagem, fomos todos para a cama para acordar cedo.

Fiumefreddo di Sicilia - Gallico

O dia começou cedo para os trabalhadores dos pomares perto do nosso acampamento! Foi a desculpa ideal para arrumar as coisas e começar a pedalar cedo.
Serpenteámos pelas estradas até chegarmos à principal. A partir daqui já só avistávamos os Etna às vezes, entre os intervalos de uma colina, pomar ou edifício. Cada vez mais distante, cada vez menos visível.
Até à próxima Etna.
Num pequeno posto de gasolina parámos. Descansámos um pouco e extasiados debatemo-nos com a vontade de fotografar o local onde outra dupla de ciclistas, os nossos gurus Going Slowly, dormiram, quando visitaram Sicília há uns anos atrás.
Seguimos caminho a subir, na estrada junto à costa, aos zigue-zagues, recordando-nos da Riviera francesa.
Mais à frente, voltámos a parar para comer qualquer coisa. O pequeno almoço tinha sido fraco, e a subida ajudava à fome.
No meio dos carros, que subiam de ambos os lados, aparece um casal de ciclistas numa tandem a pedalar cheios de energia. Nós meio aparvalhados lá acenámos à sua passagem. Mas, uns metros à frente e a rapidez que traziam travou e desmontaram da bicicleta. A bicicleta que tínhamos visto em Pachino, era esta! Eram eles!
Avançámos em direcção a eles já com sorrisos rasgados nas caras. Apresentações feitas e foi um sem fim de conversa sobre bicicletas e viagens. Como fazem isto e aquilo? Ah, nós também! Quando partiram? Onde vão?
Estratégias, truques. As perguntas e a curiosidade não se esgotavam. Já a olhar para os relógios, porque nesta vida de andar de bicicleta, é importante estar já confortável dentro da tenda quando o planeta gira e deixamos de receber a luz do sol, onde estamos.
Os 4 em fila pela estrada, seguíamos orgulhosos desta nossa procissão de cycling touring. Vamos mostrar ao mundo que somos muitos e contentes. Já que estávamos todos a explodir de alegria deste encontro. Ao que parece o Tom e a Pauline pedalaram toda a Sicília a ouvir os locais a dizer que mais à frente tinham outro casal como eles. Finalmente, no último dia na Sicília, nos últimos quilómetros que faltavam pedalar, encontraram-nos e pedalámos juntos.
Parámos num jardim para fazer um almoço quentinho no fogão. Mais uma vez, espreitávamos e mostrávamos o material uns dos outros, o fogão, a loiça, o que se come, como se cozinha, como se lava, tudo era interessante. Parecíamos crianças a mostrar brinquedos uns aos outros.
Nós tínhamos uma casa à nossa espera do outro lado do Mediterrâneo, mas os nossos novos amigos franceses não. Trocámos umas sms's com os nossos couchsurfers, na esperança de que pudessem albergar mais um casal de ciclistas. Mas só tinham espaço para dois ciclistas e as suas tralhas. Já nos imaginávamos num serão divertido todos juntos e quentinhos.
O Tom e a Pauline assim que confirmámos que teriam de acampar, puseram a 27ª mudança da sua tandem e aceleraram estrada fora, para conseguirem ter tempo de chegar ao outro lado e procurar uma lugar para acampar ainda com luz. Nós seguimos atrás deles, com a língua de fora, mas ao fim de meia hora já os tínhamos perdido de vista. Será que pedalar numa tandem os torna mais rápidos? será por serem um pouco mais novos que nós? Será que nós amolecemos porque a cada dois dias temos uma cama quentinha, e uma dia de descanso?
Mais à frente voltámos a encontrar-nos. À entrada de Messina parámos na berma onde eles tinham encostado para comer chocolate. Antes do porto, visitámos uma padaria para biscoitos e pão saciarem a nossa fome titãnica.
Já no porto, sofremos um bocadinho porque o senhor da bilheteira achava que a bicicleta deles era grande de mais para o barco. Mas com uns telefonemas e umas conversas com o pessoal do porto e já estávamos todos a conversar alegremente e com os bilhetes na mão, todos contentes por termos mais uma hora com os nossos amigos.
Quando chegámos à Villa San Giovanni, já era noitinha. Nenhum de nós gosta e costuma pedalar de noite, e por isso apressámos as despedidas e separámo-nos. Nós para uma casa quentinha, eles para um hotel. Já era escuro demais para procurar sítio e acampar.
Num instante chegámos a Gallico. O Luca veio ter connosco ao café combinado e seguimos atrás do carro até sua casa.
A casa era fantástica , mas ainda não estava acabada, pequenos acabamentos de que o Luca se encarregava e que faziam toda a diferença. Tinham painéis solares que forneciam energia a toda a casa, e um quadro de electricidade que permitia desligar e ligar cada ficha, interruptor, quarto em separado, e descobrir mais rápido origens de curtos circuitos. Pequeninnas coisas, mas que mostravam que este jogador de Risco, com vários troféus de primeiro lugar, pensava na sua estratégia com muita antecedência, antes de mandar as tropas para a guerra.
O jantar fez a Domi quando chegou do consultório e estava uma delícia. Os 4 esparramados nos sofás tentámos prolongar o serão mas foi difícil esconder os bocejos e os olhos cansados.

Catania – Fiumefreddo di Sicilia

A família despertava e saía de casa às 8 da matina. Nós com eles saímos.
Ermano saiu connosco, para nos guiar a uma boa padaria da metrópole, não muito longe da sua casa. Tudo normal até aqui, não fosse o facto de isto ser uma grande cidade, ser hora de ponta e o Ermano ir de carro e nós atrás dele de bicicletas, no meio de estradas multi-faixas, lambretas e aceleras, no meio do trânsito, de ramelas nos olhos. O que vale é que era sempre a descer!
Depois de alguns minutos de agitação, lá comprámos o pão e seguimos caminho, determinados a sair desta cidade o mais depressa possível. Montámos no selim, e começámos a batalha dos semáforos, carros mal estacionados, buzinadelas por todo o lado e enxames de vespas que faziam razias a tudo e todos, e carros a enfiarem-se por tudo o que era sítio.
Depois de alguns minutos stressantes a seguir a manada, saímos das bicicletas, subimos o passeio e fomos a andar até sair da cidade e do caos. Ainda demorou um bom bocado, mas antes tarde e inteiros do que espatifados e stressados.
De volta à estrada, já nos arredores de Catania, uma descida e um buraco sorrateiro, decidiram fazer um grande barulhão quando a roda traseira foi lá parar a grande velocidade. Ainda me pus a olhar para ver se estava tudo bem com a roda, mas não se via nada de anormal.
Hoje seria dia de campismo. Nada de horas marcadas e trocas de sms's. Nada de procurar ruas e perguntar por vilas e caminhos. Nada de apresentações, adeuses e bons dias. Nada de quatro paredes e tectos. Hoje iríamos pedalar até nos apetecer, montar a tenda onde calhasse e adormecer com o vento lá fora.
Seguímos por estradas secundárias, junto à costa, maravilhados com os berçários das laranjas, oliveiras, limões e tudo o que era citrinos típicos desta ilha.
Lá para o meio da tarde, naquele que seria um dia perfeito de pedaleio junto ao mar com laranjas por todo o lado, estradas desertas e o Etna a embelezar a paisagem, um barulho veio estragar o dia. A roda traseira estava a roçar nos travões. Não era culpa dos travões. Muito mais grave. Depois de um dia a pedalar sobre uma roda torta, sempre a piorar, finalmente foi demais para ela. Tínhamos um problema.
Trocámos os alforges traseiros das bicicletas, para tentar pôr menos peso na roda e fomos devagar devagarinho, até à primeira vila que nos apareceu, com a esperança de algo que se assemelhasse a um entendido de bicicletas. Pergunta ali, vai para ali. Pergunta a outro, vai para acolá. Lá encontrámos um "gommista". O negócio dele eram pneus de automóveis, mas mantinha um negócio paralelo de bicicletas e peças sobressalentes.
Com muita técnica e instrumentos arcaicos, lá foi endireitanto a roda ao sabor do tacto e anos de experiência (espero eu!), até que a tortuosa se assemelhou mais a uma direita. Mas o aro já apresentava rachas junto aos raios e ameaçava partir de um dos lados. É o princípio do fim... da roda traseira!
Rezando para que o aro aguentasse, não o resto da viagem ou o resto da Sicília, mas apenas o resto do dia, procurámos no lusco fusco por um poiso recatado onde montar a tenda.
Num terreno baldio, com o Etna por detrás e um aro a morrer, descansámos as nossas preocupações até ao dia seguinte.

Augusta - Catania

É o principio do fim... da Sicília.
Hoje partimos em direcção a Catania. A segunda maior cidade da ilha, terra de artistas.Bela cidade antiga no sopé do Etna e banhada pelo mediterrâneo. Pelo menos assim nos venderam o postal. Mas tínhamos visto as luzes de Catania, no dia em que fomos jantar com os amigos de Maria. Perguntei-lhe na altura se Catania era tudo aquilo. Aquele aglomerado de luzes que rivalizavam em tamanho com o próprio Etna.
Pode ser uma bela cidade nos postais, mas para quem acorda um dia em Augusta com planos de entrar em Catania de bicicleta, não deixa de ser muito assustador. Uma cidade grande é uma cidade grande, seja lá onde for.
Dissemos os adeuses a Maria e ao Iuri. Fotos para aqui e fotos para ali e de novo no selim. Embora ainda faltem alguns dias até sairmos de Sicília, desde Pachino que nos sentimos a dizer adeus a esta ilha gastronómica, cheia hospitalidade e de boas pessoas.
A estrada não era difícil. Nada disso. Mas entrar numa grande cidade implica stress (excepto na cidade de Nice, claro). Com o aproximar, começam a aparecer o lixo e as indústrias dos subúrbios, o tráfico aumenta, os camiões multiplicam-se, as faixas de rodagem redobram e as auto-estradas começam a aproximar-se. Tanto, que sem darmos por isso, fomos parar a uma via rápida! Não é muito interessante andar de bicla assim...
Quando, finalmente, conseguimos sair dela e entrar nas ruas da cidade, a placa de Catania aparece para nos dar as boas vindas. Suja e no meio de uns armazéns de mecânica.
Estradas esburacadas, passeios irregulares, uma misturada de estacionamento sobre eles, lixo por todo o lado. Os primeiros minutos em Catania, recordavam-nos as grandes cidades africanas.
No parque onde almoçámos, a curiosidade dos nativos não podia faltar. Olha para aqui, aproxima dali, pergunta acolá e quando damos por isso estamos a responder a perguntas com a boca cheia de pão e rodeados de olhares curiosos. Mas se não dermos muito troco na conversa o interesse acaba por desvanecer.
Cansados da cidade, procurámos refugio na casa da Laura. Uma mãe de família, experiente no Couchsurfing, recebeu-nos de braços abertos, mas com a mesma e já cansada conversa de anfitriã. Não houve uma ligação imediata. Mas ainda assim, não nos podemos~queixar. No meio da metrópole que é a Catania, encontrámos uma família que nasceu e cresceu aqui e têm "grande cidade" a correr-lhe nas veias. Com tudo o de bom e mau que isso possa trazer.
Laura tinha as suas tarefas diárias e não houve muita conversa com ela. Já com o marido, Ermano, a noite desenrolou-se ao som de pratos e talheres, perguntas e respostas para ambos. Sempre com a simpática cadela Luna a pedir festas e mimos.
Fomos para a cama, cansados e saturados de grandes centros populacionais.
Estamos a precisar de fazer um camping antes de sair da Sicília.

Augusta

Que bela vida esta! Pedalar na Sicília resume-se a levar com molhas, descansar um dia. Pedalar forte e feio, descansar um dia. Pedalar pouco, descansar um dia. Pedalar ainda menos, descansar dois dias! A este ritmo, vai ser difícil sair daqui, quanto mais chegar à Nova Zelândia.
Pela primeira vez na nossa história de Couchsurfing, depois de sacos cama no chão, camas de casal, divisões a partilhar com o anfitrião, camas de solteiro, escritórios, salas, quartos só para nós ou verdadeiras mansões vazias, foi aqui, em Augusta, na casa da Maria, que dormimos num sofá (couch)!
Iuri, o gato de sete meses e pata coxa, não nos presenteou com a sua presença durante a noite. Mas de manhã veio todo curioso cheirar os primeiros hóspedes que esta casa recebe. Como manda a tradição, crepes de manhã, café, chá, biscoitos, e mais café, iniciaram esta bela jornada.
Antes do almoço, fomos dar uma volta pela cidade. Com a Maria, passamos pela porta de entrada da cidade, construída pelos espanhóis antes do Colombo chegar às Américas, passeamos pelo jardim e vimos a rua principal da cidade que desemboca num beco sem saída construído pelos militares, junto ao mar.
Augusta, revela-se cheia de história, mas escondida sob indústrias e bases militares que polvilham a baía e toda a zona em redor. Até gigantescos hangares de dirigíveis destoam na paisagem. Ainda assim, Maria mostrou-nos alguns cantos da casa que imaculados escondem surpresas. Vistas imaculadas e curiosas do Etna. Recantos onde os pescadores se escondem, ou pequenas aldeias desertas, durante o Inverno, mas cheias de personalidade e perspectivas sobre a Catania e o Etna.
Abençoada Augusta e obrigado Maria, por ter presenteado as nossas barrigas com o já esquecido sabor de peixe grelhado e salada ligeira ao almoço! E como se não bastasse, um pesto caseiro com esparguete selou as nossas bocas por hoje. E diz a Maria, que não gosta de cozinhar!
Entre visitas aos arredores, siestas, cannolis, cafés, refeições, actualizações de blog, email's enviados, brincadeiras com o Iuri, fotografias partilhadas, conversas por aqui e por ali, lá se construiu mais um dia na Sicília.

Pachino - Augusta

Se continuarmos na Sicília muito mais tempo, bem que podemos dizer adeus às bicicletas, vendê-las ou dá-las, e começar a rebolar. Em Sardenha avisavam-nos que eles aqui na Sicília eram um bocadinho mais curvilíneos. Não que encontremos pessoas gordas, mas a verdade é que estamos sempre a comer. Muito e bem! Não sei se existe uma expressão para quando se come assim mas acho que deveria ser "comemos, à grande e à siciliana/italiana".
E ja temos comentários de como no nosso blogue há sempre constante o assunto da gastronomia.
Estamos na Sicilia meus amigos... a comida italiana é património imaterial da Unesco.
Para adiantar tempo comemos umas sandes antes de sair, mal sabendo o que nos esperava para o pequeno-almoço, na casa ao lado. Já de barriga cheia, não conseguimos recusar o que tinham preparado para nós. E assim lá comemos mais uns pãezinhos com doce, e bebemos um delicioso leite de amêndoas caseiro, acabado de preparar.
As despedidas foram-se fazendo entre sessões de fotografias de grupo, últimas verificações de trajecto e brincadeiras de quando chegarmos à Nova Zelândia avisarmos para se abrir o champanhe.
Estes 3 dias passaram a correr e souberam a pouco. Foi uma experiência de Couchsurfing, mas podia não ter sido. Sem Couchsurf, a Giusi acolhe pessoas, amigos, viajantes, e igualmente ela parte à aventura à procura dos outros, há já muito tempo. A bondade existe e ela acredita nela.
O vento estava em sentido contrário. Custou-nos um pouco ao início e depois de 3 dias só a comer. Mas em 50 km chegámos à bela Siracusa, a cidade dos limões, a horas para um almoço com vista.
Um almoço que mais parecem gulodices, de tão bem que sabem. A acompanhar o calor do sol a aquecer a roupa e a pele, a fazer-nos fechar os olhos, e a sentir uma molenguice de preguiça.
A Maria que nos esperava em Augusta relembrou-nos dos nossos compromissos.
Serpenteámos junto aos muros que nos separavam do Mar Iónico, a rebentar nas rochas a poucos metros de nós. Entre os precipício para o mar e as fachadas antigas dignas de uma cidade histórica, sentimo-nos no meio de um filme italiano, cheios de sol e mar, a passear de bicicleta.
Uma paragem num posto de gasolina, e a curiosidade típica dos sicilianos a fazer os dois trabalhadores aproximarem-se cheios de perguntas. Meio incrédulos, meio gozões disseram-nos adeus intrigados e divertidos sem tempo suficiente para perceberem como é possível viajar de bicicleta.
Uns 10 km a mais do que nos mostrava o mapa do Google, juntaram-se a mais 20km feitos por uma estrada repleta de chaminés fumegantes, cheiro a químicos, fábricas feias, fizeram lembrar-nos da famosa nacional N10. Ao fundo a destoar de toda esta poluição visual, e não só, o Etna a erguer-se de uma nuvem, coberto de neve, que os sicilianos, dizem conferir-lhe um aspecto de bolo, não fosse esta uma terra onde a comida é prioridade.
A Maria surpreendeu-nos esperando por nós junto à única entrada para cidade. Seguimos atrás dela, e como não podia deixar de ser, num dia de mais de 80km, os últimos quilómetros foram a subir. Para terminar em grande.
Uma hora de carro depois e estávamos nós em Buccheri,na sala da Alfina, à espera que chegassem o resto dos amigos. Sem trocarmos uma palavra, imaginámos, cada um para seu lado, mais 2 ou 3. Qual não foi a surpresa quando depois de tocarem à campainha vemo-nos a cumprimentar três casais e os respectivos pares de filhos de todos eles!
21h30 e a fome apertava. Seguimos em fila, como num baptizado, todos à espera uns dos outros, para o restaurante. A mesa reservada com 13 lugares, sem contar com os bebés que se sentavam ao colo, ou nos carrinhos.
dois bebés, três mais crescidos e um na barriga mostraram-nos outra parte da vida siciliana que ainda não tínhamos visto.
Comemos pizza, acompanhada de risos divertidos, conversas, fotos e choraminguices de sono.
Regressámos a casa, a lutar ferozes com a força hercúlea que as pálpebras tinham ganho, durante uma hora embalo de curvas, altos e baixos, em estradas sem iluminação.

Pachino

Ás vezes encontramos sítios que nos fazem lembrar de casa.
As caras das pessoas e as suas rotinas e conversas. A comida e a sua relação com esta. Maneiras de pensar sobre os locais onde se vive. Pachino é um destes sítios.
Situado na ponta sul de Sicília, com abundante mar para onde quer que se olhe, vastas plantações e um ambiente relaxado. É uma cidade que sofre com o calor do Verão. Todos os nativos têm cisternas de água para se aguentar durante as frequentes secas. Mas mesmo sofrendo com o calor, as pessoas que aqui vivem gostam de aqui estar.
Roberto e Giusi. Filhos da terra. Embora tenham lavorado durante algum tempo noutras partes, para aqui voltaram e construíram uma família e uma casa. Todo o dia a trabalhar, mas sem grandes pressas. Aqui não se sente o stress. Acorda-se, toma-se a colazione, vai-se para o trabalho ou para o campo. Limpa-se alguma coisa aqui, ou faz-se a manutenção do carro ali. Volta-se para o almoço. Os miúdos a partir da 13:30, os adultos às 14:00... Vai-se fazendo o dia à medida que ele corre. Sempre com comida da terra. Pastas e verduras, vinho e laranjas, doces de ricota e amêndoa. Sempre o expresso no fim. Nos entretantos lá se experimenta o melhor que esta terra prometida têm. Desde Sardenha que ouvíamos falar dos manjares Sicilianos. Mas algo nos cativou desde a primeira vez que entrou nos nossos ouvidos...
Nesta ilha, tantas vezes invadida e povoada por tudo o que foi império no Mediterrâneo e que por aqui deixaram tradições e costumes, resultaram em algo que apenas em sonhos portugueses se podiam ver. Ouvimos nós dizer, como que em segredo corriqueiro destes mares, que por aqui as avós desde tempos imemoriais, alimentam as recordações de infância das crianças com gelados ao pequeno-almoço. Gelados como pequeno-almoço! É isso mesmo! Nós podemos agora dizer que é verdade! A terra prometida existe mesmo. Imaginem as vossas memórias de infância. Imaginem as vossas brincadeiras na praia no verão e os jogos de bola no pátio da escola. A bicicleta ferrugenta que se pedala até à casa da avó e do avô. O cheiro a campo e mar misturado com o aroma a pizza, pasta e lasanha como só os nossos avós sabem fazer. Acordar de manhã e ver os desenhos animados a comer gelado de amêndoa caseiro com brioche, antes de correr a tempo do primeiro toque da escola. O paraíso existe mesmo, e é aqui na Sicília. Campo e pesca misturam-se, aldeias esquecidas pelos turistas de verão e plácidas piazzas centenárias junto ao mar. Cafés junto a igrejas e abrigados do vento, com esplanadas improvisadas, ao sabor do som das ondas. Cidade do pommodoro. Pachino assim é. Grande, mas não em demasia. Rica em aldeias em sua volta, ilhas com ruínas, muitas praias escondidas e plantações de pommodoro. Esquecida apenas por quem de cá não é e apenas o descobre de passagem no verão a caminho de outros locais. Nós gostamos de Pachino.
Os dois dias que cá estivemos serviram para mais do que recuperar energias e experimentar novos e tradicionais sabores. Serviram para passeatas de bicla leve ou de carro com o Roberto. Para conversas com Giusi sobre os costumes Sicilianos de Pachino e arredores. Serviram para fazer sestas a seguir ao almoço enquanto a nossa roupa se deliciava com uma máquina de lavar. Serviram para olear correntes e descobrir rosticcerias. Serviram para dormir sem despertador, ver Seinfelds e ficar a conhecer melhor a nossa segunda ponta de Sicilia.
Domani, começamos a pedalar para a terceira. Estamos curiosos em saber quando começaremos a ver os 3000m de altura do Etna e o seu pico de neve.
Mas vamos mas é dormir e sonhar com gelados...

Modica - Pachino

Dia da Natureza: granizo, chuva grossa e tornados!
Como o dia anterior, este prometia ser de chuva, raios e coriscos! Ainda os sinos de Modica não acordaram para as oito, e já a chuva se fazia ouvir com força. A dúvida ainda persistiu sobre se ficar mais um dia em Modica ou não, mas um vislumbre de azul no céu, limpou as nuvens assim como a molenguiçe.
Malas feitas e arrumadas, biclas fora da sua casa partilhada com a alta cilindrada de Enzo Puma, despedidas feitas e adeuses consumados com este puro Modicano de grande coração. Lá fomos nós a serpentear, subir e descer pelas ruelas e ruinhas picolas desta bela cidade de chocolate Azteca!
O dia prometia. Calor do sol, puffy clouds a pintar o céu e umas descidas valentes até Ispica. Que bella giornata!
Em Ispica, a igreja serviu de palco para o nosso almoço de focaccias e pizzas sem queijo que no dia anterior comprámos.
Umas fotos à arquitectura da igreja, valeram-nos uma sugestão, de um senhor de chapéu, para dar sequência à sessão fotográfica, mas no interior da igreja. Assim o fizemos. Mas a bondade entre estranhos não é estranha na Sicilia. Eis que após o pranzo, o chapéu se aproximou a perguntar se bebíamos café. Um pouco perplexos, lá o seguimos até à máquina de café da paróquia. O chapéu vestia o restaurador da igreja que nela laborava hà já 5 anos. Entre a sua lavora, ainda têm tempo para oferecer uma bebida quentinha a dois viajantes de Portugal.
Recompostos, descemos de Ispica até à estrada que nos levaria a Pachino. Uma bela estrada segundo nos disseram. E assim foi.
Com musica Islandesa a cuspir dos ouvidos, subimos e descemos amigáveis montes, até que a chuva começou. Começou devagar, mas de grossas e pesadas gotas! Uns minutos depois e já a musica batalhava com o granizo para se fazer ouvir! Nunca passou das pequenas pedritas de gelo. Nada que nos impedisse de pedalar. Parecia mais que nos estavam a fazer uma massagem nas costas enquanto pedalávamos com as pedritas a cair nas costas! Foi bella a passegiatta! Brutas nuvens brancas, cinzentas e pretas. Azul a espreitar e o sol a tentar construir um arco-íris. Já em Pachino o granito deu lugar à chuva mais forte e tivemos que nos abrigar. De novo a trovoada e lá ao fundo da rua, um tornado também se juntava a esta festa da Natureza. Ainda tivemos tempo de vislumbrar de relance uma tandem de atrelado, carregada de alforges e abrigada da chuva. Com outro tempo e menos molhados talvez a vontade de os conhecer fosse maior.
É interessante como o mau tempo já não nos assusta tanto enquanto pedalamos, nem nos impede de o fazer, (embora o respeitemos). Curioso esta forma de viajar na Sicília. Dia sim, dia não. Sempre a esquivarmo-nos dos dias de chuva e sprintar sempre que o sol pisca. Mais tempo parados. Mais tempo para conhecer os nativos da ilha.
Roberto abriu-nos a porta com um sorriso tão grande como ele! Sempre em Italiano, lá trocámos as primeiras impressões sobre mapas e rotas até que a Giusi chegou a casa e a Helena, a filha, se apresentou.
Conversas e conversetas, receitas trocadas e tradições culinárias partilhadas à mesa, com pasta, carne grelhada na lareira, salada de laranja e doces d'avó!
Sempre bem dispostos, o serão prolongou-se até o cansaço dizer olá e nós adeus à família.
Cada um em sua casa, para a cama fomos felizes. Felizes por ter passado mais um bello dia em Sicilia e por amanhã ser dia de festa para a nossa roupa. Vai reunir-se no tambor, pela primeira vez desde Macomer.

Modica

O amanhecer molhado, cheio de chuva forte e ventania lá fora na nossa janelinha do quarto com vista panorâmica sobre esta belíssima cidade.
Deixámo-nos ficar por casa a ver o emocionante primeiro episódio do Walking Dead, a comer o cereais com leite e perto das 11h tocam à campainha. Era o Enzo, que com tanta chuva não podia trabalhar e por isso regressou a casa. Avisou-nos de que quando chovia muito, como hoje, do tecto caía água.
Antes de sairmos para um passeio à chuva, todos equipados com impermeáveis, deixámos também a cama protegida com a lona, não fosse o tecto desabar..
A primeira paragem. Chocolate modicano, com mil e um sabores, mas no fim sempre o com peperoncino (piri-piri). Delicioso, e sem manteiga, e sem leite. O que além de mais saudável, confere um sabor único e permite que todas as pessoas com alergias, intolerâncias e estas chatices o possam comer. Long live the Modica Chocolate. A senhora explicou-nos que por ser trabalhado a frio - 35º, comparado com os 60º dos chocolates habituais, sentíamos os açúcar entre o chocolate, coisa que não acontece com os outros. Além de chocolates tinham à venda outros produtos típicos buonissimos e postais, que comprámos para enviar a mais uma remessa de amigos e família. Se ainda não recebeste, espera mais uns dias e vais ver...Aos poucos vamos dando notícias a todos.
Fomos às compras para o almoço e almoçámos pasta. Tem de ser. Pelo menos uma vez ao dia, é obrigatório. Se se come ao almoço, não se come ao jantar e o inverso.
A seguir ao almoço, hora da siesta, ver séries, fazer o que apetece.
E mais tarde voltámos a sair de casa até Ragusa Ibla. Mas a gelataria que vinha nos nossos pensamentos estava fechada. Para desconsolo das nossas papilas gustativas. Cirandámos por ali e regressámos para um jantar português.
Se é português tem que ter batatas. E tinha.
A seguir, aos Simpsons em italiano, sentámo-nos em frente ao computador a escutar em silêncio antigos revolucionários que mudaram a história do Mundo e as nossas.
Fomos embalados para a cama com o Zeca Afonso a cantar..."dorme meu menino a estrela d'alva..."

Gela - Modica

O dia apesar de cinzentão estava seco. Seco se pensarmos de cima para baixo, das nuvens para a terra, porque de baixo para cima, das bermas das estradas para nós, não. Foi só sair de Gela e entrar na estreita estrada 115, que nos acompanha desde a nossa chegada a Trapani, que o seco se tornou relativo. As bicicletas limpas, estavam em menos de nada todas cobertas de lama, assim como os nossos sacos e a nossa roupa.
Levámos irritados com as habituais e chatas buzinadelas, que os sicilianos não conseguem conter nos seus carros. Porque querem avisar-nos da sua presença (como se um carro conseguisse passar despercebido), ou porque querem saudar-nos, ou então porque já é tique e buzinam num descontrolo. Dizem que há sítios bem piores.
Um camião em sentido contrário viu-nos ao longe e tal como nós percebeu o que ía acontecer. Encolhemo-nos e esperámos pelo inevitável, mesmo com o camionista a abrandar, levámos com uma onda gigante de água e lama que nos molhou e sujou ainda mais da cabeça aos pneus. É assim a vida dos Nomadiclas.
O almoço já vinha preparado da casa do Ludo. Com as nuvens cinzentas em cima de nós, não perdemos muito tempo a comer.
Cansámo-nos a subir durante 10km sem parar, até ao topo, de quase 0 metros aos 650 metros. A vista sobre a cidade animáva-nos.
Em Ragusa o relógio dizia que não teríamos tempo para contemplar esta bela cidade e percorrer os restantes 20km que faltavam antes de anoitecer.
Continuámos e chegámos de noite. A cidade dividia-se em Módica alta e baixa e o Vincenzo vivia mesmo no meio. Junto à famosa igreja de São Jorge. Até lá chegar, fomos descendo ruinhas cheias de igrejas, cheias de estátuas. Para onde quer que olhássemos tudo era bonito. Em plena parte histórica a beleza entrava-nos pelos olhos, sem deixar tempo para descansar. Achas que isto é bonito? Então toma lá mais isto. É assim a vida dos Nomadiclas.
O Enzo Puma esperáva-nos na escadaria da igreja. E depois de descer tudo, subimos um bocadinho pelas ruinhas íngremes a empurrar as bicicletas até à sua porta. As bicicletas na porta mais à direita, ao lado dos muitos cavalos do motão para os passeios do Enzo. As malas na casa da esquerda. E nós na porta do meio para conhecer a casa do Enzo.
Saímos para fazer um giro pela cidade. Comprar o jantar de pizza, arancinas, folhados de muitos sabores. Custou aguentar até ao jantar com a imagem rechonchuda destes petiscos a passear na cabeça. Comprar pão e queijo, saborear o queijo com que nos regalam, e logo na porta ao lado experimentar a granita de café que a amiga do Vincenzo faz sempre que ele lhe traz os amigos do couchsurfing.
Visitar a mãe do Enzo que nos promete almôndegas com pasta para o dia seguinte e voltar a casa para o manjar.
Em conversa com o Enzo apercebemo-nos de como somos pequeninos. Conta-nos as histórias de dezenas de pessoas que já passaram pela sua casa, nos 4 anos em que faz Cochsurfing. Sozinhos, de bicicleta, a pé pela Europa, à boleia, um mar de gente corajosa e aventureira. Somos apenas mais um casal que se junta a tantos outros. Mas mesmo assim o Vincenzo que segue a sua filosofia de quando não pode ir ver o Mundo, traz o Mundo até à sua casa, acolheu-nos e fez-nos sentir especiais com as histórias que partilhava.
O cansaço e o banho prometido e necessário fazem as despedidas até ao dia seguinte.

Gela

A noitada do dia anterior fez-nos a todos preguiçar pela manhã. Irmo-nos levantando aos poucos, tomar banho, lavar a bicicleta, tomar o café da manhã, conversetas e passar algum tempo sozinho em frente de um ecrã.
Às 13h15 tínhamos o almoço preparado pela avó Emanuela um quarteirão mais à frente.
Uma matiné bem passada em família. O Ludo divertia-se com as conversas do avós entre eles, falava da nossa viagem aos tios e primas. E o avô Filippo deliciou-nos os ouvidos com histórias durante todo o almoço e pela tarde fora. O nosso paladar estava também a receber um tratamento de sauna. A comida da avó, nesta caso, não é um arroz de pato, ou sardinhas com gaspacho, ou frango e batatas assados no forno, mas antes pasta al forno. Massa tipo lasanha cheia de carne tenrinha, ovos, tomate e queijinho, só para alguns. Nham, nham..
Isto só como primeiro prato, porque hoje é domingo, e estamos em casa da avó. Depois veio a carne, almôndegas com sugo e costeletas. A entrada foi um simples e por isso ainda melhor pão de sésamo com azeite, sal e tomates secos. Os bolinhos típicos, lembravam os nossos bolos de pastelaria fina, como biscoitos húngaros, cornucópias cheias de creme e com chocolate e por aí.
Algumas horas depois despedimo-nos desta família domingeira com o avô Filippo a apertar-nos a mão e a dizer que tinha sido um verdadeiro prazer receber-nos na casa sua, todo contente por ter dois novos ouvintes durante uma tarde.
Nós dois fomos dar uma passeata pelas redondezas, talvez em busca de uns novos chinelos para os pés da Ana. A feira que vimos
tirando o dialecto de Gela que se fazia ouvir, fazia em tudo lembrar-nos as nossas, feira do relógio, feira da luz e por aí.
Até hora de jantar fomos terminando o que tínhamos começado de manhã sem acabar.
O Ludovico foi buscar a Stefana e mais uma jantarada todos juntos a comer pasta com sugo e beringelas.
Mais cansados que no dia anterior, não aguentámos tanto tempo a partilhar as delícias dos nossos ouvidos.
A trovoada e relâmpagos soavam lá fora. Nós esperávamos que no dia seguinte estivesse melhor, o suficiente para nos deixar pedalar secos até Módica. Ficou combinado que se no dia seguinte estivesse assim faríamos um beicinho e olhos de cão e o Ludovico deixava-nos ficar por mais uma noite

Licata - Gela

Ao sábado há escola até à hora de almoço. O Manilo não pôde acompanhar-nos no nosso passeio matinal.
Os 4 de barriga aconchegada com o pequeno-almoço, partimos para um sábado soalheiro, perfeito para sair de casa. A praia a poucos metros da sua casa, e uma vista da cidade a uns quilómetros de caminhada pela areia. A areia, da cor do deserto, de tão fina, prometia acompanhar-nos nas solas até ao nosso destino final.
De carro estacionado à entrada da cidade, percorremos a cidade toda a pé a partir daqui. Logo ali, a 20 metros, pela primeira vez aberta, Grangela, uma galeria subterrânea, depois de mais de 50 anos fechada, encontrámos os amigos da Protecção Civil, da qual a Mariolina também fazia parte.
Capacetes na cabeça, lanternas nas mãos e entre os protectores civis descemos 20 metros. Os poucos registos encontrados não desvendavam a função inicial destas galerias. Pela existência de câmaras pensa-se que serviriam como câmaras funerárias, mas com a água a infiltrar-se, pensa-se que tenham desistido da ideia. Uma câmara incompleta suporta esta teoria.
Um buraco acima das nossas cabeças, mostra que transformaram este local num poço, com uma reserva de água potável.
Uns metros mais acima percorremos um corredor onde expõem fotos da Segunda Guerra MUndial, por ainda estarmos perto do dia 27 de Janeiro, Dia da Memória.
Este corredor servia para, nessa altura, realizarem as trocas comerciais clandestinas e para se refugiarem. Pode ver-se um pequeno cúbiculo tapado com cimento que fazia ligação com a casa ao lado.
Seguimos num ritmo relaxado a passear pelas ruas, a visitar igrejas principais e ainda outra que só abrem no dia de Páscoa, mas que hoje, sabe-se lá porquê estava aberta. Pudemos espreitar o que se suspeita ser um verdadeiro Caravaggio pendurado atrás do altar. Investiga-se.
A história da cidade, que antes estava junto ao mar e que depois das invasões se mudou para o topo da monte, foi-nos sendo contada à medida que avançavamos pelas ruazinhas,com varandas de roupa estendida, cascas de laranja a secar, cheiro a preparações de almoço.
Regressámos ao carro contentes com um tão belo sábado e eis que na Grangela um jornalista nos entrevista para o jornal local
Que mais poderíamos querer?
Almoçámos e despedimo-nos desta primeira família sicicliana que tão bem nos acolheu!
Partimos para Gela que nos dizizam ser bruta, ou seja, feia.
Quase 3 horas depois esperávamos o Ludovico.
O Ludovico chegou a sorrir todo colorido. Depois de descarregar as bagagens partimos para conhecer o seu avô, que depois de 5 anos a viver no Brasil, falava português sem ninguém que o acompanhasse. Ficou contente quando começámos a trocar as nossas primeiras palavras em português e a obter resposta da outra parte. Comemos biscoitos acompanhando o chá enquanto trocámos meia dúzia de palavras. Os nossos planos foram delineados à despedida quando a avó nos convidou para almoçar no dia seguinte. E quem podia dizer que não?
Seguimos para ir buscar a Stefanna, a namorada do Ludo. Entrámos numa loja e toda a gente comia, de pé, em mesas em redor das vitrinas, onde se podiam ver muitos tipos de pizzas e uma espécie de folhados de várias formas. O Ludo tinha-nos falado das arancinas, que eram típicas da Sicila. Também lá estavam. Ele escolheu para nós e regressámos a casa para jantar estes petiscos.
Tudo delicioso. E como todos gostamos de música, depois da cena, fomos para o computador mostrar música e videos uns aos outros.

Ribera - Licata

Será que finalmente iríamos ter um dia normal de pedaleio na Sicila?
Depois dos adeuses à Federica, ficámos a acabar o nosso primeiro manjar da manhã com sabor às laranjas de Ribera. Bem boas!
A descer até à SS 115, lá começámos a pedalar para Licata. Finalmente, tivemos que tirar o casaco para deixar o suor do esforço e sol, evaporar livremente, durante as descidas a mais de 30 km/h.
A estrada é boa. Disso não nos podemos queixar. Mas que dizer dos escuros túneis e gigantes viadutos, que tínhamos que partilhar com os camiões que por aqui abundam? Mais do que os quilómetros, é o stress de estradas concorridas que nos cansa. Valha-nos as paisagens que se enriquecem de cores e formas ao sol. Paisagens brutas! Com serras a saltarem do nada e relevos rasgados pelo tempo. Verde selvagem misturado com cultivo aparentemente desorganizado e quadriculado.
Durante a matina, um par de BTTistas que faziam a estrada secundária paralela à SS 115, meteu conversa conosco. Os "uuusss" e "aaaasss" que se seguiam à palavra Portucalo, misturavam-se com os "bellos" após a palavra Licata como destino.
Assim que entrámos na populosa Agrigento conseguimos ver os tão famosos templos gregos. Não vos dissemos que as pontes e viadutos da SS 115 são altos? Agora imaginem as vistas! E sabiam que em Sicilia, existem mais templos gregos inteiros e em pé, que na própria Grécia? É verdade! Pelo menos é o que nos dizem...
Depois de passar a pé pelo mercado semanal de Agrigento, em tudo igual a uma corriqueira feira de Portugal, lá seguimos as placas para I Valle di Tiempli, na esperança de almoçar à sobra dos pilares gregos do nosso primeiro templo. Mas acabamos por comer à sombra das oliveiras do parque de estacionamento, depois de nos pedirem 15€ como entrada! Vimo-los ao longe e ficámos contentes.
Ao chegar a Licata, de novo as planícies. Apenas se viam uns valentes montes junto à costa e ainda brincámos com o ter que subi-los para chegar a casa da Marionella e do Vincenzo.
Mais valia estarmos calados, porque depois de quase 90km tivémos mesmo que subi-los e a seguir descê-los para sermos recebidos pela nossa primeira família Siciliana. Amanhã já sabemos o que nos espera quando começarmos a pedalar, ou a bem dizer, empurrar!
Marionella, pôs-nos logo em sentido. Avisou que só falava italiano e esperava que nós nos esforçássemos para o fazer também. Mas tão bem recebidos fomos por esta mãe enfermeira, pai analista de sangue e filho cinturão negro de karaté, que não foi esforço nenhum.
Por aqui habitam há muitos anos e desde a infância se conhecem. Com vista invejosa para o mar e longe do busilis da cidade, que nem por isso é assim tanto. Como não hão-de os Sicilianos ser um dos três povos que mais facilmente chegam aos 100 anos?!? O segredo? Muito trabalho toda a vida, sobre a terra e mar que lhes dá de comer uma saudavél comida. Muitos sorrisos e abraços aos amigos e familiares que durante toda a vida se mantêm unidos.
É simples este segredo. Trabalho, boa comida e laços familiares fortes.
Estamos a gostar de Sicilia. Das pastas feitas em menos nada, mas que mais parecem pratos de chefes em restaurantes com cinco estrelas da Michellin. Licores e vinho de produção própria. Bebidas e comidas tão diversas de terra para terra que cada dia de pedaleio é um assalto aos sentidos com tantos sabores novos e costumes.
O dia de estrada foi longo, mas fomos tão bem recebidos pelos habitantes da Casa Mia, que nos deixámos ir pela conversa. Ao computador a partilhar sites e dicas, na horta com as mil e uma árvores de frutos diferentes que eles tinham, à mesa ao sabor de carne e do minestrone, licores e vinhos, queijos e enchidos.
Só vamos poder ficar uma noite com eles, embora uma semana não chegasse para os ficar a conhecer.
Parece que estamos em casa.

Mais fotos...

Ribera

Nada como um dia de limpezas para fazer reset ao dia anterior.
O dia prometia mais chuva e mau tempo. Parecia que esta nossa fuga para a terra prometida, bom tempo e temperaturas cálidas, estava a ser corrompida pelo mau tempo constante. Finalmente o Inverno chegou a nós.
Não sei se foi da laranja ao pequeno-almoço, ou do expresso caseiro e delicioso, ou do rico repasto matinal, mas cheios de energia, demos conta da limpeza das malas, organizámos as refeições e lavámos alguma roupa à mão, logo de manhã.
Como a Federica, vinha almoçar a casa e tinha o tempo contado para o fazer, não havia margem para atrasos no almoço.
Um de nós foi até ao supermercado mais próximo, para descobrir que era demasiado pequenino para os planos culinários de hoje. Esqueci-me de mencionar que estava a chover? E que Ribera estava construída sobre um inclinado monte e que a todas as ruas desembocavam na rua principal? Chamemos-lhe rua principal, à falta de melhores palavras para descrever o rio urbano que o dilúvio bíblico sobre a terra das laranjas, provocava.
Á falta de ingredientes, a memória trazia a imagem de um Lidil à entrada da cidade. Tentemos então um novo supermercado, mas rápido que o tempo esgota-se. Quanto mais se descia a rua, maior o rio de chuva nela e mais rápido os carros passavam. Não é preciso muita imaginação para adivinhar como me encontrava depois de 10 minutos a descer o rio sem guarda-chuva. Ensopado neste contexto seria uma bênção! Agora imaginem chegar ao "Lidil" e descobrir que era apenas a publicidade ao mesmo! Nada de supermercado à vista. Volta a subir a rua, desta vez contra à corrente. Volta ao mixiruco supermercado e ao desenrascanso de ingredientes. Foi interessante.
Á tarde, as biclas foram limpas e o resto do dia passado com a Federica, à conversa no nosso local favorito da casa.

Petrosino - Ribera

Não se fala muito nisso, mas sabíamos desde o início que, eventualmente, alguns acontecimentos iriam ocorrer:
Pedalar todo o dia sob forte chuva.
Não viajar, mas pedalar.
Atravessar pontes, túneis, viadutos em estradas que mais se assemelham a auto-estradas.
Subir e descer montes, desprovidos de nativos e sinais de cidades durante quilómetros.
Passar todo o dia com os pés molhados.
Levar com lama na cara.
Ficar perdidos em cidades mais pequenas e em estraditas.
Ultrapassar a mítica barreira dos 100 km num dia.
Beber um chá inglês.
Sabíamos tudo isto desde início. E mais outras também. Mas nunca se fala muito nisto. Para quê? O que nunca pensámos é que tudo se iria passar num só dia, no primeiro dia de sério pedaleio Siciliano.
Andrea dormia, depois de mais uma noitada ao computador. As despedidas ficaram para o dia anterior. O dia iria ser longo até Ribera, quanto a isso não havia ilusões. Apenas algumas esperanças de que o tempo fosse misericordioso. Mas não...
Em vez das 7:30 planeadas como hora de partida, eram 8:30, quanto nos sentámos no selim. Que estava molhado.
Ao abrir a porta de casa, a chuva caía, e não era pouca. Resignados a um dia infeliz de estrada, lá pedalámos em direcção aquela que será a nossa principal casa na Sicília. A Strada Statale 115. Segundo nos contaram, construída sobre a antiga estrada romana que percorria toda a costa siciliana. Como boas vindas ao entrar em "casa", levámos com carros e camiões, motas e tractores, todos numa acelerada pressa para nenhures e a cuspir água para as bermas, já por si preenchidas de pequenos lagos e rios de chuva. Adivinhem lá quem é que estava nas bermas? Não foi bonito.
Ao chegar à localidade mais próxima, bonito não ficou. A chuva intensificou-se, as direcções oferecidas pelos nativos eram paradoxais e as calças descobriram por momentos as botas, permitindo um aconchego nos pés durante todo o dia, como só meias e palmilhas molhadas conseguem dar, quando combinadas com um pouco de frio.
Que bem que soube, por isso, descobrir que a estrada onde pedalávamos há alguns minutos, era a estrada errada. Certa mas errada, acrescentando uns simpáticos 15 km aos 90 km profetizados pelo Google Maps no dia anterior.
Que bem que soube a chuva intensa toda a manhã. Os pés molhados. As desertas estradas de campo como alternativa à SS 115, com inclinações de tractor.
Que bem que soube voltar à SS 115 e vê-la transformar-se numa via rápida. Com longos viadutos gigantes, onde a berma era uma queda de 50 metros lá para baixo. Que bem que soube entrar no primeiro de vários túneis. Uns curtos, outros longos. Uns iluminados, outros não. Todos sem berma e todos intensificadores do som, e do medo, que se sente ao ter camiões a menos de 1 metro de nós.
Que bem que soube ver o conta quilómetro chegar aos três dígitos, e receber como recompensa mais 4 km sempre a subir até Ribera.
Que bem que soube, por isso, ser recebido pela Federica, com um chá preto, leite e biscoitos, depois de lhe encher a casa de lama e roupa mal cheirosa. Tomar uma banhoca quentinha de chuveiro, numa banheira com cortina (algo que os italianos não usam, vá-se lá saber porquê!). Presentear o nosso estômago com  pasta, spaghetti com azeite e alho e umas especiarias mais, pão e salame, laranjas da Sicilia e colhidas em Ribera, terra dos citrinos por excelência. Encher as nossa mentes com conversa em inglês/italiano/espanhol, até o João subir às pestanas.
Que bem que soube entrar na cama e dormir secos e quentinhos, sem despertador para amanhã.
Que bem que soube...

Petrosino

Andrea deixou-se dormir e nós depois da noite anterior, também... Um acordar lento e preguiçoso.
Pequeno-almoço desenrascado com o que havia, viagem ao supermercado para abastecimento e dia passado na cozinha. O nosso local favorito da casa.
Passámos grande parte do dia separados do nosso anfitrião. Um no quarto e no computador, outros na cozinha no computador também. O dia era de chuva lá fora e não convidava a actividades out doors. Andrea, um desenhador de iates, encontrava-se sem fazer um barquinho há já um ano, mas nem por isso labutava todo o dia na sua pesquisa de melhores e naturais formas para combater as doenças da mãe e do resto da família.
A constante do dia foi a Stella. Stella na cozinha. Stella na casa de banho. Stella no quarto. Imaginem a versão gigante do cão da publicidade das fraldas Dodot e ficam com uma boa fotografia deste exemplar canino. Sempre feliz e pronta a brincar, esquecendo que era grande que nem um boi! Para cada divisão da casa, ela seguia e empoleiravasse à janela. Entre mexidelas de colher de pau e escritas de post's atrasados, havia sempre tempo para uma sessão de folia com a Stela, que se jogava sem medos fosse para onde fosse e quando a sua felicidade canina transbordava, corria que nem uma desvairada por todo o quintal! Muito bom.
Tentámos preparar um almoço para o nosso anfitrão, mas falhas na comunicação fizeram com que nós o comêssemos todo, o que originou a pergunta do Andrea: "Não deixaram nada para mim?". Isto depois de ter ido buscar chocos feitos pela mãe, para que os pudéssemos provar! Acabou por ser o almoço dele.
Mas fizemos a vingança ao jantar e expiámos as culpas gulosas. Salada abundante, risoto e galinha com curry. Crepes antes e depois.
Se só falamos de comida neste dia, é porque foi de facto um dia passado na cozinha. Ao serão, a conversa e a troca de videos e ideias para melhorar o mundo. Tudo isto na nossa primeira estadia da Sicilia. Algures na cidade piscatória de Petrosino.
Amanhã será um longo dia, com uma valente pedalada até Ribera.

Trapani - Petrosino

Aos poucos, os marinheiros, os pescadores foram ligando os motores dos barcos, enchendo tudo de fumo e barulho, ligavam também as luzes. Alguns carros a passar por nós, uns nem nos viam, outros sim, mas ignoravam a nossa presença. Um carro estacionou mesmo a uns 5 metros de onde estávamos. Um senhor saiu, entrou na porta lateral do escritório onde estávamos acolhidos à entrada. Passados alguns minutos voltou a sair e foi-se embora de carro.
A chuva continuava a cair, ligeira.
Eram 5 e meia.
Cada vez mais gente, a passar por nós. Pessoas sozinhas, ao pares, em grupos maiores, a fumar, de guarda-chuva aberto, de casaco apertado até ao topo, gorros, e aconchegos quentinhos, malas de rodinhas, malas na mão, a tiracolo, passos seguros e apressados. Quando alguém reparava em nós, continuava como se fosse normal. Encontrar duas bicicletas cheias de malas e no meio, dois marmanjos de sacos cama vestidos, deitados a dormitar, no chão de um escritório da Agip.
Forçámo-nos a tentar descansar, mas quando outro senhor da Agip entrou na porta lateral, resolvemos desistir de lutar contra a maré e em cinco minutos tínhamos mudado de poiso e passado à posição de sentados, debaixo de uns bancos, para quem espera pelos barcos. Nós e mais outra nova remessa de passageiros a baforar os nossos narizes com o fumo dos primeiros cigarros do dia.
Esperámos que clareasse e fartos deste início de dia, saímos para a chuva de bicicleta debaixo do rabo.
Foram só 40km até casa do Andrea. No meio de uma vila, almoçámos nuns bancos abençoados com sol.
O Andrea nunca mais dava sinais de vida e enquanto ele não dizia nada, andámos por ali a perguntar aos poucos que víamos, se conheciam algum Andrea que fazia iates.
Com um plano  na manga caso ele não dissesse nada, resignámo-nos a esperar na praça combinada de frente para o mar.
O Andrea chegou, e seguimo-lo mais um ou dois quilómetros até à sua casa.
Pôs o seu quarto à nossa disposição, mudando-se para a sala, onde tinha o computador onde trabalhava.
Antes do jantar fomos abastecer a casa dos seus pais e voltámos para cozinhar um jantar tardio demais, para dois ciclistas cansados. Mais 40 minutos porque o gás tinha acabado, e tinha que se ir buscar mais.
Lá pelas 23 horas estávamos a jantar.
Felizes, por ter uma casa, cama e comida boa, fomos dormir sem sentir balanços nenhuns.

Cagliari - Trapani

As malas cheias de comida, as bicicletas equipadas, as despedidas da Cristina e da mãe, e lá partimos nós todos pimpões em direcção ao barco que nos levaria à bela Sicília.
Chegámos 10 minutos depois da hora que nos tinham dito para lá estar, e afinal o barco estava in ritardo. Não embarcaríamos às 10 horas, mas às 11, disse o senhor que nos deixa entrar no porto.
Ok! Esperámos, tirámos fotos, esperámos, reorganizámos as malas, e avistámos o barco ao fundo já perto das 11. O senhor deixou-nos entrar, a nós, e a mais umas dezenas de pessoas que estavam à espera.
Parecia que todos os outros tinham desaparecido, e nós ali no meio desnorteados sem saber para onde ir. O barco não parecia nada daquilo que nos tinham dito. Até se parecia muito com o que tínhamos apanhado em Córsega. Um guarda, viu-nos e confirmou os nossos bilhetes e identificações. Encaminhou-nos para o nosso barco. O outro barco lá ao fundo. Um gigante cor de laranja e branco, cheio de contentores de camiões e com a porta levadiça fechada. Apressámo-nos a pensar que por estar tudo fechado, estaria pronto a partir em menos de nada.
Quando lá chegámos, passou cerca de uma hora até confirmarmos que o barco só partiria por volta das 15 horas. Boring. Os camionistas entravam e saiam a descarregar os contentores todos, dos dois pisos de barco. À volta de todo este trabalho, claro está, duas dezenas de homens, especados de mãos nos bolsos, observavam todas as manobras.
Quando finalmente entrámos, perto das 14 horas, já quase não havia camiões. Amarraram-nos as bicicletas com nós de marinheiro para não tombarem. Levámos um saco cheio de comida fomos para a pequena zona que disseram existir para pessoas.
Uma volta completa pelos corredores e encontrámos a sala comum, também sala de refeições. O que parecia ser o responsável da equipa que servia os almoços, recebia também os bilhetes, entregava as chaves respectivas e encaminhava as pessoas para os quartos.
Ao ver os nossos bilhetes pediu-nos para esperarmos um bocadinho, porque tendo lugares separados, iria ver o que se podia fazer!
Voltou, estávamos nós a meio do nosso grão, com uma chave na mãos e um sorriso malandro. Indicou-nos onde ficava o quarto e entregou-nos os bilhetes.
De imediato, assim que terminámos de comer, fomos então ver o quarto para nós.
Nem dava para acreditar nos nossos olhos. Depois de duas viagens de barco em barcos de passageiros, foi preciso chegar a um barco de carga para termos direito a 4 camas, casa de banho com duche, duas secretárias com candeeiros e tomadas, e uma janelinha que dava para a proa. Mais do que alguma vez poderíamos desejar.
O primeiro pensamento foi logo, actualizar os episódios de muitas séries.
Deixámo-nos estar, ainda, incrédulos de que teríamos 12 horas de descanso social, num quarto só para nós. Durante as primeiras horas, aguardávamos a entrada de alguém a qualquer momento.
Bastaram estas primeiras horas para sentirmos que não íamos ver série nenhuma afinal e que teríamos de passar o tempo a dormir, ou então no exterior ao frio, para não nos sentirmos enjoados. Sentíamos a ondulação, por mais ligeira que fosse e concentrar-nos a olhar para um ecrã, ou estar de pé, sentados só piorava o mal estar.
O responsável do pessoal, disse-nos que chegaríamos a Sicília 12 horas depois da partida. Na bilheteira tinham-nos dito que seriam 10 horas. Ou seja,  chegávamos a Sicília e não tínhamos sítio para ficar, porque nenhum de nós tinha coragem de incomodar alguém às 3 da manhã. Informámos o nosso host de coucsurfing e apenas poderíamos imaginar como seria quando chegássemos.
Entre os enjoos e passeatas até ar fresco, descansámos pouco. Estávamos moídos.
A chegada foi às 2h30m. Andámos para a frente e para trás pelo porto, depois de termos decidido que era a única hipótese. Passar a noite algures pelo porto. a chuva miúda que começou a cair apressou as nossas incertezas e fugimos para a entrada de um pequeno posto administrativo (pensamos) da Agip, que tinha um tecto a cobrir o espaço suficiente para duas pessoas de deitarem.
Lona, colchonetes, sacos cama, as bicicletas a barrar e nós.

Cagliari - Cagliari

Depois das horas tardias a que nos levantámos, comemos um brunch e não um pequeno almoço. Pela primeira vez alguém que partilha dos mesmos gostos matinais, de torradas com coisas para barrar, leite, café, e chá. Não que não gostemos dos típicos biscoitos que os italianos comem ao pequeno-almoço, mas sentimos falta do panito, dos cereais e do leite. Mas a Franscesca era uma das nossas. Partilhámos a nossa descoberta de ovos escalfados com uma fatia de pão torrado tudo desfeito numa caneca e ela como é fã de ovos pela manhã, adorou.
Como os arranjos pela Internet tinham sido só para um dia, ficámos só por uma noite. Fomos os 3 às compras e despedimo-nos como se estivéssemos estado a visitar uma velha amiga. Ficámos muito contentes por ela nos ter recebido como os seus primeiros couchsurfers, por se ter interessado pela nossa aventura ciclável. Os seus amigos estavam também entusiasmados connosco e queriam conhecer-nos. Quiçá até pedalar connosco no dia da partida, mas por algumas falhas de comunicação, não foi possível.
Regressámos à casa da Cristina e da mãe. O passeio de bicicleta, se o tempo estivesse seco, já tinha ficado programado. E assim, depois de abastecer no supermercado, como se não houvesse amanhã, para a viagem de 10 horas de barco, a Cristina foi connosco fazer a sua terceira utilização da bicicleta, quase um ano após a ter comprado.
Passeámos junto ao mar, entre os flamingos cor-de-rosa e os vários desportistas que aproveitavam a ventania para praticar os seus desportos de eleição. Apesar do vento frio, que ruburescia as nossas bochechas, foi muito divertido e até encontrámos amigos músicos da Cristina.
O jantar fizemo-lo nós, crepes salgados e salada de grão, enquanto escutávamos flauta transversal. Preparámos também umas paparocas para o dia seguinte. comida, como se não houvesse amanhã, mais parecia. São influências do 2012!
O Luca juntou-se a nós e todos juntos saímos a seguir ao jantar para uma promessa de noite passada numa das ludotecas da cidade. Estávamos entusiasmados e sentimo-nos uns geeks por estar tão contentes por ir jogar jogos de tabuleiro.
O casal amigo aguardáva-nos à porta. Entrámos! Primeiro a parte do bar, com uma televisão gigante ligada no canal de futebol e montes de tipos, de cadeiras desarredadas, cerveja na mão a comentar o jogo.
Do outro lado estava um lugar, como nunca vimos! Todos os jogos de tabuleiro que possam pensar, Magic, Settlers of Catan e imaginem só, até tinham o primordial Hero Quest. Era o paraíso de qualquer geek. E foi assim que me senti. Estávamos em pulgas para jogar a qualquer coisa. Mas a jogatana teve que esperar. Ainda escolhemos o que tomar de entre as mil opções todas caras, já para não falar da taxa de 0,50€ por pessoa, consultámos a lista dos jogos, cada um puxando a brasa à sua sardinha e no fim acabámos a jogar ao French Kiss... Verdade ou Consequência...Acho que não é necessário dizer mais nada...
Ao fim da segunda rodada da seta, para ver se calhava verdade ou consequência, a maioria estava descontente, e fomos buscar o Pictionairy. Mais divertidos, acabámos o jogo quando a equipa das meninas ganhou.
Parámos na casa do Luca para o deixar, por causa da ruptura no ligamento, e seguimos para casa para dormir.