Gonfaron - first week

Uma semana interessante.
Descobrimos que tínhamos a despedida da Cristina, que partia para terras mais quentes a sul de Itália e também que teríamos um casal de americanos do HelpX, para nos fazer companhia.
Enquanto um ficava com as meninas os outros foram às compras e apanhar o casal americano.
Chegaram cheios de compras, com os sacos a transbordar e o Billy e a Jamie a acompanhar.
Cumprimentámo-nos todos com apertos de mão, bem esticados. Nada de interferir com o espaço pessoal de cada um com beijinhos.
A Jill explicou-nos que a tarefa principal seria arranjar a sala a tempo de lá passarmos o Natal. A Jamie e o Billy nas pinturas, o Alexandre nas refeições e a Ana com as míudas.
A Celéste estava com uma tosse manhosa e as dormidas dela começaram a ser cada vez mais interrompidas por ataques de cof cof.
No dia de levar a Cristina à estação dos comboios aproveitaram e levaram a Celéste ao médico de Gonfaron. Voltaram um par de horas mais tarde com ares de preocupadas a dizer que afinal a Cristina já não ia de comboio. A Celéste precisava de ir para o hospital. E assim num curto espaço de tempo despedimo-nos da Cristina pela segunda vez e ficámos encarregues de acabar a sala e cuidar da Camille. A Ana passaria a ser a responsável por deitá-la, dar-lhe de comer, banhos e por aí.
A Jill voltou por pouco tempo no dia seguinte com más notícias. A Celéste tinha pneumonia e iria ficar internada por algum tempo. Talvez conseguissem voltar antes do Natal. Encheu uma mala de viagem com o que precisava e lá voltou ela para o hospital, em Toulon.
Em dois dias, estes 4 Helpers ficaram sozinhos numa casa enorme com uma sala para acabar e uma "filha" de dois anos. Todas as refeições eram o que se chama à grande e à francesa. Grandes quantidades de comida e muito vinho. No final das refeições os queijos franceses e muita risada de bocas cheias, que é como quem diz muito yoga do riso.
Portámo-nos bem! Acabámos a sala em 3 dias, recebemos a lenha e pagámos ao homem, montámos os sofás, fomos às compras e quando a Jill veio recarregar malas, montámos também a árvore de Natal que trazia com ela. Não conseguiu conter as lágrimas ao ver a sala acabada, e agradeceu-nos por tudo.
Basicamente, as tarefas estavam distribuídas sem conversarmos sobre isso. Mas todos nos ajudávamos, quem ficava com Camille dava uma ajudinha na sala, e quem pintava dava uma ajudinha na altura da Camille comer.
À noite nós ficávamos com o monitor do quarto das meninas e de cada vez que a Camille fazia barulho, nós ouvíamos e podíamos vê-la na câmara do monitor. As duas primeiras noites foram as mais difíceis, porque não estávamos habituados e estávamos sempre a acordar com o mínimo ruído e a achar que teríamos de lá ir ajudá-la a adormecer.
A tosse começou também a atacar a Camille. Num dos dias fomos levá-la à creche e telefonaram-nos a dizer: "Camille a la température!". Avisámos a Jil, que numa das suas breves vindas a casa para recarregar, a levou ao médico a Gonfaron. Nada de mais, apenas uma constipação. Passámos a dar-lhe medicação de manhã, ao almoço e à noite.
Ao fim das noites começámos a ver uns filmes na nossa sala nova, escolhidos entre a colecção de dvd's do Jonh.

Luynes - Gonfaron

O fantástico ciclo da água...
Acordámos com os sacos cama exteriores todos molhados e os pés congelados. Nem chegámos muito bem a dormir, se completámos um ciclo REM já foi muito. A nossa respiração e calor corporal derretiam o gelo que se formava por causa do nosso calor. E assim mantivemos água em estado liquido dentro da tenda, a cair em cima de nós durante toda a noite.
Saímos da tenda e entre cada coisa que arrumávamos, era obrigatório uma paragem para esfregar as mãos, ou soprar-lhes umas baforadas de dentro de nós. As dores eram tantas que parecia que os ossos eram de gelo e estavam a queimar-nos por dentro.
A tenda estava tão tesa com o seu revestimento gelado que parecia uma folha estaladiça prestes a partir-se. Nem a conseguíamos sacudir, e esfregar com um pano era o mesmo que nada.
Mas conseguimos partir. Para começar a ganhar alguma sensibilidade nas placas de gelo que tínhamos dentro dos sapatos, andámos até um café para beber algo quentinho e usar o WC. Aproveitámos e despachámos logo as compras para o almoço.
Pedalámos por aí a fora com a intenção se só parar num MacDonalds para aceder à net e avisar a Jill e o John que afinal não iríamos conseguir chegar lá neste dia.
Perto das 13h avistámos um Mac ao lado da estrada e, rapidamente, enchemos os cantis e enviámos o email.
Ainda deu tempo para consultar o mapa. Parecia que afinal até casa dos J&J eram só 57km. De manhã com os atrasos todos só pedalámos 20km. Olhámos um para o outro e entre dúvidas e acertos de paragens comprometemo-nos em só parar quando lá chegássemos. Já fizemos 60km em 4 ou 5 horas, mas sempre de manhã, porque à tarde temos que contar com o chegar aos sítios e procurar pelas casas, já para não falar de que às 17h está a anoitecer, e pedalar à noite não faz parte dos planos. Mas a noite mal passada e a vontade de poupar o dinheiro de uma noite num albergue ou parecido, encheu-nos de pica.
Foi a loucura, paragens super minis só para confirmar o caminho e beber água. Parecia que tínhamos tomado alguma coisa porque os nossos conta quilómetros mostravam 27km/h de velocidade instantânea e nós sem parar de pedalar. Nunca tínhamos pedalado assim.
Às 17h30 já tínhamos chegado ao sítio e com umas perguntinhas aqui e ali encontrámos a casa. Fizemos 88km no total, o que quer dizer que à tarde fizemos 68km em 4 horas e meia. A sensação ao fim do dia era fantástica. Só dizíamos um ao outro: "Conseguimos!"
A casa estava tão quentinha. Tomámos um chá, e conversámos enquanto a Jill dava de comer às gémeas Camille e Celéste, de dois anos. A Cristina, que também estava a fazer HelpX como nós, tinha feito uma sopa deliciosa cheia de fusilli, mesmo boa e quentinha.
E acaba aqui a nossa aventura este ano. Vamos ficar aqui parados a passar o Natal e talvez o ano novo. Trocamos o nosso trabalho, como cozinhar, limpar, pintar, olhar pelas meninas, e o que se arranjar para fazer, e eles "pagam-nos" com comida e casa.
São americanos e estão a restaurar esta fantástica casa de 220 anos há 5 anos. Há muito que fazer e dá sempre jeito uma extra help. Amanhã chega outro casal que vem através do HelpX e também são americanos.
A Cristina que tinha previsto passar 3 meses aqui em França, foi surpreendida pelo frio e mudou de planos e vai passar o Natal noutro HelpX em Itália, a trabalhar na recepção de um hostel. A Cristina é completamente bestial. Tem 60 anos, é do Uruguai, tem filhas e netos, viveu cerca de 30 anos em New Jersey, na cidade onde filmaram Os Sopranos. E a padaria, o talho, a mercearia que ela usava eram as que se utilizavam nas filmagens. Elas existem mesmo. Viaja sozinha há 3 anos através do Couchsurfing, e do HelpX  e não se cansa. Foi uma das primeiras hippies e participou no primeiro Clean Air Act, que houve nos Estados Unidos.
Então adeusinho, e até pró ano.

BOAS FESTAS.

Eyguières - Luynes

Antes de sair, era praxe da casa deixar uma mensagem no nosso país, no mapa mundo da parede. À Sylvaine já tínhamos dito adeus antes de partir para o trabalho, só o Romain, nos acompanhou até ao portão antes de sairmos.
Pelas previsões sabíamos que iria ser um dia ventoso, mas a nosso favor.
Saímos tarde, a paragem para o almoço estendeu-se para além do que devia, e sem Couchsurfing ou outra casa para ficar, às 16h30 já estávamos à procura de um sítio para montar a tenda. Aquela hora já haviam, ou então nunca derreteram, pedacinhos de branco espalhados no chão. Um prenúncio do que nos esperava...
Assim que tudo ficou arrumado, enfiámo-nos nas duas camadas de sacos camas com roupa e esperámos por uma noite sem frio.

Eyguieres

Era uma vez um americano. Um jovem americano, que por acaso também era hacker E já agora, também tinha um bilhete de avião para a Islândia. Só que, quando procurou por hotéis para ficar, era tudo demasiado caro para o seu humilde porta-moedas. As suas habilidades de hacker vieram ao de cima, e acedeu à base de dados de uma universidade. Enviou então, o mesmo e-mail a todos os estudantes. Explicou que era americano, com bilhete para o país, mas sem dinheiro para um hotel. Quem estaria disposto a recebê-lo durante a sua estadia? Pensou que ninguém lhe responderia, mas surpresa das surpresas, recebeu 10 respostas de alunos dispostos a recebê-lo!
E assim nasceu o Couchsurfing.
Com a ajuda do Romain, completámos a história que já tínhamos ouvido da boca do Fréderic. A sua história com o Couchsurfing, evoluiu também, quando a visitar a Noruega, deu por si sentado a almoçar e a conversar animadamente com mais dois italianos, a namorada francesa e dois noruegueses. Isto é o Couchsurfing, pensou. Mais que permitir ficar num sítio sem gastar dinheiro, é conhecer outras culturas e pessoas. Desde aí o Couchsurfing assumiu um estatuto tal nas suas vidas, que se transborda em tudo o que fazem na vida.
A Sylvaine saiu cedo para trabalhar. Entre o pequeno-almoço e o almoço nada de especial. Cozinhámos as famosas batatas esmigalhadas, e até agora não há quem lhes resista.
Depois do almoço sim, fomos passear. Comprar o famoso azeite da região, conhecido em toda a França. Visitar Les Baux-de-Provence , olhar do topo da colina para todas as direcções e ter uma vista fantástica de dois parques naturais, enquanto o vento frio, nos congelava a cara. Mais um dia a snifar a ranhoca... Com a sensação especial de saber que este sítio não vem nos guias turísticos.
Tivemos tempo para um copo num bar, perto do trabalho da Sylvaine. E o Romain apreciador de cerveja e de pubs, explicou-nos, com um orgulho de quem sabe porque já experimentou, as diferenças entre um pub e um bar, e um verdadeiro pub irlandês e as tentativas frustradas dos demais pubs espalhados por tantos outros países. Se é um pub, tens de ir ao balcão. A música é tradicional da Irlanda, que pode ser ao vivo ou alguém que passa. A decoração é toda em madeira. A televisão existe, e só está ligada quando há grandes jogos! A comida é simples, nada de elaboradices, não deixando por isso, de ser apetitosa. O ambiente é descontraído, o que faz com que, quando entre alguém, mesmo que seja uma boazuda de mini-saia, não haja os típicos olhares que miram de cima a baixo e a cara de quem pensa: mas quem é este(a) tipo(a)?
Quando a Sylvaine saiu, fomos todos ao Géant Casino às compras de comida. Um dos mais populares e que mais vemos aqui em França.
E quero aproveitar, já falamos neste assunto dos supermercados, para dizer que aqui em França, existem muitos dos que temos em Portugal. Passo a enumerar: E'Leclerc, Lidl, Intermarché, Aldi, Dia (aqui chama-se Ed), Carrefour. Nós usamos muito o Lidl e o Casino. Há muitos Petits Casinos no centro de quase todas as terras. O mais caro deles todos é o Intermarché, e como se não bastasse, diz que se encontram produtos fora da data de validade à venda nas prateleiras. Foi o que o Romain disse. Dois anos depois de expirar a data de validade, o molho típico da região ainda estava na prateleira.
Fizeram um jantar à grande e a francesa. Verdadeiramente rico em calorias para quem pedala por aí, como nós. Pareceu-nos uma versão alemã do cozido à Portuguesa. Ou será o nosso uma versão do deles. Não sei. Só sei que estava bom de lamber os beiços. Muita carninha de porco, salsichas de não sei de quantas variedades, lombo, e mais por aí. Chama-se choucroud, e é típico de Alsace. Temos fotos. Mesmo com as calças a rebentar pelas costuras, ninguém disse que não a uns crepes portugueses com banana e chocolate. Para acompanhar tivemos direito ao vinho que comprámos em Les Baux-de-Provence. Com uma dezena de especiarias todas à mistura. É claro que quando acabámos estava tudo mais para lá do que para cá. Terminámos de comer eram umas 23h, a Sylvaine trabalhava no dia seguinte e nós pedalávamos. Nem sequer fizemos a nossa omelete para o dia seguinte.

Générac - Eyguieres

Mais um dia ventoso pela frente. Levantámo-nos com as galinhas apesar de nos terem posto à vontade para ficar depois de toda a agente sair, desde que fechássemos as portas todas. Custou um bocado porque estávamos cheios de sono e rabugentos mas valeu a pena. Vale sempre a pena quando nos despachamos de manhã e papamos logo uma data de quilómetros antes do almoço. O vento empurráva-nos e às vezes tínhamos de nos inclinar contra ele para não sermos empurrados para a berma ou valeta, como fazem os motociclistas. Estava mesmo muito vento e a pequena cidade onde chegámos para almoçar, arrumou mais cedo as suas mercadorias do mercado bisemanal, porque o vento levava tudo à frente.
Comemos umas sandes num bar, tipo tasca, cheio de franceses e ficámos bastante surpreendidos com não termos de pagar nem o pão nem a água. Mesmo que seja água da torneira ninguém nos oferece um jarro de água e muito menos um cesto cheio de pão, que voltam a encher se comermos tudo.
O nosso contacto do Couchsurfing ainda não tinha respondido, e sem net, restava-nos apenas esperar que nos respondesse às SMS a explicar onde era a sua casa.
Continuámos pelas estradas rodeados de oliveiras e montanhas. Nas calmas mas sem parar, atrevo-me a dizer que estávamos a atingir um bom ritmo diário de pedaleio.
Chegámos a Eyguieres antes de começar a anoitecer e com um anúncio de Intermarché por perto, decidimos abastecer.
Entre várias entradas e saídas à vez para alguém ficar a vigiar as babes, lá recebemos uma resposta a dizer-nos para nos mantermos por ali, porque a sua casa era pertinho.
E assim foi, entrámos e saímos e petiscámos, abrigámo-nos do vento e esperámos.
À hora combinada o Romain e a Silvaine dirigem-se a nós e trocamos as devidas apresentações. A Sylvaine ficou a fazer compras e nós fomos andando, porque estavam preocupados connosco tanto tempo a apanhar este vento. Pelos vistos, quem aqui vive gosta de tudo menos do vento, que raramente dá descanso.
Antes de jantar conversámos um bocadinho, comemos uns aperitivos e experimentámos uma bebida típica da Normandia, donde era proveniente o Romain. Tudo como manda a tradição francesa. Foram sempre atenciosos connosco desde o primeiro minuto.
O jantar foi entre outras coisas uma surpresa para as duas partes. Para eles porque não tiveram tempo de ler bem o nosso perfil e não sabiam que a Ana não podia comer nada com leite. Em vez do que tinham pensado, que só para esclarecer tinha manteiga, natas e queijo, fizeram-nos uns suculentos bifes. O Alexandre teve a coragem de perguntar porque é que eles estavam assim vermelhos, em sangue. Para eles é uma refeição normal e com o hábito, que não desejo adquirir, tenho a certeza que é muito bom, mas custou-nos muito a comer aquele bife cru. Nós não somos chiques, é o que se pode concluir. Nunca poderemos ser verdadeiros franceses não gostando assim desta carninha tenrinha, cozinhada apenas o suficiente em cada lado para adquirir uma corzinha. O Romain é que estava nas suas 7 quintas e após termos junto os talheres em cima dos pratos fez-se aos bifes literalmente.
Mais uma vez a sanita estava sozinha numa pequena divisão, enquanto a banheira e o lavatório ficavam na parte de cima, junto ao nosso quarto.
A casa era fantástica. Com as dimensões perfeitas para nós. Tinha uma espécie de casa de arrumos no exterior, com sítio para churrascos, estender a roupa e no Verão havia uma piscina do condomínio que eram praticamente os únicos a utilizar. Os vizinhos eram de idade avançada.. A decoração deixou-me encantada com pequenos pormenores que a própria Silvaine gostava de fazer. Também eles tinham o tradicional pratinho cheio de trigo a brotar. No início de Dezembro cada pessoa faz o seu pratinho e no dia de Natal põe-se na mesa. Conseguir fazê-lo chegar até lá exige pouco trabalho mas ainda assim é um bom prenúncio para o ano vindouro.
Todos estávamos cansados e ninguém conseguiu disfarçar. Acabámos o jantar e fomos fazer um soninho descansado. No dia seguinte não tínhamos despertador e era sábado por isso o Romain não ia trabalhar, só a Sylvaine.

Palavas-les-Flots - Générac

Assim que acordámos, abrimos logo as janelas e deixámos a cheiro a mar entrar.
Pequeno-almoço despreocupado e nas calmas. Sylvie sugere pedalar connosco durante a manhã e mostrar-nos os atalhos e peculiaridades da sua terra. Muito bom! Pela primeira vez alguém que quer vir pedalar connosco e vêm mesmo!
Rapidamente, nos despachamos, montámos as burriquitas e nos fizemos à estrada. Sylvie encaminha-nos logo para o passeio turístico e junto ao mar e marinas da cidade e arredores.  Há cavalos brancos com longas crinas, touros e flamingos a completarem a paisagem, um pouco por todo o lado. De forma alguma teríamos encontrado este caminho, se não fosse ela. Sempre na converseta, eis que chegamos a um local em construção. Entre os três temos que carregar as biclas escadas acima e escadas abaixo, numa via de acesso provisória sobre o canal. Pelo caminho paramos numa pequena igreja com vitrais e decorações alusivas ao mar e aos homens ligados a ele.
Seguindo viagem, chegamos ao máximo que a Sylvie alguma vez pedalou. Mas o convívio estava tão animado e o vento nem por isso tão forte, e não fosse ela determinada em pedalar mais um pouco conosco, eis que começámos a perguntar por ecovias para a próxima vilazita junto às salinas.
Sempre junto ao mar, tanto quanto possível, lá tivemos que entrar por estradas que mais pareciam auto-estradas. Algures pelo caminho, dois ciclistas em sentido contrário e carregados com peculiares malas de viagem. Parámos todos e iniciámos uma converseta com os dois colegas ciclistas. Casal dos países do leste, palradores de Esperanto e casados à pouco tempo, vão viajando em direcção a sul e fugindo ao Inverno em duas biclas de viagem desenrascadas e mochilas a fazer a vez dos alforges. Ainda assim, já pedalaram e acamparam em condições muito piores que as nossas. Não sei do que nos queixamos às vezes.
Após 1001 perguntas de curiosidade entre nós e as despedidas feitas, pedalámos mais um pouco contra o crescente vento até chegar a uma vila que por ser Inverno estava às moscas, mas no Verão mais parece uma lata de sardinhas humana, disse-nos a Sylvie.
Procurámos um sítio que nos vendesse umas sandocas para matar-bicho e com algum pesar tivemos que dizer adeus à Sylvie, com três beijos na cara como é tipíco da região. Foi muito bom ter mais uma companheira de viagem, ainda que durante pouco tempo. Obrigado Sylvie.
De volta à estrada, em modo pedalar para queimar quilómetros, e contra um vento de frente cada vez mais forte.
Cansados do vento e estoirados, chegámos a Générac e a casa dos nossos anfitriões para esta noite. A nossa primeira família francesa, com filhos para compor, Eric e Pascale experimentaram também como é receber pela primeira vez dois surfistas do sofá. Não queriam que nos faltasse nada, mas nós mais não precisamos do que uma caneca de chá que nos aqueça.
Família de viajantes, em parte devido ao trabalho do Eric, partilhámos muitas histórias, dicas e opiniões sobre possíveis trajectos e logística de viagem, enquanto víamos um vídeo feito por eles e tomávamos um aperitivo antes do manjar. Eles preparam-se para o dia em que iram dar a volta ao mundo na sua moto BMW que estava na garagem. Talvez nos voltemos a encontrar por aí...
Com prenúncio de rajadas titânicas para o próximo dia, avisámos o Couchsurfer do dia seguinte que talvez não conseguissemos lá chegar.
Tentámos descansar o mais possível para o dia de vento que nos esperava...

Nizas - Palavas-les-Flots

Recompostos e repousados, estávamos prontos para mais um dia de pedaleio. Céu azul, sem nuvens e com um pouco de calor, o dia prometia.
Bárbara também já estava pronta para mais um dia de azeitonas. Ainda assim, não fosse a nossa anfitriã uma artista e fotógrafa, houve tempo para uma sessão envergonhada de fotografia. Enquanto preparávamos as nossas biclas e compúnhamos os alforges, a máquina da Bárbara não parou de disparar.


Despedidas feitas, começámos mais um dia de pedal em direcção ao mar. Água no horizonte desde que saímos do frio Atlântico.
O dia estava tão bom que pela primeira vez desde algum tempo, tirámos os casacos e sentimos suor e calor nas subidas e descidas dos montes.
Uma vez ultrapassadas as paisagens campestres e a última colina, eis que o Mediterrâneo se apresentou em toda a sua glória. Curiosamente, a imagem fazia lembrar as paisagens cheias de salinas de Tavira.
Quando começámos a entrar nas vilas e cidades, que de certeza se tornam megapopulosas no Verão, a construção era tipicamente turística e repleta de aldeamentos com ruas e ruelas que nunca mais acabavam. Orientavámo-nos  apenas por instinto em direcção ao mar. Ao chegar a um castelo algures perdido no meio das salinas, tentámos fazer corta-mato depois de perguntar aos nativos o melhor caminho para Palavas-les-Flots. Mas depois de alguns minutos e de tremelicos em terra batida, o caminho estava cheio de lama e quase intransitável. Um pescador, que se encontrava por perto, avisou-nos do mau estado do caminho e sugeriu outro em redor do castelo.
Com o sol já a desaparecer, demos meia volta, e no castelo, encontrámos a via pedonal que terminava na praia. Agora para chegar a Palavas, apenas teríamos que empurrar as burriquitas de carga pela praia, até à estrada.
Um casal e o seu cão fizeram-nos companhia neste troço de empurrão. Ainda houve tempo para umas fotos a um desporto que não fazíamos ideia ser possível nas águas plácidas do Mediterrâneo. Surf!
Já em Palavas, encontrámos a casa da nossa anfitriã professora de educação física, Sylvie e esperámos que ela chegasse a casa.
Houve logo empatia com esta professora simpática que parecia nunca parar e conter energia infinita. Ela e o marido, compraram e renovaram  esta casa, quando Palavas apenas era uma pequena vilazita junto à cidade de Montpellier. Durante mais de vinte anos, renovaram, pintaram e remodelaram, enquanto criavam dois filhos e ensinavam desportos náuticos aos jovens locais e criavam associações e clubes em prol da terra onde viviam. Com os filhotes já fora de casa, Sylvie ainda consegue encontrar tempo para viajar e conhecer o mundo sempre que pode e quando não pode, usa o CouchSurfing para que o mundo vá ter com ela.
Com uns tacos mexicanos, sopa (feita de propósito para acalmar o estômago Alexandrino) e fruta na barriga, o sono dos justos e o calor desta casa de família atirou-nos para os nossos aposentos. Com o Mediterrâneo a poucos metros e uma janela para o ver. Uns dormiam ao som das ondas enquanto outros aproveitam para actualizar a vida digital dos Nomadiclas.
Era quase como estar em casa e amanhã o sol decidirá a hora de acordar...

Nizas

Depois de passar uma noite a vomitar e sem que nenhum dos dois conseguisse dormir, decidimos passar mais um dia em Nizas e ver como é que a saúde estomacal Alexandrina evoluía. Ainda bem, pois o dia estava de chuva e deste modo evitamos uma molha de bicla.
A Bárbara também ficou por casa. Tempo de chuva não é bom para a apanha das azeitonas. Sem grandes movimentos e com nada mais do que chás e torradas, a manhã passou calmamente em interiores.
À tarde, enquanto a nossa anfitriã ia ao fisioterapeuta para a sua massagem semanal, aproveitámos para passear na parte antiga de Pezénas, a cidade "grande" mais perto de Nizas.
Na primeira loja colorida que entrámos, fomos logo recebidos com amostras de bolos, bolinhos e rebuçados feitos em casa. Depois dos habituais "uuuussss" e "aaaasss" que recebemos ao dizer de onde viemos e para onde vamos de bicicleta, ficámos a saber que a loja têm bastante sucesso e até já começou a abrir sucursais em Portugal.
No geral todas as lojas e cafés que vimos em França são muito chamativos e coloridos. Todos têm aquele ar chique francês.
Esperamos pela Bárbara junto ao posto de turismo e voltámos para o conforto de casa e para uma deliciosa bolonhesa que acalmou a doentia fome de uma noite mal passada.
Sabores de Itália com ares da Alemanha em França. Ça va?

Narbonne - Nizas

Deixámos a casa do nosso mais recente amigo budista, com uns croissants quentinhos que comprámos ali na esquina! Huuuummmmm!
Narbonnne cheia de luzes, com as colunas a despejar música natalícia, e rádio francesa, as montras cheias de pinturas nos vidros, e ideias para prendas. Consumir, consumir, consumir! No centro das cidades há sempre um ringue de patinagem, e animação aos fins de semana, do tipo popota! E montes de gente a passear, com crianças! É demasiada gente para nós, mas ao mesmo tempo há algo de reconfortante no ar.
Almoçámos na cidade que vários Couchsurfers, nos disseram ter um ambiente com bad vibes. E a verdade é que não nos sentimos lá muito confortáveis ali, não sei se fomos influenciados ou não. Tudo com um ar cinzento e sujo. Vimos marroquinos, ou tunisinos, por todo o lado, e lojas das mesmas origens.
Tentámos sair dali o mais depressa possível, foi esquisito.
O caminho continuou cheio de vinhas e adegas a publicitar vinhos da região. Bandos de pássaros malucos a espassarinhar que nem uns maluquinhos. Pousavam nos fios de telefone e qualquer ruído que fosse diferente dos seus sons habituais fazia-os levantar voo em debandada e formar uma nuvem negra no céu, como um cardume no oceano a mudar de direcção a cada 3 segundos.
Chegámos a casa da Bárbara, cedo. Íamos para lá com esperanças de aprofundar os nossos conhecimentos em enologia, se é que me entendem... mas afinal, ela é fotógrafa. O que, apesar de não ser o que estávamos à espera, foi muito interessante.
Ficámos num estúdio que costuma alugar, com um pequeno jardim desgovernado em frente, onde deixámos as biclas. Um chá e um bolo de maçã que comemos em menos de nada foram a nossa recepção. Muita conversa sobre fotografias, a vida, e projectos futuros.
O jantar foi uma fantástica sopa, que se parecia com a nossa comida portuguesa. E uma mostarda que fazia mais parte dos hábitos da nossa anfitriã, do que os nossos, mas que mesmo assim provámos com curiosidade.
Num descuido de conversa entusiástica, atirámos um copo de vinho à parede, deixando para sempre uma marca na pintura da cozinha.
A noite terminou de forma inesperada. O Alexandre não se sentiu bem logo após experimentar a mostarda francesa e daí até vomitar-se todo pela noite fora foi uma questão de descer as escadas e deitarmo-nos.
Une nuit blanche como nos disseram...

Narbonne

O dia começou com um ritual para nós estranho, mas perfeitamente rotineiro para o Fred, uma oração a um pequeno Buda na mesa de cabeceira.
Depois do Fred ir comprar umas baguetes frescas e das confitures todas tomadas, fomos ver este cozinheiro em acção no mercado da cidade!
Cheio de agitação, como qualquer mercado em Portugal,  Fred esquivava-se suavemente dos transeuntes e ia como uma flecha às bancas mais habituais para ele e metendo sempre conversa com os comerciantes. Com o peixeiro lá da zona, travou longa conversa enquanto metia ostras e mexilhões no saco, assim como uns peixões frescos. O peixeiro já estava habituado a que o Fred por lá aparecesse com pessoas de outros países e lá tentou meter conversa com connosco. Mas ele só falava francês e a tradutora oficial de francês dos Nomadiclas não estava por perto.
Já em casa, umas deliciosas ostras e mexilhões (crus) como início e uma rica sopa de peixe, serviram de desculpa para uma siesta espanhola durante a tarde.
Ao fim da tarde, fomos passear pela cidade, e conhecer os famosos canais que atravessam toda a França e o resto da Europa, e que permitem navegar por todo o continente sem nunca tocar no mar ou ter uma carta de marinheiro!
À noite... o terror. Cozinhar para um cozinheiro francês! Fred já nos tinha avisado que tinha dificuldades em não olhar ao que fazíamos na sua cozinha. Sempre que alguém cozinhava no seu campo de batalha, este general sentia o seu bigode imaginário a espevitar de nervosismo. Mas ele prometeu tentar conter-se desta vez e assim o fez, enquanto umas batatas esmigalhadas e bifes de peru com cogumelos era confeccionadas. Se esta ementa andava a fazer o sucesso nas casas de todos os anfitriões que a provavam, era a nossa melhor arma contar este pacífico general de guerra que já cozinhou ao lado de comandantes como Gordon Ramsay.
Tudo na mesa e prontos para o ataque! Momentos de tensão, rapidamente desvanecidos após uns sorrisos do Fred e umas palavras de "relax"!
Sucesso! A combinação de batata com o toque de limão não constava na ementa de paladares do Fred e mereceu por isso a sua aprovação!
De barriga cheia e após fotos partilhadas, o sono dos justos.
Abençoadas batatas!

Carcassonne - Narbonne

Depois de um pequeno-almoço de fruta e confiture com o Philippe, todos descemos para a rua e para cima dos nossos selins. O Philippe para o seu treino Ironman, nós para uma descida de 50km até Narbonne, onde Fréderic nos iria receber. A foto do couchsurfing deste nosso anfitrião era de ele próprio junto ao Dalai Lama, por isso o serão prometia mais conversetas animadas pela noite dentro.
Ainda antes de sair de Carcassonne, fomos passear pela Citè. A parte antiga da cidade e provavelmente a capital do turismo medieval do mundo. O dia ainda era jovem, por isso as ruas e castelos estavam vazios e ainda a acordar. Algumas pessoas caminhavam rapidamente  em trajes de cavaleiro ou de donzelas princepescas. As tendas coloridas erguiam-se e as espadas eram afiadas, ao mesmo tempo que o camião do lixo fazia a sua ronda. Ao chegar o primeiro autocarro de turistas japoneses, decidimos que já estava na hora de regressar à nossa época.
Pela primeira vez em muitos dias, os casacos ficaram nos alforges. Podíamos sentir o calor do sol e a pedalada foi bastante rápida e o tempo misericordioso.
Chegamos tão cedo que ainda tivemos tempo de fazer uma limpeza às correntes e de uma forma geral às biclas e aos alforges. Tudo estava com um aspecto algo lamaçento. A neve só é bonita ao cair e não ao derreter.
Em Narbonne, fez-se sentir ainda mais o espírito de Natal. A pista de gelo a fingir, pois era de plástico, estava repleta de pequenos e graúdos a patinar. As ruas animadas com o pessoas a sair e entrar de lojas e a passear pelos cafés e as suas esplanadas convidativas com o soalheiro dia.
Não muito longe de tudo isto, numa ruela perdida do centro de Narbonne, vive o Fréderic. Numa casa com apenas uma divisão, este verdadeiro budista e cozinheiro francês, partilhou connosco as suas histórias de viagens pela Ásia, continente pelo qual nutre grande paixão e afinidade.
Conseguiu manter um restaurante aberto em Katmandu durante nove meses e viveu durante anos numa perdida ilha da Tailândia.
Já correu e viveu tudo o que havia para ver naquela parte do mundo. Desde Índia ao sudoeste asiático, Fred levou-nos com as suas histórias até lá, e fez-nos ansiar pela nossa vez de entrar nesse mundo distante.
Não fosse ele um cozinheiro francês, o jantar foi delicioso. Sabores do Norte de África numas almôndegas e num couscous divinais. Obrigado Fred.
Já ao anoitecer, os dois sofás da única divisão tornaram-se em duas camas e cada um em seu canto, descansou o que havia para descansar depois de mais um dia de suave pedal.

Loubières - Carcassonne

O dia iria ser longo e cheio de incertezas quanto ao caminho. Muitos altos e baixos? Vento a favor ou contra?
Acordámos ainda o sol não sorria, e começámos a transformação corporal em bonecos michellin. Lá fora nevava, e depois de maus dias a pedalar ao frio, não queríamos repetir a experiência.
Tudo com uma leve camada de branco. Os carros, as estradas, os edifícios, as crianças a brincar no recreio matinal da escola, a relva e os campos lavrados. Estes últimos, faziam lembrar um bolo de chocolate com uma camada de açúcar em pó por cima!
Mas correu bem. Não ouve frio que vencesse os bonecos michellin ciclistas. Mas sempre que saíamos do selim e parávamos por alguns minutos, tudo começava a gelar e a doer. O motor corporal abrandava e as extremidades esfriavam.
A bicicleta é o melhor remédio contra o frio.
Apanhámos montes sim, mas as descidas eram maiores. Apanhámos algum vento, mas depois do nevão matinal, o céu azul em frente e a sensação transmitida pela paisagem, de estarmos a pedalar para fora dos frios Pirenéus e a aproximar-nos do mar, era mais forte do que qualquer borrasca de vento perdida.
Depois de algumas vilas e cidades medievais, eis que chegámos a Carcassonne. Eram 15:30 e já tínhamos os 80km de T.P.C. pedalados. Agora restava-nos esperar e cruzar os dedos para que o nosso anfitrião não falhasse. Philippe combinou connosco às 19h na praça central da cidade. Depois de vários SMS enviados, a avisar da nossa antecipada chegada, mas não entregues, começámos a temer o pior e a formular planos B de campismo selvagem vs albergue.
Para passar o tempo e vencer o frio, percorremos todas as ruas e ruelas em volta da praça, várias vezes. Fomos ao Mac, atestar o depósito e comunicámos com o mundo digital.
Mas as 19h, chegaram e passaram, e já resignados a procurar um albergue e a sair da praça, eis que em sotaque francês, a palavra "Alexandre" se ouve por detrás.
Philippe apenas se tinha atrasado um pouco e perdido o telemóvel no comboio.
Na sua pequena mas muito acolhedora e organizada casa, aprendemos que cerveja com xarope de morango é uma delícia de aperitivo. Que legumes ao vapor e omeletes saciam qualquer desportista esfomeado. Que a Córsega é a terra do coração deste Ironman que se prepara com afinco para uma competição de triatlo em Julho. Que no Cazaquistão fazem bons chocolates. Que a mesa da cozinha era uma garagem de bicicletas por debaixo. E que mesmo numa grande cidade, num apartamento minúsculo e sem qualquer planta ou quintal, existem pessoas que fazem compostagem! No meio de muitas conversetas e risotas, lá se fez mais uma noite e depois de cada um na sua cama e da vida digital tratada, o repousador sono apareceu já de madrugada...

La Bastide de Besplas - Loubières

Nós não o sentimos, mas durante a noite fez um frio de nevar. Lá fora tudo estava coberto com uma fina camada de neve e gelo que desaparecia com o imaculado céu e pujante sol.
A casa despertou e passado um pouco já o futon/sofá do Ikea estava no seu devido sítio e todos nós sentados à mesa a bebericar chocolate quente, pão com manteiga de amêndoa, chá e batidos de bananas com passas, clementinas e frutos secos. Tudo delicioso!
Enquanto um de nós ajudava a Fanny a arrumar na sua carrinha, as roupas e material necessário para a exposição em Toulouse, o outro arrumava a tralha do pequeno-almoço.
Saímos sem olhar para as horas, descansados da vida, com um sol radiante e promessas de estradas planas até ao destino tão próximo.
E assim foi. Calmamente percorremos os 30 e poucos km que separam La Bastide de Besplas de Loubières.
Seguindo as indicações e o mapa rabiscado da Fanny encontrámos a casa dos cinco. Uma mansão lindíssima por fora e um potencial enorme por dentro.
Depois de avisar um dos cinco, por SMS, entrámos em casa. Nos últimos sítios onde temos ficado, portas fechadas à chave é coisa que ninguém se lembra.
Entrámos para nos depararmos com uma enorme sala/cozinha/mezzanine e uma remessa de quartos e divisões espalhados pelos dois andares da casa. Tudo vazio.
Esperámos e esperámos por algum sinal de vida. Mas nada. Actualizamos as escritas, as fotos e fizemos contas à vida. Explorámos a cozinha em busca de potencial fonte de nutrição para o jantar. Fizemos e desfizemos tempo, mas ninguém chegava.
Ás 19:30, não aguentámos mais e fizemos o jantar com o que havia lá por casa e com o que havia nas malas. Foi então que, com a boca cheia de comida quentinha, chega o primeiro habitante da casa. Virginíe. Uma recém formada professora de pequeninos que passa a vida a trabalhar. De sol a sol.
Ficámos a saber que os restantes habitantes, não iriam aparecer hoje. Ligamos a lareira improvisada, acabamos o jantar e conversamos um pouco, até a Virginie retomar a sua correcção de testes.
A noite acabou no quarto do namorado da Fanny, que pela desordem por lá espalhada, percebemos que fazia Nougats caseiros como ganha pão.

Monfta – La Bastide de Besplas

As meninas ficaram meio choramingas quando o pai parecia abandoná-las com estes dois estranhos. Mas com crepes alexandrinos e umas brincareiras para aqui e  para ali, ficámos todos muito mais bem dispostos.
Nós arrumámos as malas, e tudo o que andava por ali espalhado e elas tomaram um longo banho, ao som das cassetes do Harry Potter, com um accent muito british. Até às 12h30 Harry Potter foi a banda sonora. Easy pizzy. Quando a fome começou a apertar desceram e vieram cirandar para cozinha à procurar de petiscar o que haveria. Mas sem sorte, esperávamos pelo Robert para almoçar.
Às 13h voltou apressado para as levar à aula de piano. Afinal almoçariam quando regressassem da música.
Terminámos os nossos afazeres, almoçámos com calma e mesmo antes de partirmos chegaram os 4. Fizeram uma fila lado a lado para nos dizer adeus e lá fomos nós.
Foi com muita pena que decidimos não passar pela casa do Joe, porque sem ter a certeza da facilidade do caminho, preferimos jogar pelo seguro e  seguir logo em direcção a casa da Fanny. Às 15h30 já lá estávamos a tomar chá à lareira e a conversar com as outras visitas. Mais uma casa de vegetarianos. Mas aqui todos tinham em comum o artesanato e as vendas em feiras ou exposições. A Fanny depois dos estudos e  4 anos a trabalhar com Química, deixou para trás a vida de alquimia e enveredou pelo caminho que lhe ensinou a sua avó. Coser. Com um atelier cheio de roupas de mil cores, dos mais variados tecidos, padrões e estampados, que adquire nas suas muitas viagens, é uma verdadeira artista. Todos os anos visita o Nepal e Indía, e às vezes o Tibete. Desenvolveu com amigos um projecto que envolve ajuda humanitária nestes países do seu coração.
A tarde foi calma, à lareira com chá, avelãs, livros e conversas. A colega de casa, a Isabel chegou, fez logo uma sopa, reacendeu a lareira a esmorecer porque estava muito frio. Um paté de nozes, sopa e gratinado de legumes foram o nosso jantar, com direito a gargalhadas a propósito das tradições portuguesas de cueca azul nova na noite da passagem de ano.
Mais umas conversetas, visitas à Internet, banhos e fomos dormir, numa cama que já tinha sido a nossa. Que bom, para matar saudades.
Bem que dizia a Steph que com o Ikea os recheios das casas são todos iguais.

Monfta

A nossa janela de céu por cima e as brincadeiras matinais das manas ajudaram a despertar. Descemos para a cozinha e fascinados com o pequeno almoço que estava a ser preparado, quisemos logo fazer para nós também. Um ovo mal cozido, uma fatia de pão e tudo desfeito dentro de uma chávena, é uma delícia.
Saíram todos e ficámos sozinhos com a casa, a horta, os animais, e a lenha. Picámos a água gelada dos burros, demos de comer às galinhas e aos cães, explorámos a horta e as divisões da casa e do celeiro ao lado. E o prémio para a casa mais ecológica vai para.... casa do Robert! Estávamos deslumbrados com tudo. Durante o dia fomos petiscando fruta e bolachas bio. Tudo tinha etiqueta bio ou então percebia-se de imediato que vinha da horta ou era caseiro.
Arrancámos emocionados, pela primeira vez cenouras e alhos francês da terra, com direito a fotos e tudo. O almoço foi um aproveitamento de comida, vegetariana claro, mas estava daqui (aperto no lóbulo da orelha). Além de dar de comer aos animais, ficámos de fazer o jantar. Um bocado inseguros com esta história do vegetarianismo lá fizemos umas paparocas boas, mas à maneira portuguesa, que é como quem diz, para um exército.
Aproveitámos e lavámos alguma roupa à mão, dormitámos, escrevemos, lemos, vasculhámos, e às 18h30 estávamos novamente os 6 à mesa a comer. Se a mãe Rachel estivesse por cá, mais a Orphé (1 ano) seríamos 8. Uma família de 4 irmãs, com idades em escada de 4 em 4 anos. Uma mãe parteira e um pai doutorado em fazer violinos e a estudar para ser doutorado em filosofia da matemática. Como se não bastasse só uma das duas...
Um dia para recuperar, descontrair e aproveitar o espaço.
À noite estirámo-nos junto à lareira a ler, escrever e a bebericar um chá. Os planos para o dia seguinte seriam partir logo de manhã e aproveitar para passar pela casa do Joe e desfrutar da sua enérgica companhia num lanche. Sozinho com as três filhas o Robert tem sempre que fazer, pediu-nos para ficar a manhã do dia seguinte com a Violet e Esme, porque não tinham aulas. Sem problema, a casa seguinte era a 10km.
Subimos a escada de madeira até ao telhado e à janela de céu...

Villenueve-de-Riviére - Monfta

Em casa de carteiro, acorda-se cedo. Como aqui moram dois, não há molenguice para ninguém.
Às 6h já se ouviam os despertares da Gené e do Vincent.
Ainda meio arremelados, descemos mesmo a tempo de dizer adeus ao Vicent, que ainda pensou em nos ofertar um termo e ainda teve tempo para uns avisos de estrada geladas e escorregadias.
Tomámos o pequeno-almoço com a Gené, que entra ao serviço mais tarde, e num ápice estávamos todos na rua a despedir-nos com uma série de beijos e demonstrações de que em Portugal, os dois beijos na cara são da esquerda para a direita e em França são ao contrário. Eram 7:45 da manhã.
Depois de de momentos fotográficos com as nossas modelos favoritas, les vaches, até St. Gaudens, tivemos que lá parar para enviar um SMS ao nosso próximo host, para nos certificarmos que não estávamos a pedalar para um local sem acolhimento e abrigo do frio da noite. Ainda por cima, este próximo host, vivia bem no meio das montanhas e do campo, em profundo isolamento e comunhão com a natureza.
Estava muito frio. E durante as horas seguintes, sentimos o que é pedalar junto aos Pirenéus no Inverno. Um frio sub-zero acompanhado de um vento miudinho e irregular, enquanto atravessámos uma longa planície. Tudo completamente gelado. Pernas braços, mãos e pés, nariz a pingar e vermelhusco, acompanhado com uma terrível sensação de mal-estar e de dor de frio. Foi talvez, o maior nível de frio que sentimos desde que estamos a pedalar.
Uma vez fora das estradas principais, as curvas e contra-curvas, as subidas e descidas íngremes e o abrigo das colinas, sempre deram para enganar o frio.
A meio caminho, e com problemas de comunicação com o nosso host, tivemos de fazer uma chamada de último recurso a uma outra couchsurfer que vivia por perto. Entrámos numa Marie e pedimos à senhora que lá trabalhava se podíamos utilizar o seu computador para apontar o número da Fanny e telefonar-lhe em seguida. Tudo a correr bem, quando a simpatia e o calor francês estão sempre prontos a ajudar. Num francês meio inglês, lá falamos com a Fanny que nos disse não haver problema algum em lá aparecermos em cima do joelho.
Depois de uma subida manhosa e longa, eis que o primeiro host dá sinal de vida para nos avisar de que éramos bem vindos. Se estávamos com medo de não ter onde passar a noite, tínhamos agora duas casas por onde escolher. E o dia ainda não tinha acabado...
Rumámos em direcção ao primeiro host. Pelo caminho duas crianças junto à estrada ficaram a olhar para nós. Uns minutos depois, já com o sol atrás das colinas um audível e nova-iorquino "Hello!" saudava-nos. Uma das crianças tinha ido avisar o pai de que duas pessoas de biclas e alforges estavam por perto. O pai, Joe, um experiente viajante de bicicleta, com mais de 13 anos sobre o selim, continentes inteiros atravessados e um livro escrito, convidou-nos a ficar em sua casa em vez de fazermos camping com este frio. Três casas por onde escolher!
Recusámos, dizendo que um vizinho seu, o Robert, já nos iria acolher. Ainda assim, ele e o filho acompanharam-nos até à quinta de destino, já com a noite a cair e com a conversa de viagens e dicas transcontinentais. Joe, o homem que encontrou a sua esposa enquanto ambos pedalavam no Tibete e que já levou os seus filhos (o mais velho de oito anos) em duas tours pelo mundo. Uma inspiração.
Ao chegar à quinta do Robert, entrámos numa casa de madeira e recuperada por ele e a mulher, com uma lareira como aquecimento central para nos acolher. Junto à lareira, Esmé (9 anos) e Agnes (13 anos), jogavam gamão enquanto a mais nova, Violet (5 anos) pintava uns desenhos. Depois de nos indicar o quarto, com janela no tecto, e de nos saciar com uma valente refeição vegetariana, ficámos na sala, deslumbrados com os trabalhos de casa de Esmé e Agnes: Violoncelo e piano.
Já meio adormecidos com o calor da casa, depois de um dia de muito frio, arrastámo-nos para a nossa cama cheia de ederdons e debaixo das estrelas.

Tarasteix - Villenueve-de-Riviére

Às 8h30m já estávamos em cima dos selins. Um dia magnífico, céu limpo. A vista fantástica dos Pirenéus à direita. Estrada plana.Perfeito.
Perto das 12h30, começou a nevar. Uns farrapinhos muito pequeninos, que assim que tocavam no chão desapareciam. Quando decidimos parar para almoçar e refugiar-nos do tempo, a neve parou.
A ideia de cozinhar, parecia boa, porque saberia bem uma comida quentinha no meio de tanto frio. Mas não foi preciso muito para preferir as sandes. Uma opção muito mais rápida e menos fria, por causa de termos de lavar a loiça. No Verão cozinhamos com fogão, no Inverno comemos sandes!
Regressámos à estrada e minutos depois recomeçou a nevar. Desta vez com mais intensidade. Parámos para vestir os impermeáveis: calças, casacos e luvas. Como uns bonecos michelin, sentimo-nos um pouco atordoados com este novo clima, experimentado pela primeira vez na bicicleta. E tirando a neve que caiu em Portugal há cerca de 5/6 anos, foi a nossa primeira vez a sentir neve. Uma experiência com várias emoções contraditórias à mistura, mas muito positiva. Adorámos. Os alforges ficaram cobertos de neve em cima, assim como os casacos, as luvas, e o volante da bicicleta. Mais uma hora de caminho e já tinha desaparecido tudo. A vila de destino estava perto e estávamos de bom humor. Quando chegámos mandámos uma mensagem a avisar os nossos hosts do Couchsurfing. Telefonaram a pedir-nos para aguardarmos pela sua chegada. Vieram e após as apresentações seguimo-los de bicicleta. Avisaram-nos da subida de 1,5km mesmo antes da sua casa, e ofereceram-se para carregar as nossas malas, ao que respondemos não. Mantemo-nos firmes até agora em pedalar tudo. No cheating.
A subida, era de facto ingreme, e longa. Nas  mudanças mais baixas e muito muito devagar fomos subindo, um pouco constrangidos com a presenças dos nossos anfitriões que insistiram em manter-se por perto.
Mal entrámos na garagem deparámo-nos com uma tandem, umas 4 orbeas e mais umas 2 ou 3 outras bicicletas à vista. Sabíamos de antemão, por consultar o perfil no Couchsurfing, que já tinham pedalado nas férias, na América e outros países.
A casa era lindíssima, cheia de quadros por todo o lado, biblots referentes ao mar, e a decoração muito delicada. Parecia um museu, no bom sentido, se é que pode ter um mau. A mesa estava posta com chá e biscoitos, que depois de confirmar que eram sem leite comemos gulosamente. E conversámos. Sobre bicicletas. O primeiro e único casal até agora que já fez e percebe o que estamos a fazer de uma maneira mais empática. A Geneviéve (Gené) e o Vincent. O vincent tem um porte que recorda o Gerard Depardieu, era grande. E a Gené um aspecto frágil, mas doce. Encheram-nos de perguntas sobre aspectos técnicos da viagem e das bicicletas, e partilhámos experiências vividas até então. Quiseram mostrar-nos o seu vídeo, já editado, da viagem pela América. Custou um bocadinho porque estávamos muito cansados e sonolentos. Mas conseguimos. Tomámos banho, com o conselho de que um banho de imersão é melhor para a recuperação muscular.
O jantar foi servido de seguida. Como não poderia deixar de ser comemos massa, com carne. As conversas e conselhos sobre bicicletas continuaram. Muitas dicas, muitos truques de quem já faz ciclismo à muito tempo. As suas viagens começaram após muitos anos de ciclismo e os conhecimentos adquiridos então adaptaram-se a estas viagens. Conselhos como alternarmos a cada 1km quando há vento de frente ou de lado, controlar o tempo das paragens para não ultrapassar os 5 minutos, por causa do ácido lácteo, e muito mais. O que mais nos chocou mais foram os 190 km percorridos num único dia, dito como se fosse a coisa mais normal do mundo. Até tivemos vergonha de dizer quantos tínhamos feito ou costumamos fazer. Até Tarasteix fizemos 94km e estávamos com o ego dans les nuages, mas depois deste encontro 80km por dia nunca mais vão ser o mesmo.

Tarasteix

O dia começou tarde. Toda a gente se deitou depois da uma. Tomámos um pequeno-almoço tardio. A Nathalie deixou tudo preparado para nós.
Saímos para um chá com a melhor amiga da Nathalie, a Mariette. Fomos ao E'leclerc. O centro comercial estava cheio de gente a comer fast-food, e fazer compras. Comprámos um livro para o aniversário da mãe do Damien e comida para fazer o jantar. O Damien além de skater, faz surf, ski e snow board, um verdadeiro adepto de desportos de exterior e adrenalina. Já foi operado 3 vezes aos joelhos! Mostrou-nos o seu portfólio de maquetes. Simplesmente fantástico! Um verdadeiro artista. No braço tinha uma tatuagem muito gira e original, fruto da sua criatividade.
Perto da hora do lanche, estava tudo cheio de fome e voltámos a casa, com a promessa de um reencontro no bar mais à noitinha.
Estendemos a roupa no quentinho da sala. Uns lancharam mais sossegados, outros cozinhavam o jantar. Três jogos de Yhum depois, todos para mesa. Tínhamos as famosas batatas esmigalhadas com bifes e cogumelos. No final ficou tudo muito bem rapadinho com pão. Todos de barriga cheia, acabámos também a caixa de chocolate.
O Bastién é o colega de casa perfeito. É chocolateiro. Trabalha e estuda com os melhores de França. Os japoneses querem aprender com eles e tudo! Desde presentes inteiros feitos em chocolate, a caixas cheias de bombons, gelados, e pastelaria. Este jeune homme trés mince é um verdadeiro connaisseur!
Os sofás junto à lareira, mais umas chávenas de chá, rebuçados de funcho da Madeira. O serão afinal não foi a ouvir grupos de heavy metal no pub mais cool de Tarbes, mas a conversar e a partilhar vídeos de música na Internet.
Deixámos tudo pronto para de manhã, escrevemos um pouco e descarregámos e seleccionámos fotos antes de ir dormir.

Castétarbe - Tarasteix

Por volta das 9h deixámos para trás o número 1336 de Castétarbe.
Uma hora depois avistámos montanhas, os dois quase em simultâneo, deixámos palavras por completar, para voltar a olhar e a confirmar a visão! Um deslumbramento apoderou-se de nós, quase como um vazio na barriga, uma mistura de fascínio, com humildade, impotência e alegria enchiam-nos, perante a grandeza magnificente dos Pirenéus. Silêncio e contemplação só.
Em Pau, estacionámos junto de um campo de futebol com bancos de jardim! Decidimos almoçar sandes, por ser mais rápido e prático. Baguettes, ratatouille, pimentos, atum e tangerinas. Um visitante insistente tentou a sua sorte mas, perseguido várias vezes até levantar voo, acabou por se manter à distância. Várias pessoas vieram passear os seus cães. Um deles, de três semanas apenas, cativou a nossa atenção e no final queria ficar connosco.
A saída da cidade foi atribulada, muitos carros e estradas, acrescentaram 10km extra aos planeados. Talvez por termos demasiada consciência do que ainda faltava sentimo-nos ansiosos e cansados. As paragens para xixis ou comer quase que desapareceram.
A luz enfraqueceu. Cansados. Fome. Paragens impensáveis, perder tempo de luz. Ger à frente. Sol a ir-se embora. Vestir coletes, ligar a luz traseira. Continuar. Droix. Um nome que esperávamos. Ânimo. Faltava pouco. Tarasteix. Chegámos, era ali. Relaxar. Mas onde? Sms. Rua atrás da igreja. No topo. Pedalar. Perguntar. Mais um pouco até à igreja. Estradas sem candeeiros. Casas muito separadas. Igreja. Ah! Estávamos à frente. E agora? Esquerda ou direita? Sms. Fome. Frio. Sms. Resposta confusa. Outro sms. Vêm ter connosco. Esperar. Frio. Chegaram. Seguimos devagar. Atrás. Escuro. O carro lá ao fundo. Outra luz no breu, mais acima. Seguimos às cegas. Risos nervosos. Continuámos. Sem ver nada. Cuidado com a berma. Sente-se nos pneus a terra. Vira-se para a estrada. Silêncio. Ninguém. Mais escuro. Rodeados de árvores. O carro ao fundo. Sobe, vira, sobe. Onde estaria a lua? Subimos, virámos. Cansados. Subimos. Está quase. Palavras cansadas, expiradas. Contra luz, duas sombras. Silhuetas de pessoas. Chegámos. Nathalie, Damien. Ana, Alexandre. Hello. Beijos. Mãos. Sorrisos. Bicicletas na garagem. Subimos. Calor. Bonjour Bastien. Chocolates. Fogueira. Banho. Batatas fritas com salsichas, xarope de menta, arroz. E chocolates. Muitos. Galinha de chocolate. Escorpião de chocolate. Caixa de chocolates. Risos descontraídos. Sorrisos. Gostos semelhantes. Mais sorrisos. Cansaço a chegar.....
Fome, não! Frio, não! Suor, não! Sono, sim!

Castétarbe

Sem despertador, decidimos pôr o sono em dia, depois de noites mal dormidas em comboios de pesadelo e cansaços de arrumar malas.
Soube bem, acordar sem ouvir nenhum som no exterior excepto as folhas, os pássaros e a chuva a cair sobretudo. Escolhemos bem o dia para ficar em interiores.
Depois de muita espreguiçadela, subimos aos aposentos principais dos nossos anfitriões, onde um reconfortante pequeno-almoço estava já a ser preparado. Fruta, café, chá, torradas e confeitaria nacional, aconchegaram as nossas barrigitas...
Este casal de reformados tudo faz para não esmorecerem. viver é com eles, e entre os trekkings de 12h todas as terças nos Pirenéus do Freddy, o comércio justo da Mireille e as viagens pelo mundo fora todos os anos, conseguem preencher e enriquecer todo o seu tempo.
A seguir ao almoço, enquanto o Freddy fazia uma siesta, fomos com a Mireille passear pela cidade de Orthez. Passear, como sinónimo de andar de carro pela cidade, enquanto a víamos por uma janela turva de tanta chuva que caía. Ainda arriscámos sair um pouco do automóvel para ver a antiga ponte e a praça de touros, mas foi sol de pouca dura. A chuva vencia os mais audazes.
Após mais umas voltas, eis que chegámos à fabrica de tecidos de um dos irmãos de Mireille. Entrámos pela loja, mas prontamente fomos encaminhados para os bastidores desta, onde os mais diversos padrões eram entrelaçados com as mais diversas cores, numa lufa lufa de entregar encomendas em todo o mundo. Ainda tivemos direito a uma oferta do irmão de Mireille. Foi o nosso primeiro presente de Natal.
Como a agenda para o serão já estava programada, petiscámos rapidamente uma sopa e às 19h, fomos com os nossos anfitriões para um restaurante de tapas, ouvir um dos encontros culturais que todos os meses se dá. São encontros, com conversas e apresentações sobre um tema em específico. Nesta noite chuvosa, a comer tapas e a beber vinho junto a um lago, ouvimos um filósofo dissertar sobre a vergonha. Tudo no mais profundo francês.
Já em casa, um chá antes de dormir e umas conversetas em inglês/francês aconchegaram os nossos espíritos.
Um muito bom primeiro dia no seio de uma família francesa. Obrigado Mireille e Freddy.

Saubrigues - Castétarbe

O dia começou com a montagem das bagagens nas bicicletas. Um bom pequeno-almoço e umas fotos depois e despedimo-nos. A Adelaide e a meninas foram para a escola e trabalho e nós para o (re)início da nossa viagem! Ainda nem um quilómetro tínhamos completado quando nos apercebemos que um dos suportes da frente estava a tremelicar de um lado para o outro, quase a roçar no pneu! Combinámos que, assim que chegássemos a casa dos nossos hosts do CouchSurfing, desmontaríamos e voltaríamos a montar os suportes para evitar um desastre e ter de comprar uns novos. Na oficina dos mecânicos bascos, um suporte dianteiro, num espaço de 2 minutos entortou-se de tal maneira que não conseguíamos por a mala! Com umas marretadas diminuiu-se o entorse e conseguimos montar as malas. Por isso não nos lembrámos mais dele até este dia.
O nevoeiro matinal, durou até às 11h00. A estrada era relativamente plana e passámos por uma rotunda com uns kiwis gigantes, por se tratar da terra dos kiwis!
As cores à nossa volta são degradés de laranjas, amarelos e vermelhos. Há folhas a cair em cima de nós, e a terra coberta por um manto de folhas coloridas e molhadas! O fumo que sai das chaminés e o cheiro a lareira são nostalgias de uma vida que parece distante. O sol aquece e conforta-nos. As nuvens sempre presentes no céu a viajar, por vezes escondem o sol. Então a temperatura parece descer em segundos, para logo de seguida o vento destapar o sol e voltar o quentinho.
A meio do caminho almoçámos umas sanduíches e voltámos à estrada. Seguimos por estradas secundárias até Castétarbe. O que acontece, normalmente, é que, assim que chegamos à localidade do destino relaxamos cedo demais. Mesmo que nos digam que se trata de uma pequena vila ou aldeia, a verdade é que demoramos mais tempo a encontrar a morada do que a fazer 30km.
Perguntámos a muita gente e com tentativas e erros fomos afunilando hipóteses e acabámos por encontrar o sítio.
O Freddy veio receber-nos e mostrou-nos logo o nosso quarto. O lavatório, a sanita e o duche ficavam cada um em seu canto!
A Mireille chegou de seguida. Fez-nos um chá de roibos e junto à lareira conversámos enquanto aguardávamos pela hora do jantar. Os dois estávamos esganados de fome. Mal sabendo que também eles jantavam mais cedo, habitualmente. Uma sopa deliciosa, paella, a tradição dos queijos a seguir à refeição e para finalizar uma salada de fruta super buena .
Só depois de consultar a meteorologia decidimos ficar mais uma noite!

Regresso a Saubrigues, parte 2

Com uma mochila às costas, uma mala cheia de comida e outras duas cheias de tralha para a viagem chegámos a Tyrosse.
Desde a chegada até ao fim do dia, fomos esvaziando o saco da comida e enchendo os estômagos. Apenas uma troca de localização. Usámos a tomada da estação para ligar o portátil, dormitámos nos bancos anti-pessoas-com-sono, passeámos por Tyrosse, e pagámos 4,40€ (o chá mais caro que já bebemos) para usar o WC, porque já não aguentávamos mais. Se se lembram, em France, há poucas ou nenhumas toilettes para utilização pública. O xixi faz-se em casa!
Ainda visitámos uma biblioteca local com o bónus de assistir à visita semanal do jardim de infância.
Nas fotos poderão partilhar a arte de podar em francês!
Minutos antes da estação fechar, a Adelaide foi-nos buscar. Chegámos cansados, mas rapidamente fomos aconchegados com uma refeição familiar, depois de um dia de sandes. Mais uma vez, refizemos as malas e depois de umas visitas à Internet e combinações de CS, finalmente fomos dormir, enquanto lá fora estavam 0ºc. Amanhã é o primeiro do resto da nossa vida!

Regresso a Saubrigues, parte 1

16h38 - o comboio chega e os demais viajantes eram escassos e pareciam tranquilos, nada fazia prever o que se seguiu...
Os nossos lugares sentados, na segunda fila a contar da porta, as bagagens por cima, os casacos sobre as cadeiras, os pés descalços e .... c’est parti!
Um início tímido, sussurros, com licenças, se faz favor, ajustes na cadeira, ajeites na roupa, arrumação das bagagens, e instalação. E logo um som constante-irritante de um vídeo jogo ecoava por toda a carruagem. Uma criança, 6 filas adiante jogou durante 4 horas consecutivas com o volume no máximo,até que uma jovem intercedeu pela nossa sanidade mental e o som cessou.
Em Coimbra, entraram mais passageiros, umas jovens, uns jovens, uns adultos...
O vizinho da frente volta e meia, olhava aflito para quem o rodeava e perguntava quanto faltava para chegar a Victoria, que horas eram, a que horas era suposto chegar, se ainda faltava muito, onde é que estávamos, que horas eram, onde estávamos...
O vizinho de trás, até então falando para si próprio, teve direito até Miranda do Douro, a um companheiro à altura. Uma conversa animada começou sobre o "comboio que não falava", e sendo de noite, ninguém sabia onde estava; sobre os respectivos trabalhos. 2000€ mensais, para aqui, 2500€ para acolá. Pareciam trocar dicas e truques para receber a horas e bem, satisfeitos com o que a experiência lhes tinha  ensinado.
O casal vizinho atrás na diagonal, era uma caricatura de Portugal, os dois com cerca de 40, ele de grande, grande mostache, tez morena, queimada do sol, maciço, ela de cabelo curto, uma peitaça respeitosa, brincos e fio de ouro. Assim que entraram ouvimos-lhes a pronúncia do norte: "Tá-se bem!" " Este é muito melhor qu'o outro!". E posto isto, comeram as suas sandochas, uma chamada para o filho e depois um ó ó até à paragem de saída, com direito a marcar golos de cabeça!
Mais à frente na diagonal, tínhamos 2 cavalheiros, um com trinta e muitos outro com 40 e poucos. O de trinta e muitos, de cabelo comprido, usava um pincel grosso, para segurar o cabelo. Very artistic! O outro tinha uma cara mais modelo de revista e os dois tinham as hormonas aos saltos, muita testosterona em conversetas e risotas entre si, como duas teenagers a querer dar nas vistas! Cada espécime do sexo oposto que passava levava com um duplo virar de pescoços e às vezes um sonoro: "I'm your knight!" ou "Do you need any help?".
Em Espanha entre uma jeune femme, cheia de malas a bater com elas em tudo quanto passava pelo caminho e a falar sozinha... Não! Afinal, tinha um cão daqueles de pêlo farfalhudo dentro de uma das malas. E até à sua saída presenciámos muitas paragens em que o cão recebia conselhos, ordens sussurradas entre beijos que a dona enviava à medida que se afastava ou para ir ao bar, ao WC, ou fumar, como se de uma despedida entre dois namorados melosos se tratasse.
Apareceu então um dos meus preferidos, um senhor já com alguma idade, de porte respeitoso, cara grande e nariz rosado, casaco de pele preto, gasto, 2 tamanhos acima do seu, e o principal, uma cabeleira branca imaculada, no topo levantada aos céus. Era cabelo verdadeiro, mas parecia o pêlo de um boneco de peluche que foi à máquina de lavar. A sua voz era grossa e forte, como a da maioria das pessoas que já descrevemos, com excepção da dona do cão que falava meio bebé, meio dengosa.
Havia ainda um blackie black, de casaco de penas branco sempre vestido, de carapuço felpudo, sempre calado, metido consigo, mas que tinha a mania de se levantar 15 segundos depois de se ter sentado, como que obsessivamente.
Agora vamos pegar nestes personagens todas e vamos juntá-las na porta atrás de nós. A uma fila de distância, a... não sei se lhe chamaria conversar, era mais uma espécie de  uma espécie treino de colocação de voz, ou ensaio de teatro. Cada um defender o seu ponto de vista, a sua experiência, todos a fumar e alguns a gargalhar, a porta ora totalmente aberta ora a ser aberta de 5 em 5 minutos (não consigo escolher a que gostava mais), e juntemos-lhe ainda um estrondo da porta da rua a bater sempre que partíamos de uma estação.
Ás vezes vinham para os lugares, e aí continuavam as suas conversas, mas sem ajustar o volume que continuava igual ao que estava junto da porta.
Ao nosso lado um, atrás de nós outro e ao lado do de trás outro. Todos com os seus casacos de pele coçada pretos, o cheiro a tabaco entranhado na pele, voz grossa e rouca e volta e meia uns cofs cofs para cima de nós. Durou algum tempo, até que o do cabelo de peluche branco se sentou e merendou a sua sande acompanhando com a sua garrafa de litro e meio de tinto, enquanto dizia meia dúzia de palavrões e uma ou duas palavras numa tentativa de diálogo com o nosso vizinho da frente, o ansioso com as paragens/horas, que não falavam português.
Meia garrafa depois e duas sandes debruçou-se para a frente, de mãos juntas, como que em oração, e adormeceu.
Se soubesse o que sei hoje, teria partilhado desse seu remédio milagroso, uma bela pomada portuguesa-caseira, capaz adormecer qualquer um mesmo que num Sud Express frenético.

Quirima, Angola

De novo no hemisfério sul. O trabalho, idêntico ao da última viagem. Assim como o caminho entre Luanda e Quirima.
Seis horas de estrada asfaltada até Malanje. Seis horas de estradas e condutores angolanos. Velocidades impossíveis e rasantes a buracos no asfalto que despedaçariam qualquer reflexo em falso por parte do condutor. Kizombadas e músicas da terra, em decibéis de discoteca a acompanhar temperaturas gélidas dentro da viatura e calorosas no exterior. Em Angola, vive-se nos extremos.
Uma vez em Malanje, uma pausa para esticar as pernas, descansar os ouvidos e enganar a já dolorosa barriga de fome.
De Malanje a Quirima, uns meros duzentos e muitos quilómetros de puro terror e tédio. Oito horas de mais música e ar condicionado. Oito horas de picadas com a textura e solidez de manteiga. Oito horas de chuva, solavancos e atolamentos. Oito horas de trovoadas constantes, céus ameaçadores, interminável selva e aldeias perdidas no tempo e esquecidas pelo mundo.
Dez dias de escritório, para depois repetir tudo na viagem de regresso a Luanda.
Tudo isto com a pergunta sempre presente e imaginada: Como será pedalar por estas estradas? Se é assim tão horrível de carro, será na mesma medida, tão belo e recompensador de bicicleta?

Saubrigues e regresso a Portugal

Um acordar com sabor a repouso. Não iríamos pedalar durante uns tempos.
Ainda assim, antes de dizer adeus às nossas companheiras de viagem, desmontámos e limpámos tudo: material, alforges e biclas. Tudo lavado, oleado e pronto para quando chegarmos daqui a um mês.
Um mês de pausa para regressar a Lisboa, viajar para Angola e regressar para a  nossa "Tour de Fance".
Um dia repleto: Pequeno-almoço numa mesa familiar; Labuta lavadeira nas biclas; Almoço com mais queijos, vinhos e boa conversa. Ao fim da tarde, depois de uns até breve, fomos de boleia até à estação dos comboios, que mais parecia um apeadeiro perdido.
Ainda era cedo quando chegámos, mas a espera em nada ajudou o nervosismo da dúvida, sobre se a greve geral que há tantos dias assolava o país nos iria calhar a nós com comboios atrasados e enlaces perdidos... Mas foi tranquilo. Apenas vinte minutos de atraso.
Entrámos no comboio e iniciámos a loooongaaaa viagem de regresso a casa. Em pouco menos de 20 horas de comboio, percorremos a mesma distância que nos demorou 20 dias de bicicleta. Vinte horas encafuados num assento, com o "pouca-terra, pouca-terra" tão característico dos comboios. Não sentimos nada do glamour e o encanto das viagens de comboio.
Já em Lisboa, depois de uma noite em branco e de três países atravessados, tudo nos parecia surreal. Parecia que nunca tínhamos atravessado todo este caminho de bicicleta. Os últimos vinte dias pareciam ter sido um sonho que já começava a desvanecer.
Resta-nos o descanso e a pausa. Um mês de pausa em Lisboa, viajar para Angola e regressar para a  nossa "Tour de Fance".
P.S. - A máquina fotográfica ficou esquecida em  Saubrigues. Ops!

Bidarray - Saubrigues

Saímos de casa do padre Pierre, pelas oito e pouco.
Veio-se despedir de nós, e fazer-nos prometer que escreveríamos assim que chegássemos a Santiago de Compostela! Isto depois de já por três vezes, em momentos diferentes, lhe termos dito que tínhamos começado o caminho em Burgos em direcção oposta a Santiago, com destino a França. Algum problema de comunicação, provavelmente!
Seguimos caminho por estradas pitorescas, sempre com placas anunciando fromageries, que seduziam o Alexandre para ir ao seu encontro. Eu cá sou imune, porque não senti nada quando passávamos por elas. Mas para o Ulisses Alexandrino eram uma espécie de sereias... Conseguiu resistir aos seus encantos. Por agora...
Com o novo mapa de 1 Kg, não houve dúvidas no caminho a seguir. As estradas eram um pouco estreitas e volta e meia lá apareciam uns camiões ou tractores para nos recordar que a estrada não era só nossa. Pela quantidade de castanhas e ouriços esborrachados no chão, descobrimos que as estradas são ladeadas por castanheiros, e que a fauna local não dá vazão a tamanha produção frutícola.
Para compensar a surpreendente facilidade com que passamos os Pirenéus, e entenda-se por isto as subidas, deparámo-nos com umas subidas e descidas curtas mas inclinadas à brava, nada comparado com os Pirenéus, com subidas longas e quase planas. Em questão de minutos era passar da mudança mais pesada para a mais leve, para logo seguir repetir o ciclo. O que vale é que os ânimos estavam além das nuvens, sabendo que poucos quilómetros à frente encontraríamos família, com casa para descansar, e que esta etapa estava prestes a chegar a bom porto.
Almoçámos num pequeno jardim entre a escola e uma igreja cemitério. Aflitos para usar as toilettes, mais uma vez descobrimos cafés sem este serviço disponível, o que nos levou a crer que os franceses, devido sua elegância natural, não fazem xixi e afins fora de casa! Não é chique! É claro que são tudo suposições, e o mais provável é serem, tal como nós, meros seres humanos com necessidades básicas que precisam de satisfazer. Vamos aguardar para ver!
Eis que Saubrigues surgiu.
A Amélie e a Alice, já tinham andado para a frente e para trás à nossa procura, o que além de ser agradável, por acreditarmos que era porque estavam ansiosos com a nossa chegada, era mais um ponto a favor de Saubrigues que é seguro para as crianças andarem à vontade. Além disto têm de tudo ali. Uma sala de espectáculos, e propostas culturais semanais que abrangem várias áreas, logo ali ao pé de casa, As escolas, a praia a poucos quilómetros, comércio local, e na cidade mais próxima centro comercial para matar o bicho consumista, e no Inverno neva! Que mais se pode pedir?
Além de nós, mais um casal da família, fez ali a sua paragem, antes de continuar caminho para a sua casa em Paris. Foi um jantar de mesa cheia, com comida boa, muitos queijinhos bons, doces e conversas em francês/português e português/francês.
Ça c'est trés bon, n'est pas?

Roncesvalles – Bidarray

Às 6 da manhã ligaram as luzes, e a música de flautas de pã foi despertando a maioria que ainda dormia. Aos poucos o albergue foi esvaziando à medida que os peregrinos iam saindo e desejando "bom camino" uns aos outros.
Enquanto todos iniciavam a sua caminhada na direcção de Santiago de Compostela, anunciado a 790km, numa placa, nós invertemos o sentido e iniciámos a subida de 2km. Uma vez no topo foi sempre a descer...durante 15km. Frio, sombra da floresta, curvas e contra-curvas e mais curvas e contra-curvas. As mãos se travavam era somente para evitar velocidades acima dos 30Km/h, que aumentassem o vento gélido. Do início ao fim sempre acompanhados do som da água a correr algures à nossa volta. Se olhássemos para baixo, conseguíamos ver a continuação infinita da estrada como se se tratassem de degraus gigantes que descíamos, perdidos no meio da frescura da floresta. De luvas da neve postas, cabeça coberta, fechos apertados, nunca até aqui uma descida nos custou tanto e nunca ansiámos tanto que terminasse.
O que se seguiu, parecia tirado de um documentário ou revista da National Geographic. Até aí as vistas eram preenchidas por paisagens de colinas divididas em rectângulos de diferentes tons de castanhos e amarelos secos, planaltos áridos. Deram lugar, a erva verdinha e tenrinnha a cobrir tudo o que a vista alcança. As casas típicas do país basco, brancas de portadas vermelhas, agrupadas em pequenas aldeolas, as chaminés a fumegar, o cheiro a lareira espalhado pelas ruas, chocalhadas do gado a pontear as montanhas em redor. Imaginamos que o gado, aqui, tenha os níveis de felicidade nos píncaros!
Numa envolvência pitoresca entrámos em França! Avançámos até Saint-Jean Pierre du Port, onde se iniciam a maioria das caminhadas até Santiago. Com uma felicidade incontida, em parte culpa do sol e verdura contagiantes, trocámos as nossa primeiras palavras em franciú!
Prosseguimos em direcção a Bidarray, com direito a atingir os 2000km pelo meio e a assistir a um grupo de aventureiros a fazer rafting. A água devia estar mesmo boa, porque até pararam para saltar das rochas para a água, e estavam muito sorridentes.
Vimos umas placas com albergues e a vieira dos peregrinos e decidimos segui-las e experimentar a ver onde iam dar. Depois de uma subida a empurrar as bicicletas (a nossa primeira desde que partimos de Tavira), perguntando aqui e ali, descobrimos que não havia nenhum albergue, mas sim um padre que acolhia peregrinos numas instalações da igreja, próximas desta. Com a casa só para nós, janelas muitas, a maravilhar-nos com as casinhas e animais por ali espalhados no verde, jantámos, fomos para a cama.

Pamplona - Roncesvalles

Depois das despedidas e das traquitanas todas montadas já na rua, eis que o dia de pedalar os Pirinéus, chegou. Com chuva!
Na saída de Pamplona, ainda ouve quem nos avisasse de que poderia nevar lá em cima.
Vias rápidas evitadas e atalhos percorridos e eis que Iruña fica para trás e os verdes pastos começam a dar sinal. Aos poucos a paisagem vai crescendo e deformando-se, tornando o nosso pedalar, num passeio entre os gigantes. Nada de grandes subidas nem descidas. Apenas muitas curvas, poucas inclinações, muitas ovelhas e pouco trânsito. Mas entre a chuva e as montanhas, o sol não deu grandes sinais de vida.
Mas estamos nos Pirenéus! Finalmente a subida começa. Sabemos que iremos ter que subir até aos 1000m. Passamos toda a tarde a fazê-lo. Sempre a subir, sem grandes ventos, nem frios, com muita calma e algumas paragens. Sempre a subir os gigantes Bascos.
Num dos topos, um encontro com um ciclista/peregrino galego, que pedala desde Itália, tornou-se numa demorada conversa e troca de ideias e dicas de selins.
Um pouco de descida e mais uma subida aos 1000m, e eis que Roncesvalles aparece. Apenas um ponto de paragem para a primeira etapa do Caminho de Santiago. Aqueles que no albergue se encontram, estão a digerir o seu primeiro dia de caminhada e a sua primeira subida de montanhas. Nós também, mas este será o adeus ao conforto dos albergues e à segurança do Camino.
Com uma música clássica a encher e acalmar o enorme salão onde todos dormem, dizemos adeus à nossa última noite em Espanha e adeus à nossa querida Península Ibérica.

Pamplona

Dia de descanso.
Dia passado em casa a fugir do frio, com saídas apenas para visitar a oficina (apesar de tudo, nós gostámos dela), para voltar a conversar com os Plesant Revolution e para visitar o mercado de Pamplona.
Dia passado a cozinhar boas e repletas refeições. Saladas com arroz e bifanas. Bacalhau com grão e ovo.
Dia passado na siesta e na conversa pela noite dentro com a Maite.
Foi só descanso e repouso, porque amanhã é dia de subir montanhas!

Estella – Pamplona

Um dia cheio.
Acordámos com desconhecidos ao nosso redor e enfrentámos o frio da manhã ao sair do albergue e de Estella.
Subimos e descemos as habituais colinas do norte de Espanha e o normal frio do Outono. Para chegar a Pamplona, El Pérdon impunha-se com a sua inclinadíssima estrada. Lá em cima, a vista de Pamplona e dos Pirenéus atrás. Mais do mesmo ao chegar a uma grande cidade. É sempre uma carga de trabalhos para atravessar os subúrbios e evitar as vias rápidas.
Uma vez lá dentro, o cansaço e o frio finalmente venceram. Para os combater, nada melhor do que um banco de jardim ao sol e um almoço com todos os restos de pão, queijo, presunto, bolachas, pipas e fruta.
Nós sabíamos a morada da nossa anfitriã, mas não foi necessário perguntar por indicações ou procurar mapas. O nosso querido amigo, El Camino, guiou-nos até à porta da Maite. E logo ao lado, como resposta às nossas preces, uma oficina de bicicletas, com todo o aspecto de ser das boas. E era basca! Nada como uma revisão nas biclas antes de atacar os Pirenéus.
Infelizmente, os simpáticos mecânicos, não foram bem sucedidos em transmitir segurança no que faziam às nossas meninas e o que começou como uma simples revisão e averiguação de inocentes e tímidos ruídos nas bicis, tornou-se num filme de terror e angústia, quando começaram a estropiar as correntes e a (des)regular mudanças! Saímos de lá com o coração nas mãos, com os mesmo barulhos e mais alguns novos e com a sensação de que já devia ser altura de aprendermos nós a cuidar das nossas meninas.
Mas nem tudo foi mau. Alinharam as rodas, trocaram e afinaram os travões e guardaram as biclas durante a noite, evitando assim uma subida até ao terceiro andar da Maite. Como bónus, o destino quis que os Plesant Revolution chegassem à oficina ao mesmo tempo que nós. Ficámos a conhecer esta curiosa e simpática matilha de músicos que iniciaram a sua trip, em São Francisco e depois de atravessar os E.U.A., viajaram para a Europa, para continuar com a sua errática e improvisada digressão musical de bicicleta. Toda a sua vida, assim como a sua arte, é transportada nas pesadas e bonitas biclas.
Depois das emoções fortes na oficina, nada melhor que uma calma e tranquila conversa pela noite dentro com a nossa anfitriã, acompanhada com um vinho tinto e um jantar improvisado. Amanhã é dia de folga. Dia para descansar as pernas e os rabos e para lavar e secar roupa. O nosso primeiro dia fora das biclas desde Salamanca.

Logroño - Estella

Por norma, os dias entre paredes, são dias de tarde pedalar. Depois de descer todas as traquitanas do pedal do quarto andar da Maite e de tomar um segundo pequeno-almoço no café de uns argentinos, dissemos os adeuses, com laços de amizade selados em tatuagens da Hello Kitty.
Ainda chuviscou pela manhã, mas já não nos incomoda tanto. Seguindo o Camino como orientação, continuámos com a nossa labuta diária de mais subidas e poucas descidas. Mais frio e mais vento. Suor nas peles cobertas e frio nas descobertas. Desde Burgos que vamos subindo mais um pouco nas altitudes. Um prenúncio de Pirenéus. Mas nada disto passa pelas nossas mentes. Durante um dia destes, entrámos no modo de subida. Poucas falas nas descidas gélidas. Conversas nas lentas subidas, quando o vento nos deixa ouvir. Pausas para descansar. Sem darmos muito por isso, completamente enregelados e surpresos com a rapidez com que o frio chegou ate nós, Estella apareceu.
Estás no topo de uma colina ventosa e fria, de nariz a pingar, para poucos minutos depois entrares num acolhedor e quentinho albergue onde todos os que nos rodeiam são como nós. Pele queimada do frio, chanatas em pés estrangeiros a combinar com impermeáveis da North Face. Mochilas da Haglof espalhadas por aqui e por ali. É assim a vida quando se anda de bicicleta pelo Caminho de Santiago na direcção contrária.
Após a atribuição dos beliches, após a bagagem carregada da bicla para os pés da cama, após o duche comunitário quente e restaurador da circulação sanguínea, um de nós aproveitou para lavar roupa enquanto o outro deixava queimar o arroz com feijão e carne. Alguns sentimentos de luxo, percorreram as nossas cabeças quando a nossa refeição se comparava com as bolachas para o jantar de uns ou o pão com queijo de outros.
Comemos na cozinha do albergue, numa mesa gigante partilhada com italianos, coreanos, escoceses, japoneses, espanhóis, ingleses, finlandesas e alemães. Ainda houve oportunidade para provar um queijo de cabra que alguém distribui por todos à mesa e oportunidade para planear a rota do dia seguinte com o mapa de peregrinação em italiano.
Com a roupa estendida, a barriga quente e o saco-cama estendido, o sono não dá luta...

Redecilla del Camino – Logroño

 Os poucos peregrinos da albergaria, saíram em pezinhos de lã para não nos acordar. Estávamos sós no albergue, e o começar do dia, fez-se devagar e a demorar, com o prazer de uma mesa, duas cadeiras e quatro paredes ao pequeno-almoço.
Deixámos o donativo no cofre e saímos porta fora para o mundo do dia seguinte. Um mundo de descidas matinais e subidas tardias. De vento frio e lentidões calorosas. De chuviscos refrescantes e uvas suculentas.
Às portas de Logroño, uma rede de cruzes construída por anos e anos de peregrinação, separáva-nos da vida-rápida logo ao lado. Entrámos pelas portas das traseiras da cidade, por ciclovias e percursos domingueiros. A perguntar aqui e ali como desfiar a rede de duas rodas, chegámos à zona centro, com a surpresa de ser a primeira cidade espanhola que nos encantou com o seu ambiente. Fazia lembrar a melhor parte das grandes cidades de Portugal. Seria talvez por os cafés se parecerem com cafés e não com bares.
Já em casa da Maité, tirámos à vez para o lugar no duche e o lugar sentado na cozinha a comer castanhas e a conversar com a nossa anfitriã. A seguir à visita ao supermercado, o Nahuel brindou-nos com a sua presença e vivacidade própria de uma criança de 3 anos.
A noite prolongou-se com conversas, troca de ideias e de receitas, enquanto uns aprendiam posições de ioga e outros escreviam no blogue para vocês...

Burgos - Redecilla del Camino

O Alfredo deixou-nos estar à vontade para sairmos quando quiséssemos, enquanto ele se despedia, de caminho para o seu trabalho. Assim o fizemos. Não havia muita vontade de pedalar no frio matinal, depois do dia anterior, por isso demorámo-nos com umas, muitas, torradas e café com leite, a ouvir a rádio espanhola e com vista para esta cidade histórica.
Já de saída da cidade, tomámos conhecimento que nos próximos dois dias, iríamos percorrer um património da Humanidade. A estrada nacional 120! Sim, porque é nesta altura da nossa viagem que o nosso caminho e o Caminho de Santiago se cruzam e entrelaçam. Não foi preciso esperar muito para começar a ver e cumprimentar os caminheiros e ciclistas que vinham em sentido contrário com a tradicional expressão: "Buen camino!".
A estrada em si, não era de facto o caminho. Este corria ao lado da nacional, que embora estivesse em muito bom estado e com uma boa faixa para os ciclistas, estava povoada com imensos camiões que nos atiravam para a berma.
Fomos lentos mas seguros pelo caminho, mas em sentido contrário. Sempre que o trilho se tornava penoso ou a nacional acalmava, íamos para o asfalto.
Foi um bom dia. Tomámos café no quentinho de quatro paredes a ouvir rádio. Percorremos o Caminho de Santiago. Mesmo com vento contra, fizemos muitos quilómetros e conseguimos subir a serra aos 1150 metros. Já na descida e ao fim da tarde, encontrámos uma aldeola com albergue para caminheiros. Apenas cá estão duas raparigas húngaras, com as suas bolhas nos pés, e um francês com quem travámos conversa corriqueira de viajante para viajante.
Conseguimos voltar a fugir ao frio. Cozinhámos numa cozinha e comemos numa mesa com a companhia do gato do albergue.
Na nossa última noite em Castilla e Leon, deitados em beliches, podemos voltar a sonhar com um quente pequeno-almoço...