Regresso a Saubrigues, parte 1

16h38 - o comboio chega e os demais viajantes eram escassos e pareciam tranquilos, nada fazia prever o que se seguiu...
Os nossos lugares sentados, na segunda fila a contar da porta, as bagagens por cima, os casacos sobre as cadeiras, os pés descalços e .... c’est parti!
Um início tímido, sussurros, com licenças, se faz favor, ajustes na cadeira, ajeites na roupa, arrumação das bagagens, e instalação. E logo um som constante-irritante de um vídeo jogo ecoava por toda a carruagem. Uma criança, 6 filas adiante jogou durante 4 horas consecutivas com o volume no máximo,até que uma jovem intercedeu pela nossa sanidade mental e o som cessou.
Em Coimbra, entraram mais passageiros, umas jovens, uns jovens, uns adultos...
O vizinho da frente volta e meia, olhava aflito para quem o rodeava e perguntava quanto faltava para chegar a Victoria, que horas eram, a que horas era suposto chegar, se ainda faltava muito, onde é que estávamos, que horas eram, onde estávamos...
O vizinho de trás, até então falando para si próprio, teve direito até Miranda do Douro, a um companheiro à altura. Uma conversa animada começou sobre o "comboio que não falava", e sendo de noite, ninguém sabia onde estava; sobre os respectivos trabalhos. 2000€ mensais, para aqui, 2500€ para acolá. Pareciam trocar dicas e truques para receber a horas e bem, satisfeitos com o que a experiência lhes tinha  ensinado.
O casal vizinho atrás na diagonal, era uma caricatura de Portugal, os dois com cerca de 40, ele de grande, grande mostache, tez morena, queimada do sol, maciço, ela de cabelo curto, uma peitaça respeitosa, brincos e fio de ouro. Assim que entraram ouvimos-lhes a pronúncia do norte: "Tá-se bem!" " Este é muito melhor qu'o outro!". E posto isto, comeram as suas sandochas, uma chamada para o filho e depois um ó ó até à paragem de saída, com direito a marcar golos de cabeça!
Mais à frente na diagonal, tínhamos 2 cavalheiros, um com trinta e muitos outro com 40 e poucos. O de trinta e muitos, de cabelo comprido, usava um pincel grosso, para segurar o cabelo. Very artistic! O outro tinha uma cara mais modelo de revista e os dois tinham as hormonas aos saltos, muita testosterona em conversetas e risotas entre si, como duas teenagers a querer dar nas vistas! Cada espécime do sexo oposto que passava levava com um duplo virar de pescoços e às vezes um sonoro: "I'm your knight!" ou "Do you need any help?".
Em Espanha entre uma jeune femme, cheia de malas a bater com elas em tudo quanto passava pelo caminho e a falar sozinha... Não! Afinal, tinha um cão daqueles de pêlo farfalhudo dentro de uma das malas. E até à sua saída presenciámos muitas paragens em que o cão recebia conselhos, ordens sussurradas entre beijos que a dona enviava à medida que se afastava ou para ir ao bar, ao WC, ou fumar, como se de uma despedida entre dois namorados melosos se tratasse.
Apareceu então um dos meus preferidos, um senhor já com alguma idade, de porte respeitoso, cara grande e nariz rosado, casaco de pele preto, gasto, 2 tamanhos acima do seu, e o principal, uma cabeleira branca imaculada, no topo levantada aos céus. Era cabelo verdadeiro, mas parecia o pêlo de um boneco de peluche que foi à máquina de lavar. A sua voz era grossa e forte, como a da maioria das pessoas que já descrevemos, com excepção da dona do cão que falava meio bebé, meio dengosa.
Havia ainda um blackie black, de casaco de penas branco sempre vestido, de carapuço felpudo, sempre calado, metido consigo, mas que tinha a mania de se levantar 15 segundos depois de se ter sentado, como que obsessivamente.
Agora vamos pegar nestes personagens todas e vamos juntá-las na porta atrás de nós. A uma fila de distância, a... não sei se lhe chamaria conversar, era mais uma espécie de  uma espécie treino de colocação de voz, ou ensaio de teatro. Cada um defender o seu ponto de vista, a sua experiência, todos a fumar e alguns a gargalhar, a porta ora totalmente aberta ora a ser aberta de 5 em 5 minutos (não consigo escolher a que gostava mais), e juntemos-lhe ainda um estrondo da porta da rua a bater sempre que partíamos de uma estação.
Ás vezes vinham para os lugares, e aí continuavam as suas conversas, mas sem ajustar o volume que continuava igual ao que estava junto da porta.
Ao nosso lado um, atrás de nós outro e ao lado do de trás outro. Todos com os seus casacos de pele coçada pretos, o cheiro a tabaco entranhado na pele, voz grossa e rouca e volta e meia uns cofs cofs para cima de nós. Durou algum tempo, até que o do cabelo de peluche branco se sentou e merendou a sua sande acompanhando com a sua garrafa de litro e meio de tinto, enquanto dizia meia dúzia de palavrões e uma ou duas palavras numa tentativa de diálogo com o nosso vizinho da frente, o ansioso com as paragens/horas, que não falavam português.
Meia garrafa depois e duas sandes debruçou-se para a frente, de mãos juntas, como que em oração, e adormeceu.
Se soubesse o que sei hoje, teria partilhado desse seu remédio milagroso, uma bela pomada portuguesa-caseira, capaz adormecer qualquer um mesmo que num Sud Express frenético.

1 comentário:

Nuno Vieira disse...

Que belissímo cenário, o do comboio... Valha-nos mais alguns notáveis trabalhos fotográficos, especialmente a roda do comboio e as flores. Este ultimo, magnifico.